quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Réveillon [acordemos? sonhemos?] - Tim-tim!

O deus Jano, o Exu e o Réveillon de todos nós

Há um mundo carregado de mistério no que somos no Réveillon. E é no quanto a palavra se refere a sonho, ao “Rêve”, que nos abraçamos e nos beijamos, desejando-nos mutuamente, o que o próprio deus Jano também não sabia: se a posteridade nos vai sorrir ou se será simplesmente aquilo, tautologicamente, que só o futuro sabe.

reproduzida de fadadosbosques.blogspot.com
Num mundo previsivelmente administrado como o nosso (alguns pensadores falam, sem meias tintas, de uma espécie de diktat do sistema, a gerenciar, inclusive, as horas de lazer dos cidadão), causa certo espanto que nos deparemos com símbolos tão escancarados e, no entanto, aparentemente meros aparatos como as chamadas "Festas de Fim de Ano ". Deus Nosso Senhor não deixou nenhum indício de que o que chamamos de "ano" devesse ter 12 meses e 365 dias. E que, num instante qualquer do universo, haja uma espécie de parada cósmica, para o tilintar de taças, já que naquele momento, passou-se, por fim, um ano na terra. E que o "Feliz Ano Novo" seja saudado de Seca a Meca, como um corolário do nosso tempo humano. É a adesão ao que parece a uma convenção, mas talvez tão impositiva quanto o nosso sentimento religioso.

Augusto Comte, criador do positivismo, desmistificou o quanto pode as crenças religiosas – elas seriam de um tempo”não científico” - isso até o dia em que ele próprio resolveu criar a sua "religião da Razão". Devia ter certeza de que, procedendo assim, dava a um rito qualquer, um certo status – quase, quem sabe, como esse que concedemos às comemorações de um "Novo Ano", dito como "Bom" pelos publicitários, esses exegetas da sacralização dos negócios rendosos.

Nada demais, parece, que seja assim. Convencionamos que o mundo se divide em anos, no número mágico de 12 meses, com períodos de doze horas que, ao ser duplicado, faz de um dia 24 horas ( doze mais doze). Mera convenção com ares de magia, como são doze o número de apóstolos de Cristo. Marx falava, a propósito, do poder dos mortos sobre os vivos. De fato, na crença de que na comemoração do Novo Ano, imitamos as cobras, por exemplo, ou seja, no caso, a natureza, mudando de pele - guardamos de que seguimos o ritmo do universo. É assim desde o tempo dos nossos avós, já mortos. Quando a chuva ou o tempo nublado nos deixam entrevê-las – as estrelas, por acaso, não cintilam mais radiosas?

Aliás, a própria idéia de lavagem das casas e corpos, em processos chamados de "descarregos", não raro com ervas e incenso, induzem a que todos pensemos na passagem do ano como um momento encantatório. Temos computadores e tablets - o neon acompanha os fogos de artifício espocando das ruas, mas o simples anúncio da meia noite - a despeito dos nossos horários de verão anteciparem a sua metade "real" ( isso existe?)- fazem-nos vibrar à loucura. Fica a pergunta: qual mesmo a diferença com outras manifestações proto-religiosas ou decididamente religiosas alhures - e que são acompanhadas por tambores e, a depender do lugar, assistidas, plácida e indiferentemente, por camelos e leopardos?

Levy-Strauss e outros antropólogos devem ter mil razões para nos explicarem nos nossos réveillons. É expressivo, contudo, que o termo venha do francês "Reveiller", que é acordar. "Réveillon", a rigor, seria a ceia no meio da noite, quando algo sonâmbulos, somos acordados para uma confraternização, ao redor de uma mesa farta, com amigos. Mera casualidade? Talvez. No entanto, poucos eventos nos põem, inclusive etimologicamente, tão próximos dos sonhos.

A dimensão onírica embutida no Réveillon – a raiz da palavra é a mesma de “rêve,”, ‘sonho’ em francês – explica-se no sucedâneo da festa – muitas libações - na verdade, a celebração mais próxima e antecipatória que temos (com exceção do Carnaval) dos célebres bacanais. Que, por sua vez, talvez se expresse na idéia que temos da palavra – mas que tem a ver com os mistérios. A loucura, seja pelo artifício do vinho ou de outra droga qualquer, sempre nos arrebata para a alteridade. Que tanto pode descambar para o ridículo – o “Nego bebo” cantado pela marchinha de carnaval (“Chi, tem nego bebo aí...), quanto para a “iluminação” do Pai-de-Santo: é a custa de cachaça e de tabaco que o babalorixá se comunica com os orixás.

“In Vino Veritas” – “No vinho está a verdade” diziam os romanos, a se prever certamente, das muitas e boas que dizemos – e fazemos - quando o álcool elimina a nossa autocensura. Alexandre Magno matou um de seus melhores amigos quando este lhe disse que estava embriagado, a tropeçar entre os móveis e as alfaias de seu palácio

Pode-se retomar, porém, à questão do mágico. Parece em tudo significativo que, ao Natal, sigam-se as festas do Ano Novo. Depois do recolhimento teórico do Natal, a festa se prolongaria para a esbórnia do Réveillon. O interessante é que são poucas as menções da arte a propósito do Novo Ano. Bach e outros compositores compuseram cantatas e oratórios “de Natal”. Quase todos os pintores da Renascença e do Barroco demoraram-se sobre o ciclo natalino, ora comemorando o simples nascimento, ora reportando-se à chegada dos Reis Magos. Sobre o Ano Novo, entretanto, quase nada.

Por quê?
Talvez por sua origem anterior a Cristo. E que parece o melhor do Ano Novo. Tudo se faria em torno de um deus romano, chamado Jano, que deu origem ao nome do primeiro mês do ano – janeiro – e que tinha duas faces – uma para trás e outra, justamente aquela que evocamos, na passagem do ano, e que se coloca entre o passado e o futuro, voltada para a frente. Janos seria a condição do homem no Réveillon. É o deus do contraditório, aquilo que, de um lado todos somos no instante em que contamos o tempo regressivamente. Ao desembarcarmos no “zero”, depois da contagem dos segundos, assumiríamos as duas faces de Jano, o padroeiro do janeiro. Somos o passado – que sabemos como foi – mas somos também o mistério – a dúvida – assumida pela outra face do tal deus – aquela que olha para o futuro e que é inexorável, tanto para o bem quanto para o mal.

Há, em suma, um mundo carregado de mistério no que somos no Réveillon. E é no quanto a palavra se refere a sonho, ao “Rêve”, que nos abraçamos e nos beijamos, desejando-nos mutuamente o que o próprio Jano também não sabia: se a posteridade nos vai sorrir ou se será simplesmente aquilo, tautologicamente, que só o futuro sabe.

São questões de que passamos ao largo. Mas é interessante que pensemos o Réveillon apenas como uma festa sem o que nem porquê. E que, no Brasil, o associemos ao período que se estende até o carnaval, quando então a vida recomeça, inclusive - ou principalmente, em Brasília.

Em tempo: Jano era o deus que abria as portas. Tudo a ver, numa certa medida, com o nosso Exu – o Tranca-Ruas.

*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Fim de ano de novo e...

Por um Natal sem neve na TV

Quem mantém as TVs comerciais são os anunciantes. Mas, apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima reprise do filme “Esqueceram de mim”, com neve em quase todas as cenas ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor.

Artigo públicado originalmente na edição de dezembro da Revista do Brasil.
Fonte da versão eletrônica: Boletim Carta Maior


O final de ano na TV é sempre previsível. A propaganda cresce e os programas se repetem. São filmes com muita neve, os mesmos musicais e as infalíveis resenhas jornalísticas.

A televisão no Brasil não dita apenas hábitos, costumes e valores mas também o ritmo de vida da maioria da população. Nos dias úteis com seus horários para “donas de casa”, crianças e adultos e nos fins de semana, com uma programação diferenciada, supostamente mais adaptada ao lazer.

Mas não fica aí. A TV organiza também as comemorações das efemérides ao longo do ano, das quais o ponto alto é o Natal. Com muita antecedência saltam da tela canções da época e muita propaganda, criando clima para o “espírito natalino”.

As crianças são o alvo principal da publicidade. Se já são bombardeadas com apelos de compra o ano todo, no Natal a pressão cresce.

Apresentadoras joviais e alegres conquistam a confiança dos pequenos telespectadores com seus dotes artísticos para, em seguida, atraí-los para as compras, no mais das vezes, desnecessárias. Da classe média para cima é comum ver crianças com brinquedos pouco ou nada usados, comprados apenas como resposta aos apelos publicitários.

Mas a TV não está só nas casas de quem pode comprar. Hoje ela é um bem universalizado no Brasil, advindo dai a sensação de exclusão sofrida por crianças cujas famílias estão impossibilitadas de satisfazer seus desejos. Esse desconforto resulta da crença de que o consumo é um valor em si, substituto da cidadania. Só é cidadão quem consome.

“O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania” diz o professor Octávio Ianni no “Príncipe Eletrônico”, artigo que se tornou referência para a discussão do papel político da comunicação nas sociedade modernas.

No Natal a metamorfose atinge o auge e segue até a virada do ano. As mercadorias ganham vida na TV e estão à disposição para satisfazer todos os nossos desejos, o mercado oferece democraticamente a todos os mesmos produtos e ao consumi-los exerceríamos nossos direitos de cidadãos. São falácias muito bem embaladas em luz, cores e sons sedutores.

As regras do jogo são essas. Quem mantém as TVs comerciais são os anunciantes. Mas, apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima reprise do filme “Esqueceram de mim”, com neve em quase todas as cenas ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor.

Dessa mesmice nem o jornalismo escapa. As chamadas resenhas de final de ano não são mais do que colagens em forma de “clips”, usadas mais para reviver sustos já sofridos pelo telespectador do que para informar. Em determinado ano, que pode ser qualquer um, o apresentador famoso abria a resenha na principal rede de TV exclamando: “um ano de arrepiar em todo o planeta. Incêndios, terremotos, furacões”. E dá-lhe imagens espetaculares que, de notícia, pouco tem.

Podia ser diferente? Claro que sim. Poderíamos ter na TV um Natal mais brasileiro e um final de ano criativo (com a publicidade mais controlada). Realizadores não faltam, o que faltam são oportunidades para mostrarem seus trabalhos. Mais de 200 deles apresentaram pilotos de programas no Festival Internacional de Televisão, realizado em novembro no Rio. Não haveria ai gente capaz de tirar a televisão da rotina desta época?

Criatividade é o que não falta na produção audiovisual brasileira. Precisamos é de ousadia para mostrá-la ao público oferecendo bens culturais capazes de enriquecê-lo espiritualmente. Ou como dizia um diretor da BBC, a melhor TV do mundo: “temos a obrigação de despertar o público para idéias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, e talvez desafiando suposições existentes acerca da vida, da moralidade e da sociedade. A televisão pode, também, elevar a qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro”.

Belo desafio, não? Feliz Natal.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Pra pensar discursivamente em fórmulas, em sua circulação

4/12/2011

Manual de justificativas pra velha mídia alegar por que deixou passar em branco o livro do Amaury

Fonte: Blog do Emir


1. Pensei que era tudo legal, por isso não demos naquele momento.

2. Faltou tempo.

3. Faltou espaço.

4. Faltou vergonha.

5. O FHC disse que tudo tinha sido bem feito e era pelo bem do Brasil.

6. Já tinha resenha do livro do FHC.

7. O Serra ligou e pediu pra não dar nada.

8. Achamos que ia ficar chato pra nós.

9. Achamos que as Veronicas iam ficar muito mal.

10. Não achamos que ia dar público.

11. Deixamos pra dar mais tarde.

12. Não gostamos de matérias sensacionalistas.

13. Já tinha saído na mídia alternativa.

14. Isso é trololó do PT.

15. Se privatização fosse ruim, o FHC não teria feito.

16. Nós somos empresas privadas, gostamos disso.

17. Nós apoiamos na hora, somos coerentes, não íamos mudar de ideia só porque nos provem o contrário.

18. Deu preguiça de ler aquele troço todo.

19. Já escondemos tanta coisa, uma a mais, uma a menos...

20. As empresas estão melhor (pra nós) na mão de capitais privados.

21. Ia ficar mal pra nós.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Anuário ARede de inclusão digital: projetos do setor público - federais, estaduais e das capitais


É preciso mais

Fonte: Telesíntese


Diferentemente de muitos anuários, este trabalho não tem por objetivo estabelecer uma hierarquia entre os projetos de inclusão digital públicos do país ou avaliar a qualidade de cada um deles. O intuito é traçar um panorama do que está sendo realizado pelos governos federal, estaduais e municipais para subsidiar estudiosos da inclusão digital e formuladores de políticas públicas.

Esse panorama, se comparado ao apresentado pela primeira edição do Anuário ARede de Inclusão Digital, de 2009, que também abordou as  iniciativas realizadas pelos governos, nos dá algumas pistas importantes para pensar a inclusão digital enquanto política pública. Houve uma evolução efetiva. Os gestores de programas que se limitavam a fornecer a conexão à internet e promover alfabetização digital dos alunos, majoritariamente jovens de baixa renda, já perceberam que essa fase está superada. É preciso mais.

Mas qual caminho seguir? Muitos programas estão fortalecendo suas iniciativas para fazer da inclusão digital um fator de aceleração da inclusão social e do desenvolvimento do protagonismo dos alunos. Outros têm investido em um viés de formação instrumentalista, levando em conta apenas as demandas imediatas do mercado de trabalho. Uma concepção que limita as perspectivas dos jovens diante do amplo leque de opções oferecidas pela comunicação em rede e pelo compartilhamento da produção de conteúdos.


Lia Ribeiro Dias
Diretora Editorial


Para baixar na íntegra em .pdf :

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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Ainda sobre a atual gestão do MinC e a revisão da lei de direitos autorais

Resposta ao MinC: sobre o mecanismo de notificação e retirada

Fonte: Pablo Ortellado (em "Apenas um blog")
Para saber mais: GPOPAI (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação)

No último dia 5, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria com declarações minhas sobre as modificações introduzidas pela nova gestão do Ministério da Cultura (MinC) no anteprojeto que reforma a lei de direitos autorais. Essas declarações foram criticadas em nota da assessoria de imprensa do ministério. A controvérsia diz respeito ao mecanismo de “notificação e retirada” introduzido no anteprojeto de lei de direitos autorais por meio do artigo 105-A. Abaixo apresento brevemente o funcionamento deste mecanismo e respondo às críticas que me foram dirigidas.

Sobre o mecanismo nos EUA
“Notificação e retirada” é uma tradução da expressão “notice and takedown” que é o nome dado ao mecanismo introduzido nos Estados Unidos por meio do Digital Millennium Copyright Act (DMCA) de 1998. O mecanismo busca regular as atividades das empresas provedoras de serviços de Internet cujo conteúdo é inserido pelo usuário. Quando uma publicação por meio destas plataformas viola direitos autorais há incerteza sobre quem deve ser responsabilizado pela violação – se o prestador do serviço que oferece a plataforma, o usuário que adiciona o conteúdo ou ambos. O DMCA introduziu o conceito de “notificação e retirada” determinando responsabilidades por meio do seguinte procedimento: 1) o alegado titular dos direitos autorais, quando identifica uma suposta violação aos seus direitos, notifica o provedor de serviços; 2) o provedor tem duas opções: ou retira o conteúdo com a suposta violação (de maneira “expedita” – que se entende como até 24 horas) ou a mantém e assume responsabilidade pelo conteúdo; 3) ao retirar o conteúdo, o provedor deve notificar o usuário (se for possível fazê-lo) que, por sua vez, pode contranotificar, assumindo ele (usuário) a responsabilidade pela publicação e por eventual infração ao direito autoral; 4) o conteúdo, neste último caso, é posto de volta no site se o titular do direito autoral não iniciar um processo contra o usuário em 10 dias úteis.

Tudo ocorre na esfera extrajudicial, sem qualquer decisão da Justiça. Desta maneira, o DMCA buscou dar segurança jurídica aos serviços de Internet que se baseiam em conteúdos de usuários, ao mesmo tempo que fornece aos titulares de direito autoral um instrumento para impedir violações.

A introdução do mecanismo no anteprojeto brasileiro
O modelo de “notificação e retirada” foi introduzido no anteprojeto que reforma a lei de direito autoral por meio do artigo 105-A (segue na íntegra abaixo). O artigo segue em linhas gerais o modelo americano, com duas modificações relevantes: no caso de contranotificação do usuário, o usuário passa a assumir a responsabilidade exclusiva pelo conteúdo e após uma eventual contranotificação o provedor de Internet deve imediatamente republicar o conteúdo. Além disso, qualquer outra pessoa interessada (que não o autor da publicação original) pode contranotificar, desde que assuma responsabilidade por eventual infração autoral realizada pelo usuário que publicou o conteúdo.

Críticas ao mecanismo
Embora em tese o mecanismo de notificação e retirada busque equilibrar o interesse dos titulares com o interesse dos provedores de serviço e dos usuários, na prática o mecanismo tem sido sistematicamente abusado pelos titulares. Foram essas críticas que expressei na matéria do Estado de São Paulo e que deram origem à reação do MinC.

A crítica consiste no fato de que o mecanismo de notificação e retirada cria, na prática, uma censura privada. Em primeiro lugar, o detentor dos direitos autorais, ao notificar, faz simplesmente uma alegação de violação, na esfera extrajudicial, que não é comprovada por qualquer instância jurisdicional (um juiz, por exemplo). Obviamente, os titulares tendem a interpretar a lei de maneira restritiva, minimizando, por exemplo, as possibilidades de usos livres conferidas pelas exceções e limitações dos direitos autorais (ou do fair use, no caso americano). Por exemplo, segundo estimativa da rede americana de clínicas de Direito, Chilling Effects, (formada por clínicas das universidades de Harvard, Stanford, George Washington, entre outras) cerca de 60% das alegações de violação utilizando o notice and takedown são improcedentes, seja porque simplesmente não há violação (são usos cobertos pelo fair use), ou porque a violação não é de direito autoral (é de marca, por exemplo) ou porque os procedimentos formais não foram realizados de maneira adequada. Apesar disso, os titulares conseguem atingir o objetivo de retirar o conteúdo já que os provedores de serviços de Internet preferem retirar o conteúdo e notificar o usuário a enfrentar o ônus legal de mantê-lo.

Embora o Brasil ainda não tenha formalmente o mecanismo, já enfrentamos notificações extrajudiciais em massa que servem como teste de ensaio para a introdução formal do mecanismo. Veja o seguinte exemplo. A Associação Brasileira de Direito Reprográfico (ABDR), que representa algumas grandes editoras, faz notificações extrajudiciais em massa a provedores de serviço de Internet (cerca de dez mil por mês). São notificações que alegam que determinada obra do catálogo de uma editora filiada está sendo disponibilizada sem autorização e que se ações não forem tomadas para retirar a publicação, medidas judiciais serão tomadas em face dos provedores. Os provedores então, para não assumir o ônus judicial, quase sempre retiram o conteúdo (ao ponto de a ABDR utilizar a retirada de conteúdo como “indicador” de sucesso).

Acontece que, neste caso, não há decisão judicial para averiguar se o uso que se faz das obras autorais é, por exemplo, coberto por limitações ao direito autoral – o que poderia acontecer com frequência, já que uma decisão recente do STJ indicou que as limitações na atual lei são exemplificativas, ou seja, nem todas as limitações estão expressamente previstas na lei de direitos autorais.

No caso dos livros, há vários levantamentos empíricos no Brasil indicando que entre 25% e 35% dos livros demandados pelas universidades (que é a maior parte da disponibilização de conteúdo na Internet) estão esgotados. Isso indica duas coisas: 1) o fato de os livros não estarem mais sendo vendidos ajuda a descaracterizar a responsabilidade civil – por ausência de dano – e pode, inclusive, ser encarada como uma limitação, numa interpretação extensiva como a estabelecida pelo STJ e também se interpretado à luz da Constituição Federal no que diz respeito à função social da propriedade e do acesso à educação; 2) muito provavelmente as editoras já não detêm os direitos de vários dos livros dos quais se dizem titulares já que a cessão contratual de direitos muitas vezes expira após alguns anos ou ainda elas podem jamais ter sido as titulares destes direitos, uma vez que a publicação digital de textos é um direito diverso da publicação física.

Isso posto, me parece bastante caracterizado o fato de que esse mecanismo cria uma censura privada, uma vez que conteúdo é suprimido em razão de uma simples notificação, sem qualquer intervenção judicial. Na proposta brasileira, abre-se a possibilidade de uma contranotificação por parte do usuário, após a qual a obra deve ser imediatamente republicada – no entanto, a disparidade entre o poder econômico dos titulares (editoras, gravadoras e produtores de audiovisual) e os usuários fará com que seja excessivamente oneroso aos usuários da Internet defender seu direito de publicação. Na prática, teremos uma censura privada – como aliás, já acontece.

O MinC alega que não se trata de censura, “porque censura carrega em si um crivo de conteúdo moral, ético, político ou doutrinário inexistente na proposta do MinC para o direito autoral.” O fato de este mecanismo fazer censura “apenas” para defender interesses econômicos – muitas vezes sem amparo na lei – me parece tão ou mais grave do que a censura feita com motivação moral ou política, justamente por ser mais difícil de identificá-la claramente. Censura é censura e seus efeitos são igualmente nefastos e anti-democráticos.

Além disso, o MinC alega que no meu argumento há “erro de princípio, porque inverte as ordens de direitos: obviamente, para se utilizar qualquer obra protegida, é fundamental e lógico que se obtenha primeiro a autorização do titular”. Aqui, de novo, acho que há uma profunda divergência de interpretação sobre o que é o direito autoral. Para o MinC tudo é protegido e para qualquer uso deve haver autorização – é a assunção da opressão do privado sobre o interesse público. O que o MinC está defendendo na nota é o direito autoral como hiper-propriedade – na qual o titular não tem deveres, só direitos – e como direito absoluto e superior a todos os demais direitos fundamentais, como o acesso à educação, à informação e à cultura. Eu, por meu lado, acredito que essa visão patrimonialista e proprietária do direito autoral não leva em conta o fato de que o direito autoral nasceu limitado: limitado porque protege só a forma e não o conteúdo, limitado porque a proteção tem prazo determinado, limitado porque vários usos foram historicamente considerados livres (citação, sátira, etc), limitado porque não é nem o único nem o direito mais importante. Penso que o direito autoral já é – e deve ser cada vez mais – uma ilha de exclusividade num imenso mar de usos livres e de obras plenamente livres. Do outro lado, parece que a atual gestão do MinC vê o direito autoral como a UDR vê a propriedade fundiária. É lamentável que tal visão seja respaldada por correntes de um partido dos trabalhadores.

* Agradeço ao Pedro Paranaguá e ao Allan Rocha de Souza por comentários a uma primeira versão deste texto. Eventuais erros, como de costume, são todos meus.

Íntegra do artigo 105-A:
“Art. 105-A. Os provedores de aplicações de Internet poderão ser responsabilizados solidariamente, nos termos do art. 105,  por danos decorrentes da colocação à disposição do público de obras e fonogramas por terceiros, sem autorização de seus titulares, se notificados pelo titular ofendido ou mandatário e não tomarem as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

§ 1o Os provedores de aplicações de Internet devem oferecer de forma ostensiva ao menos um canal eletrônico dedicado ao recebimento de notificações e contranotificações, sendo facultada a criação de mecanismo automatizado para atender aos procedimentos dispostos nesta Seção.
§ 2o A notificação de que trata o caput deste artigo deverá conter, sob pena de invalidade:
I – identificação do notificante, incluindo seu nome completo, seus números de registro civil e fiscal e dados atuais para contato;
II – data e hora de envio;
III – identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material pelo notificado;
IV – descrição da relação entre o notificante e o conteúdo apontado como infringente; e
V – justificativa jurídica para a remoção.
§ 3o Ao tornar indisponível o acesso ao conteúdo, caberá aos provedores de aplicações de Internet informar o fato ao responsável pela colocação à disposição do público, comunicando-lhe o teor da notificação de remoção e fixando prazo razoável para a eliminação definitiva do conteúdo infringente.
§ 4o Caso o responsável pelo conteúdo infringente não seja identificável ou não possa ser localizado, e desde que presentes os requisitos de validade da notificação, cabe aos provedores de aplicações de Internet manter o bloqueio.
§ 5o É facultado ao responsável pela colocação à disposição do público, observados os requisitos do § 2o, contranotificar os provedores de aplicações de Internet, requerendo a manutenção do conteúdo e assumindo a responsabilidade exclusiva pelos eventuais danos causados a terceiros, caso em que caberá aos provedores de aplicações de Internet o dever de restabelecer o acesso ao conteúdo indisponibilizado e informar ao notificante o restabelecimento.
§ 6o Qualquer outra pessoa interessada, física ou jurídica, observados os requisitos do § 2o, poderá contranotificar os provedores de aplicações de Internet, assumindo a responsabilidade pela manutenção do conteúdo.
§ 7o Tanto o notificante quanto o contranotificante respondem, nos termos da lei, por informações falsas, errôneas e pelo abuso ou má-fé.
§ 8o Os usuários que detenham poderes de moderação sobre o conteúdo de terceiros se equiparam aos provedores de aplicações de Internet para efeitos do disposto neste artigo.“

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Rodas de conversa sobre a cultura digital

Fonte: A Rede

PARTE I

3º Festival da Cultura Digital: as redes nas ruas

Áurea Lopes
5/12/2012 

O vão livre do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi mais do que apropriado para traduzir o espírito do 3º Festival de Cultura Digital. A ideia era levar o conceito e o movimento do conhecimento livre para a rua, romper as barreiras dos espaços físicos fechados e até mesmo as limitações do mundo virtual. De 2 a 4 de dezembro, centenas de ativistas, estudiosos e interessados em aprender sobre cultura livre e democratização do acesso às tecnologias da informação e da comunicação passaram pelos vários palcos do evento – literalmente aberto a relatos de experiências, trabalhos colaborativos, demonstrações de projetos e rodas de conversas.

Todas as atividades procuraram se orientar pelo espírito “da produção e da apropriação do bem comum, seja esse bem cultural ou resultado material de uma criação intelectual”. Essa ideia vem da palavra commons, da língua inglesa, que contém um conceito tão abrangente que ainda não há uma tradução consensual para o português – discussão que também foi objeto de reflexão entre os participantes do festival, empenhados em trazer os temas da liberdade de expressão e produção mais próximo da sociedade brasileira.

“Essas estruturas vazadas para que todos possam ver, participar, representam a proposta do festival. Nós ocupamos o espaço público. Foi um exercício de liberação das potências da internet para as redes físicas, provocando processos inovadores”, avaliou Rodrigo Savazoni, diretor geral do festival.
Pela primeira vez, o encontro de cultura digital aconteceu fora de São Paulo, em um local aberto e sob a forma de festival – as edições anteriores seguiram o modelo de fóruns. As atividades foram distribuídas em seis eixos: Mostra de experiências, Visualidade, Laboratório Experimental, Espaço Multimídia, Encontro de Redes e Arena de debates. O ex-ministro Gilberto Gil foi o embaixador do festival e recebeu, na cerimônia de abertura, o professor Yochai Benkler, diretor do Berkman Center for Internet. 

Presente em todos os dias do festival, o ex-ministro participou, ao lado do compositor Jorge Mautner, de um debate na Arena sob o tema “Ocupações, revoluções, redes: articulação do movimento global”, em que falaram também moradores de rua que participam de uma ocupação urbana na Cinelândia. Fazendo uma análise sobre as mobilizações sociais contemporâneas, impulsionadas pelas tecnologias, Gil disse: “O rio da história arrasta muita coisa. As novas ofertas [referindo-se à internet] são aparentemente libertadoras. Mas não eliminam a necessidade da vigília, da disposição de lutar pela atenuação, que seja, das desigualdades. É sempre assim, não dá para aliviar, é preciso nadar contra o aluvião das injustiças”.


PARTE II

Projetos e articulações nos variados eixos da cultura digital

A troca de conhecimentos, experiências, links e aplicativos aconteceu em variados formatos e espaços durante o 3º Festival de Cultura Digital. Mas as conexões transcenderam a grade de programação. “O que estamos vivendo aqui é uma rede de afetos, que entrelaça as relações de pessoas para pessoas”, sintetizou Régis Bailux, do coletivo Bailux de metareciclagem.

Para abrigar um dos seis eixos do festival, um dos espaços da cidade do Rio de Janeiro escolhido foi o cine Odeon, na Cinelândia, onde aconteceram as palestras de convidados internacionais, como Yochai Benkler, diretor do Berkman Center for Internet, Michel Bauwens, fundador do Peer-to-peer, entre outros.

No Museu de Arte Moderna (MAM), coletivos com foco em arte, educação, direitos humanos e serviços públicos apresentaram seus trabalhos na sala da Cinemateca. No vão ivre do museu, as bancadas do Laboratório Experimental promoveram a troca livre de conhecimentos e desenvolvimentos colaborativos utilizando tecnologias livres.

“Este ano, quisemos quebrar a expectativa das pessoas em relação às oficinas, onde você v em e aprende a fazer algo. Neste festival, temos as pessoas dialogando e produzindo, espontaneamente, com liberdade”, disse Felipe Fonseca, um dos organizadores do laboratório. Ele apontou, entre outros projetos do laboratório, um trabalho com cartografia experimental. “Estamos falando do uso de mapas e cartografia como ferramenta e metodologia de interferir na realidade, a partir de sistemas livres de georeferenciamento”.

O Festival recebeu também o Ônibus Hacker, que fez sua primeira viagem, vindo de São Paulo com mais de 30 ativistas da transparência de dados públicos. O ônibus, projeto que se viabilizou a partir de uma iniciativa de financiamento coletivo, está se preparando para percorrer o país e levar às comunidades o conceito e a prática do direito cidadão de ter acesso aos dados governamentais, em todas as instâncias. O ônibus, que recebeu a vista do embaixador do Festival, Gilberto Gil, voltou para São Paulo equipado com um circuito de transmissão de rádio FM feito em uma das oficinas do festival.

 

PARTE III

Ministério da Cultura apresenta propostas e abre debate com ativistas

Em roda de conversa sobre participação cidadã, dia 4, no 3º FCD, o secretário de Políticas Públicas, Sérgio Mamberti, e o coordenador-geral de Mídia Digital, José Murilo Jr., apresentaram as iniciativas que o ministério da Cultura vem encaminhando dentro do Plano Nacional de Cultura.
Murilo falou sobre a criação do Sistema Nacional de Informações Culturais (SNIC), que está sendo desenhado para ser uma plataforma de dados abertos que a sociedade poderá não apenas consultar, mas complementar e também utilizar as informações de forma livre, uma vez que as APIs serão abertas. "Imaginamos uma espécie de Google Maps da cultura brasileira", disse o coordenador. A partir dessa base de dados, esclareceu, a população poderá construir serviços e aplicativos. "O sistema vai exigir a participação de produtores e artistas, que deverão manter o banco atualizado", completou. A grande riqueza, acrescentou, o volume de informações desse acervo virá da interlocução com a sociedade.

Murilo também apresentou ao público do 3º FCD a proposta do ministério de criar um registro unificado de obras de arte, acoplado a uma licença pública para bens culturais. Os detalhes da nova licença ainda não estão definidos: “Queremos construir esse conceito junto com a sociedade, com vocês, para isso estamos aqui. O diálogo está aberto e o ministério espera as contribuições”.

Sérgio Branco, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, colocou a preocupação de que a licença pública não venha excluir a licença Creative Commons. Murilo garantiu que não será uma licença obrigatória, tampouco virá para substituir a licença Creative Commons. Poderão ser usadas ambas, adiantou. "A combinação de registro autoral com uma licença customizada vai permitir que o autor decida que tipo de incentivo à circulação deseja para sua obra", avaliou.

O secretário Mamberti anunciou que no início de 2012 o MinC deverá publicar o mapeamento dos projetos do Pronac, com dados do período 1995-2011: "Vamos abrir a caixa de Pandora, com detalhamento de tudo o que foi pago a produtores, artistas e todos os envolvidos nas iniciativas financiadas com recursos do Pronac".