sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A cultura como política exige uma política para a cultura

A cultura e os novos horizontes para a participação social

O Ministro da Cultura anunciou a criação de um Gabinete Digital, espaço de dialogo e participação da sociedade apoiado no uso das novas mídias digitais.


Vinicius Wu (*) 

 

ArquivoO retorno de Juca Ferreira ao Ministério da Cultura, MinC, abre novas possibilidades para a experimentação em termos de governança democrática no âmbito do Governo Federal. Juca assume decidido a inovar e coloca o diálogo no centro de uma nova estratégia de relacionamento entre Estado e sociedade.

A reoxigenação de nossas Instituições democráticas é um dos grandes desafios do Estado brasileiro nas próximas décadas. Refletir sobre a gestão pública a partir dessa perspectiva é fundamental e a cultura pode ser um terreno privilegiado para a adoção de instrumentos e metodologias inovadoras de participação.

O Ministro da Cultura anunciou, em sua posse, a criação de um Gabinete Digital, espaço de diálogo e participação da sociedade civil apoiado no uso das novas mídias digitais. A proposta, imediatamente atacada por setores conservadores, é coerente com esforços realizados por governos das mais distintas vertentes ideológicas, interessados na renovação da governança democrática no século XXI.

Diversas cidades do mundo - como Nova York, Barcelona e Londres - e governos nacionais - como o dos EUA e da Alemanha - investem em tecnologias destinadas à ampliação da participação da sociedade nas decisões públicas, bem como ao aumento da transparência e do controle social sobre o Estado. Instituições multilaterais, como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas estimulam e apoiam ações governamentais dessa natureza. 

Governos locais e regionais no Brasil têm desenvolvido iniciativas semelhantes, tais como a administração municipal de Caruaru, em Pernambuco, ou o Governo do Rio Grande do Sul, estado pioneiro nesse quesito durante a gestão de Tarso Genro. 

Juca Ferreira terá um duplo desafio. De um lado, deve reativar toda a energia despertada por políticas públicas inovadoras implantadas durante sua primeira passagem pelo Ministério, como é o caso dos Pontos de Cultura. E de outro, terá de renovar sua agenda, podendo avançar em temas emergentes como o da participação cidadã na era digital, a radicalização da transparência e a gestão colaborativa do Estado. 

E é exatamente no campo da governança democrática que o MinC pode oferecer uma enorme contribuição ao segundo mandato de Dilma. Se lograr instituir uma dinâmica de colaboração na gestão cultural do país, que esteja fortemente ancorada no mundo da cultura e dialogue com os novos movimentos culturais e da juventude, permitindo a abertura de canais de participação adequados às exigências da complexa sociedade em rede do século XXI, Juca poderá contribuir para o enfrentamento de uma das mais desafiadoras tarefas do novo governo petista, qual seja, a busca por respostas ao esgotamento do atual sistema político brasileiro e ao desencantamento com a política, elementos que estiveram na base dos protestos de 2013.

A cultura em suas três dimensões fundamentais – simbólica, cidadã e econômica – pressupõe a afirmação de direitos e a conformação de estratégias públicas que afirmem a autonomia dos indivíduos e o empoderamento da sociedade civil, considerando toda sua diversidade e complexidade.

Ao colocar o diálogo como elemento central de sua gestão à frente do MinC, Juca Ferreira oportuniza ao Ministério um novo papel – estratégico – na afirmação de uma visão de Estado, que contribua para a consolidação dos valores da república e da democracia no Brasil. É, sem dúvida alguma, um debate que vai muito além da gestão das políticas culturais no Brasil.

Mesmo sem a pretensão de obter respostas definitivas aos grandes dilemas da democracia e da gestão pública no mundo contemporâneo, o chamado do MinC ao diálogo e à participação estimula a reflexão sobre o próprio significado da ação estatal e desafia toda a comunidade cultural a pôr-se em movimento.


(*) Vinicius Wu, historiador, Secretário de Articulação Institucional do Ministério da Cultura, coordenou a implantação do Gabinete Digital do Governo do RS. 
No Twitter: @vinicius_wu

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Informação: banco de dados, comunicação dos dados? Do que é feita a opinião pública?

26/jan/2015, 9h09min 
Sul21 

“Informação é a melhor arma para enfrentar o preconceito”, diz Tereza Campello



Marco Weissheimer

“O Brasil Sem Miséria acabou implementando um padrão de inovação nas políticas sociais brasileiras que coloca um ponto de não retorno”. 
 Foto: Roberta Fofonka/Sul21
"O Brasil Sem Miséria acabou implementando um padrão de inovação nas políticas sociais brasileiras que coloca um ponto de não retorno". Por Roberta Fofonka/Sul21Após a disputa eleitoral de 2014, houve um grande crescimento do volume de manifestações preconceituosas contra vários setores da sociedade, em especial negros, pobres e nordestinos. O fenômeno não é novo, mas reapareceu com força no final do ano passado.

“O que piorou muito não está relacionado à media da opinião da população. O problema está entre aqueles setores mais reacionários que nutrem uma coisa racista contra os mais pobres. Essas pessoas passaram a ter coragem de expressar seus preconceitos mais abertamente. Saíram do armário”, diz a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello.

Em entrevista ao Sul21, Tereza Campello analisa as causas desse tipo de preconceito e defende que a informação é a melhor arma para combatê-lo. “Recentemente tivemos o caso de uma jornalista que disse que os pobres só pensam em procriar. É um negócio inacreditável. Os dados sobre taxa de fecundidade no Brasil, hoje, são completamente conhecidos. A taxa de fecundidade brasileira caiu em todas as classes sociais e caiu muito mais entre os mais pobres, uma queda em torno de 50% acima da média nacional”, exemplifica.

A ministra também fala sobre o atual estágio das políticas sociais no Brasil, aponta as prioridades para o próximo período e nega que programas como o Bolsa Família possam sofrer cortes em função de medidas de ajuste fiscal.

Sul21: Em que ponto estamos hoje no processo de construção de políticas sociais iniciado no primeiro governo Lula e que entra agora em seu quarto governo? Quais são os planos do MDS daqui para frente, qual o olhar para o futuro?

Tereza Campello: Estamos em um ponto parecido ao que estávamos quando a presidenta Dilma assumiu. Naquele momento, quando olhávamos para trás víamos oito anos de muito sucesso que tiveram como carro chefe a agenda social e como resultados a inclusão de milhões de brasileiros, a geração de empregos e muitos investimentos na área social. Parecia que não era possível avançar numa agenda que já tinha avançado tanto e que o trabalho a ser realizado era basicamente de manutenção. Aí a presidenta lançou um mega e ousado plano que foi o Brasil Sem Miséria. Acho que as pessoas não têm muita noção da dimensão desse programa. Nós não fomos tão bem tratados pela mídia tradicional, mas nós também somos ruins de comunicação.

Sul21: Qual é essa dimensão do Brasil Sem Miséria que não ficou bem visível para a sociedade?

Tereza Campello: O Brasil Sem Miséria acabou implementando um padrão de inovação nas políticas sociais brasileiras que coloca um ponto de não retorno. Cada vez que se avança muito, se estabelece um novo degrau. Acho que estabelecemos uma verdadeira laje, que nos dá bagagem para dar um salto muito superior. A presidenta fez algumas inflexões nas políticas sociais que são pouco conhecidas.

Sul21: Que inflexões foram essas?

“Agora chegamos num patamar em que é possível dizer: o Bolsa Família está universalizado”. Foto: Roberta Fofonka/Sul21
"Agora chegamos num patamar em que é possível dizer: o Bolsa Família está universalizado". Por Roberta Fofonka/Sul21 
Tereza Campello: Em primeiro lugar, estabeleceu a ideia de que precisamos universalizar a rede de proteção social no Brasil. Isso não estava colocado. Agora chegamos num patamar em que é possível dizer: o Bolsa Família está universalizado. Certamente ainda tem gente que está fora, mas é muito residual. No caso de qualquer política em que falta abranger 150 mil famílias em um universo de 50 milhões, você pode dizer que universalizou. Mas isso não aconteceu por acaso. Foi uma determinação da presidenta Dilma. Ela determinou que fizéssemos uma busca ativa. Se há pessoas fora do sistema, é responsabilidade do Estado ir buscá-las. A responsabilidade é do Brasil Sem Miséria. Isso muda a equação. Essas pessoas são tão pobres, estão tão distantes e foram tão excluídas e abandonadas que não chegarão ao Estado brasileiro. Então, o Estado deve ir buscá-las.

A segunda inflexão, que diz respeito a algo que também não existia nas políticas públicas voltadas à população pobre no Brasil, é estabelecer uma linha abaixo da qual o Estado não aceita mais que as pessoas estejam. Uma coisa é ter um conceito de linha de pobreza para medir e poder fazer quantificações. Outra coisa é ter uma linha e estabelecer que, quem estiver abaixo dessa linha, terá uma complementação de renda garantida pelo Estado. Isso não é apenas um ditame, mas vem acompanhado de uma política pública que vai dar conta do problema. Introduziu uma mudança no Bolsa Família, fazendo com que o benefício variasse para completar a renda de quem estivesse abaixo da linha da pobreza. Essa foi uma mudança muito importante não só no que o Estado brasileiro assumiu para ele, como de referência para outros países. Tem gente que olha e não acredita que estamos fazendo isso. De fato, é uma inovação muito grande.

É óbvio que só foi possível fazer essas inflexões porque havia oito anos de governo Lula atrás. Houve ainda uma terceira grande inflexão que consistiu em dizer: não é só renda; nós queremos que os adultos tenham acesso a oportunidades para melhorar a sua renda. Isso envolve, entre outras coisas, capacitação profissional, acesso a bancos, possibilidade de formalização via carteira assinada, micro ou pequena empresa, cooperativa, economia solidária. Nós fizemos uma ação massiva muito forte de inclusão econômica dessa população. Isso não quer dizer que essas pessoas não trabalhassem. Trabalhavam (e trabalham). O que não tinham era qualificação profissional, tecnologia, informação, acesso a crédito, etc.

"Independente da existência de grandes políticas universais em áreas como saúde e educação, se você não tiver um caminho diferenciado a população pobre não acessa os serviços públicos". Foto: Roberta Fofonka/Sul21
“Independente da existência de grandes políticas universais em áreas como saúde e educação, 
se você não tiver um caminho diferenciado a população pobre não acessa os serviços públicos”. 
Foto: Roberta Fofonka/Sul21


A última coisa, falando das inflexões, é que ficou claro para o Estado brasileiro uma coisa que, de certa forma, é óbvia, mas que não estava tão institucionalizado e que o Brasil Sem Miséria transformou em legado. É a noção de que, independente da existência de grandes políticas universais em áreas como saúde e educação, se você não tiver um caminho diferenciado a população pobre não acessa os serviços públicos. Queremos creches para todos, mas se tivermos um caminho tradicional de universalização, os últimos a serem universalizados serão os mais pobres. Queremos a possibilidade de que todos façam tomografia, mas, pelos caminhos tradicionais, os mais pobres serão os últimos a fazer. E assim por diante…

Então, para construir uma agenda de equidade dentro de uma política de universalização é preciso ter um caminho diferente que faça com que os mais pobres sejam incluídos ao mesmo tempo em que os outros, que não sejam os últimos a serem atendidos. É preciso ter um caminho diferenciado para essa faixa da população ter acesso à creche, ao Mais Médicos, a uma escola em tempo integral, ao crédito, etc.

Sul21: E esse caminho diferenciado é também, ele próprio, uma política pública…

Tereza Campello: São várias políticas. O Brasil Sem Miséria construiu esse espaço. Todo mundo sentava à mesa para discutir, por exemplo, como fazer para que a escola em tempo integral chegasse aos mais pobres, como fazer para que as comunidades mais pobres não fossem as últimas a terem acesso a essa escola. A partir daí fomos construídos vários caminhos para atingir esse objetivo.

Sul21: Qual é o universo de pessoas que é objeto da busca ativa hoje? Quantas famílias ainda não tem acesso às políticas públicas do Estado brasileiro?

“O que melhor expressa a nossa ambição é aquela frase da presidenta Dilma na posse: nenhum direito a menos, nenhum passo atrás”. Foto: Roberta Fofonka/Sul21

"O que melhor expressa a nossa ambição é aquela frase da presidenta Dilma na posse: nenhum direito a menos, nenhum passo atrás".  Foto: Roberta Fofonka/Sul21Tereza Campello: A nossa estimativa é de um universo de 150 mil famílias, algo em torno de 600 mil pessoas. É muita gente ainda. Além disso, temos que fazer um esforço gigantesco para impedir que as pessoas que melhoraram de vida e que foram incluídas voltem à situação anterior de pobreza. Nós não podemos deixar que isso aconteça em hipótese alguma. O que melhor expressa a nossa ambição é aquela frase da presidenta Dilma na posse: nenhum direito a menos, nenhum passo atrás. É uma frase muito forte que afirma que não vamos recuar em direitos.

O Brasil Sem Miséria fechou um ciclo. Não que não existam mais pessoas a serem buscadas, mas cumprimos com todas as metas que havíamos definido para esses últimos quatro anos. Elaboramos um diagnóstico conjunto no governo, organizamos um conjunto de políticas, criamos um sistema de monitoramento, executamos e entregamos tudo, algumas coisas acima das metas fixadas e outras que nem estavam previstas.

Sul21: Como funciona esse processo de busca ativa na prática?

Tereza Campello: Ele ocorre de várias maneiras, pois o Brasil tem regiões e situações muito diferentes. Fizemos, por exemplo, alguns mutirões com barcos em reservas extrativistas na Amazônia, e encontramos pessoas muito pobres que ainda não havíamos localizado e que não tinham nem documentos. Chegamos a encontrar quatro gerações de uma mesma família sem qualquer documento, nem certidão de nascimento. Essa situação melhorou muito, pois o governo fez um esforço gigante, principalmente por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário com a política nacional de documentação de registro civil. Mais de um milhão de documentos foram emitidos com essa política. Nós contratamos a Marinha que acabou fazendo 120 lanchas que foram distribuídas a municípios da região Norte, com o objetivo de localizar essas famílias.

Também realizamos busca ativa em algumas regiões metropolitanas. Em São Paulo, por exemplo, aumentou muito o número de pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família. Quando Fernando Haddad assumiu em São Paulo, essa busca passou a ser política da prefeitura. Aqui no Rio Grande do Sul tínhamos uma baixa cobertura também que melhorou bastante nos últimos anos. Houve mutirões aqui também. Em resumo, há diferentes formas de implementar a busca ativa. Foram sendo construídos desenhos adequados às diferentes realidades encontradas no país.

Sul21: Há um debate agora, no início do segundo governo Dilma, sobre os rumos da política econômica. Fala-se da necessidade de ajustes e de alguns cortes no orçamento da União. Esses ajustes e cortes representam, na sua avaliação, alguma ameaça para a continuidade das políticas sociais?

Tereza Campello: Não há risco de cortes de benefícios ou de serviços sociais. O que todo mundo vai ter que fazer é um esforço para diminuir gastos da máquina. Sempre é possível melhorar aí. Nós temos também mecanismos de controle dentro de nossos programas para localizar pessoas que estejam recebendo benefícios de forma indevida. Isso não tem a ver com o ajuste fiscal, mas sim com nosso esforço permanente para ter uma política cada vez mais eficiente, que chegue aqueles que mais precisam. Podem ocorrer algumas coisas que não têm nada a ver com cortes. Nós fizemos, por exemplo, 750 mil cisternas. Praticamente universalizamos as cisternas na região do Semi Árido. Ainda há cisternas a serem feitas, algo em torno de 50 mil por ano. Nós estávamos fazendo 50 mil a cada dois meses. Então se olharmos para o dinheiro disponível para cisternas, veremos que ele é muito menor do que já foi, mas isso se deve ao sucesso que tivemos no cumprimento de nossas metas.

“Hoje temos 14 milhões de famílias dentro de nosso radar. Nós sabemos onde essas famílias estão, criamos uma ferramenta no Brasil que é a nossa tecnologia social mais difundida no mundo”. Foto: Roberta Fofonka/Sul21
Tereza CampelloSul21: A senhora tem qualificado, em algumas ocasiões, programas como o Bolsa Família como construtores de políticas e instrumentos de reforma do Estado brasileiro. Poderia detalhar um pouco mais essa qualificação?

Tereza Campello: Hoje temos 14 milhões de famílias dentro de nosso radar. Nós sabemos onde essas famílias estão, criamos uma ferramenta no Brasil que é a nossa tecnologia social mais difundida no mundo. Nós exportamos hoje essa ideia do cadastro único. Temos um espaço de registro que não serve apenas para pagar o Bolsa Família. Ele fornece informações sobre essas famílias e é alimentado por outras fontes também. Nós estamos alimentando o cadastro do Bolsa Família, por exemplo, com dados do Banco Central sobre microcrédito. Nos interessa saber se essas famílias têm acesso a crédito, não com o objetivo de fazer algum tipo de fiscalização, mas para poder criar outras ferramentas que possam auxiliá-las. Esse tipo de cruzamento de dados permite também um olhar mais apurado sobre os territórios onde essas famílias vivem e sobre possíveis oportunidades para melhorar a sua qualidade de vida.

Nós fizemos isso com o Mais Médicos. O novo decreto do programa repete esse mesmo desenho que permite, entre outras coisas, apontar onde há mais problemas para os médicos irem. Pegamos o mapa do Bolsa Família e colocamos sobre o território brasileiro, localizando as regiões onde havia posto de saúde e onde havia maior concentração de população pobre. Isso nos ajudou a definir as regiões onde a necessidade de médicos era mais urgente. Esse é um exemplo do que chamo de papel construtor de outras políticas desempenhado pelo Bolsa Família. Nós precisamos avançar agora em controle social.

Sul21: Por onde passa esse avanço?

Tereza Campello: Passa por várias coisas. Estou pensando muito neste tema agora. Considere o Bolsa Família, por exemplo. É um programa pulverizado, onde as famílias recebem o benefício. Há alguns elementos de transparência que nos ajudam com o controle público. Todos os beneficiários estão com o nome no Portal da Transparência. Quem quiser saber se o vizinho recebe Bolsa Família pode descobrir acessando esse portal. Esse é um passo importante que ajuda o controle social. Nós queremos que cada município tenha seu conselho de assistência social. Temos pressionado para que isso aconteça. Não é uma relação simples, pois temos entidades filantrópicas, gestores públicos, usuários e movimentos sociais com assento nesses conselhos. Mas é só assim que se constrói controle social, com as pessoas e entidades envolvidas sentando em volta de uma mesa e estabelecendo um espaço de diálogo. Um exemplo disso é o que vem acontecendo no Conselho Nacional de Assistência Social e no Conselho Nacional de Saúde onde temos, pela primeira vez, representantes da população de rua. São setores muito organizaram que se mobilizaram, criaram a sua institucionalidade e vem participando e cobrando o setor público.

"O nível de preconceito que emergiu na sociedade neste período pós-eleitoral é algo assustador". Foto: Roberta Fofonka/Sul21“O nível de preconceito que emergiu na sociedade neste período pós-eleitoral é algo assustador”. Foto: Roberta Fofonka/Sul21

No Brasil Sem Miséria, nós fizemos seis diálogos com diferentes grupos da sociedade civil. Ouvimos críticas e sugestões antes de concluir o formato final do programa. Nós temos um espaço de diálogo e participação social muito forte, com gente muito qualificada e comprometida com uma agenda de avanço das políticas sociais. Agora, nenhum desses atores representa, de fato, aqueles mais pobres que geralmente não estão sindicalizados ou organizados em torno de alguma entidade. Então, nós temos um desafio colocado para o Estado e para os setores organizados da sociedade que consiste em ouvir a voz dessas pessoas. Hoje, ela começa a aparecer em tudo o que é lugar. Não é mais uma coisa esporádica. Agora, há muitos casos onde as pessoas não têm coragem de falar por conta do preconceito. O nível de preconceito que emergiu na sociedade neste período pós-eleitoral é algo assustador.

Sul21: Qual a sua avaliação sobre a crescente emergência dessas manifestações de preconceito contra setores mais pobres da população, vistas neste período mais recente?

Tereza Campello: Eu acho que piorou. Nós tivemos um período muito ruim do começo do governo Lula até 2005, 2006. Foi algo muito violento. Depois essas manifestações de preconceito diminuíram. Os raivosos pararam de falar e passaram a ficar envergonhados diante dos resultados muito efetivos que obtivemos. Hoje, mesmo com toda a tensão e radicalização verificada na última campanha eleitoral, a maioria da população brasileira é a favor do Bolsa Família. Cerca de 70% da população é favorável ao programa. O que muitas pessoas dizem é que não pode ser só isso, o que nós também achamos. Por isso temos o Pronatec, cursos de formação profissional, programas de crédito. O próprio Bolsa Família é também escola e educação.

O que piorou muito não está relacionado à media da opinião da população. O problema está entre aqueles setores mais reacionários que nutrem uma coisa racista contra os mais pobres. Essas pessoas passaram a ter coragem de expressar seus preconceitos mais abertamente. Saíram do armário. A impressão é que aumentou muito o número dos que são contra programas como o Bolsa Família, quando na verdade o que aumentou foi o número dos que têm coragem de falar esse monte de barbaridade, inclusive coisas que não têm a menor aderência com a realidade.

Recentemente tivemos o caso de uma jornalista que disse que os pobres só pensam em procriar. É um negócio inacreditável. A pessoa parece letrada, embora não deva ter ido muito longe para falar uma coisa dessas. Os dados sobre taxa de fecundidade no Brasil, hoje, são completamente conhecidos. A taxa de fecundidade brasileira caiu em todas as classes sociais e caiu muito mais entre os mais pobres, uma queda em torno de 50% acima da média nacional.

Então, não tem o menor cabimento as pessoas continuarem repetindo esse tipo de coisa. Por que repetem? Fico pensando nisso. Outra barbaridade que segue sendo dita é que a pessoa é pobre porque não trabalha. A pessoa é pobre porque é preguiçosa ou porque é uma perdedora, ou as duas coisas juntas. A verdade é que raríssimas pessoas que não se alimentaram bem na infância, que não tiveram oportunidades de formação e tiveram que começar a trabalhar muito jovens, conseguem posições melhores nas suas áreas. A violência dessas manifestações de preconceito constrange quem é pobre, pois difunde, entre as crianças, essa ideia de que a pessoa é pobre porque não trabalha, porque é preguiçosa.

"Perguntei em um programa de rádio do qual participei recentemente quantas crianças temos na escola hoje no Brasil. Ninguém soube responder. São 17 milhões de crianças". Foto: Roberta Fofonka/Sul21
“Tem gente que acha que, para uma família receber o benefício do Bolsa Família, basta ter as crianças matriculadas na escola. Não é isso. A criança tem que frequentar a escola e conferimos a cada mês se ela tem um mínimo de 80% de frequência.” Foto: Roberta Fofonka/Sul21

Sul21: Isso envolve, entre outras coisas, uma disputa cultural e simbólica. No início dessa entrevista, você se referiu a problemas de comunicação. Em que medida esses problemas contribuem para o problema do agravamento do preconceito? Caberia ao governo algum tipo de política nesta área?

Tereza Campello: Contra o preconceito eu acho que cabe sim. Acredito que a melhor arma contra o preconceito é a informação. Tem um monte de gente que repete essas barbaridades por que não tem informação. Ouve alguém falar, acha engraçadinho e sai repetindo a bobagem, que nem essa história dos “pobres gostam de procriar”. A pessoa que disse isso talvez não seja permeável a nenhum tipo de informação e de cultura. Mas, certamente, muita gente que leu essa bobagem sai repetindo sem saber o que está falando. Então, precisamos melhorar a nossa capacidade de transmitir informação clara e de qualidade para a população.

Tem gente que acha que, para uma família receber o benefício do Bolsa Família, basta ter as crianças matriculadas na escola. Não é isso. A criança tem que frequentar a escola e conferimos a cada mês se ela tem um mínimo de 80% de frequência. O nível de exigência sobre essa família é forte e positivo para o país, pois visa garantir a permanência dessa criança na escola. Por maiores problemas que tenha a escola, nela a criança tem acesso a um ambiente mais organizado, ao convívio com outras pessoas, tem acesso à informação, e está fora da rua e do trabalho infantil.

Perguntei em um programa de rádio do qual participei recentemente quantas crianças temos na escola hoje no Brasil. Ninguém soube responder. São 17 milhões de crianças. Esse número aumentou muito graças também ao Bolsa Família. Esse é o tipo de informação que eu acho que tocaria muita gente. Por mais conservadora que a pessoa seja, se ela souber que o Bolsa Família tem esse impacto sobre a saúde e a educação das crianças, pode mudar sua visão.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Democratização da informação, regulação econômica da mídia, liberdade de expressão

Regulamentação da mídia volta à cena em 2015

Escrito por: Reportagem: Emanuelle Brasil/Edição: Daniella Cronemberger
Fonte: Agência Câmara de Notícias
 

Prioridade do novo ministro das Comunicações, tema é controverso no Legislativo

A retomada do debate sobre a regulamentação econômica da mídia é uma das promessas feitas por Ricardo Berzoini ao assumir o Ministério das Comunicações. Discutido pela sociedade civil há muitos anos – sobretudo a partir da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em 2009 – o assunto divide a opinião de deputados.

"É um absurdo essa proposta. Certamente foi encomendada para censurar a imprensa e as práticas democráticas. O PSDB, tanto na Câmara quanto no Senado, vai confrontar essa matéria, que não corresponde aos sentimentos nacionais”, afirmou o líder do PSDB, deputado Antonio Imbassahy (BA).

Já a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) afirma ser uma “falácia” o argumento de que a regulamentação dos meios de comunicação ameaçaria o direito de livre expressão. “Os defensores da democratização da mídia são, justamente, aqueles que estão à margem do ‘direito de antena’ – o direito de emitir e de receber imagens e sons por meio da radiodifusão”, diz. “Os setores dominantes da sociedade não têm nenhum interesse em mudar a dinâmica de poder da mídia”.

Segundo o governo, a ideia é incentivar a regulamentação econômica da mídia eletrônica e impressa, sem tocar no conteúdo. Atualmente, a principal referência legal para a mídia é o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, atualizado pela Lei Geral de Telecomunicações, em 1997.

No entanto, a maioria das normas constitucionais sobre comunicações até hoje não foi regulamentada pelo Congresso. Um exemplo são os princípios para a produção e a programação do serviço de radiodifusão, que deveriam servir de critério para outorga e renovação de concessões.

























Outra lacuna é o direito de resposta, que ficou sem regra específica desde que o STF julgou a Lei de Imprensa inconstitucional, em 2009. O Projeto de Lei 6446/13, que tramita apensado a outras propostas sobre direito de resposta e imprensa, foi incluído várias vezes na pauta do Plenário, no ano passado, mas não houve consenso para votá-lo.

Os princípios constitucionais que preveem a regionalização da programação e o estímulo ao conteúdo independente na televisão também não foram regulamentados por lei. Sobre isso, tramita no Congresso o PL 256/91, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que garante a produção regional independente na TV aberta. Apresentado há 24 anos, o texto foi aprovado pela Câmara, mas encontra-se parado no Senado.

Interesses

A secretária do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Renata Mielli, atribui o atraso no debate sobre a regulamentação ao interesse contrário de alguns parlamentares. “Um obstáculo grave para essa discussão é o fato de termos tantos parlamentares como concessionários de rádio e televisão no Congresso, em razão do processo da década de 1980 e início da década de 1990 para conceder outorgas como moedas de troca em votação de projetos. A gente tem o que se chama de coronelismo eletrônico", afirma.

O artigo 54 da Constituição proíbe os parlamentares de manter contrato ou exercer cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público.

Para Antônio Imbassahy, no entanto, esse tipo de crítica tem o objetivo de constranger os parlamentares. “Se essas concessões irregulares acontecem, é preciso que sejam corrigidas”, afirma. “Uma coisa é censurar a imprensa brasileira, outra coisa é corrigir eventuais irregularidades.”

Fiscalização

A deputada Luiza Erundina acredita ser preciso fiscalizar as concessões de radiodifusão (válidas por 10 anos para a rádio e 15 para a TV) para democratizar o controle dos meios de comunicação. “Quem detinha uma concessão há 30 ou 40 anos, hoje tem um poder muito maior, calibrado pela tecnologia digital”.

Ela afirma que nem os governos mais progressistas tiveram a coragem de desafiar o poder dos “caciques políticos” e dos grandes conglomerados de imprensas, por meio de regras mais transparentes que coíbam a propriedade cruzada – quando o mesmo grupo de comunicação controla diversos tipos de veículos (TV, rádios e jornais).

Na opinião de Renata Mielli, o monopólio de meios de comunicação inviabiliza a regionalização do conteúdo, previsto na Constituição. De acordo com o FNDC, seis famílias controlam 70% da informação produzida no Brasil. “A afiliadas das emissoras que detêm outorga nacional, como a Rede Globo, são obrigadas a reproduzir o conteúdo nacional da cabeça de rede, que responde por 80 ou 90% da grade”, ressaltou.

O FNDC é uma das entidades que recolhem assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular, com o objetivo de regular a mídia brasileira. Chamado de Projeto de Lei de Mídia Democrática, o texto precisa de 1 milhão e 300 mil assinaturas para que possa ser analisado pelos parlamentares.

domingo, 18 de janeiro de 2015

A força da comunicação: poder simbólico, ethos discursivo, "raciocínio" emocional

As bombas semióticas do "Charlie Hebdo" e das "árvores-que-caem-e-matam" em São Paulo

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Os sitemas de controle, o descontrole, Charlie Hebdo

Assange: 'O serviço secreto francês tem muitas perguntas para responder'

Em entrevista à Carta Maior, Julian Assange falou sobre vigilância massiva e as relações dos serviços secretos internacionais com os atentados de Paris.


Marcelo Justo - exclusivo para Carta Maior
 
Ars Electronica / Flickr
Londres - A interpretação do massacre da Charlie Hebdo se transformou em um território em disputa. A liberdade de expressão e a relação com a minoria muçulmana, a dicotomia entre multiculturalismo à britânica ou integração secular à francesa, a luta antiterrorista e privacidade são alguns dos eixos do debate.

No Reino Unido, o diretor do MI5 Andrew Parker propôs uma nova lei antiterrorista que concede mais poderes de vigilância eletrônica aos serviços secretos. Um importante editor e historiador conservador, Mark Hastings, não hesitou em acusar como corresponsáveis do que aconteceu o fundador do Wikileaks Julian Assange e o ex-agente da CIA Edward Snowden. Da Embaixada do Equador em Londres, onde está há dois anos e meio esperando uma autorização para deixar o país, Julian Assange falou à Carta Maior.

Qual é sua interpretação do massacre da Charlie Hebdo?

Como editor, foi um fato extremamente triste que aconteceu com uma publicação que representa a grande tradição francesa da caricatura. Mas agora temos que olhar adiante e pensar o que ocorreu e qual deve ser a reação. É preciso entender que a cada dia acontece um massacre dessa magnitude no Iraque e em outros países do mundo árabe. E isto aconteceu graças aos esforços desestabilizadores dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França. A França participou do fornecimento de armas para a Síria, Líbia e da recolonização do Estado africano de Mali. Isto estimulou o ataque neste caso, usando um alvo fácil como a Charlie Hebdo. Mas a realidade é que o serviço secreto francês tem muitas perguntas para responder sobre o acontecido.

Acredita que houve um fracasso dos serviços secretos franceses?

É o que estão tentando esconder. Os serviços de segurança da França sabiam das atividades dos responsáveis pelo massacre e, no entanto, deixaram de vigiá-los. Por que os irmãos Kouachi, conhecidos por seus laços com extremistas, não estavam sob vigilância? Cherif Kouachi havia sido condenado por crimes terroristas. Longe de estar enviando mensagens criptografadas, eles se comunicaram centenas de vezes antes e durante os ataques com celulares comuns. Há muitas perguntas. Por exemplo, por que os escritórios da Charlie Hebdo não estavam mais protegidos dadas as duras críticas da revista ao Islã? Como os conhecidos jihadistas conseguiram armas semiautomáticas na França? Apresentaram os assassinos como supervilões para ocultar a própria incompetência dos serviços. A verdade é que os terroristas eram amadores bastante incompetentes que bateram o carro, deixaram suas cédulas de identidade à vista e coordenaram seus movimentos por telefone. Não era preciso uma vigilância massiva da internet para evitar este fato: era necessária uma vigilância específica.

Uma percepção bastante ampla é que você e o Wikileaks se opõem à vigilância eletrônica. Na verdade, você faz uma clara distinção entre vigilância massiva e vigilância com objetivos definidos.

A vigilância massiva é uma ameaça à democracia e à segurança da população, pois outorga um poder excessivo aos serviços secretos. O argumento para defendê-la é que assim se pode encontrar gente que não se conhecia de antemão. O que vemos, no caso de Paris, é que os protagonistas foram identificados. Deveria haver uma investigação profunda de como foram cometidos esses erros, apesar de minha experiência ser que isto não vá acontecer porque estes serviços são corruptos e são assim por serem secretos. A vigilância massiva não é gratuita e, neste sentido, é uma das causas do que aconteceu, porque restaram recursos e pessoal para o que teria de ter sido a vigilância específica contra uma ameaça terrorista.

Uma das reações mais virulentas na imprensa britânica foi a do historiador e jornalista Max Hastings que acusou você e Edward Snowden de responsabilidade nestes fatos. Hastings não está sozinho. Há muitas vozes que pedem que fechem ainda mais o certo sobre o Wikileaks. Percebe que o Wikileaks está ameaçado pela atual situação?

Há um ano que os setores vinculados a este modo de ver as coisas propõem um aumento da vigilância massiva e um corte das liberdades. Estão em retrocesso por todas as denúncias que houve sobre os excessos de espionagem cometidos pelos governos, inclusive com seus próprios aliados. O que estão tentando fazer é aproveitar esta situação para recuperar o território perdido. O Wikileaks publicou as caricaturas da Charlie Hebdo utilizadas como pretexto para o atentado, algo que não fizeram vários jornais como o Guardian ou o Times porque têm muito medo. Mas uma das coisas positivas que surgiram nos últimos dias é a defesa da liberdade de expressão. Digo isto apesar de, na manifestação de domingo, estarem presentes figuras que são os piores inimigos da liberdade de expressão, como Arábia Saudita e Turquia. Mas, por mais que estejam tentando aproveitar a situação, o Wikileaks funciona há bastante tempo e desenvolvemos técnicas para lidar com este tipo de ameaças. Não vão nos intimidar. Esperemos que outras mídias em nível mundial também não se deixem intimidar.

sábado, 10 de janeiro de 2015

A cultura remix e suas possibilidades

Documentário interessantíssimo de Leornardo Brant!

Ctrl-V




O documentário faz um resgate histórico da indústria audiovisual global, com foco nas mudanças, em pleno curso, no processo de formação do indivíduo e na reorganização do imaginário coletivo. Diversidade cultural, democracia audiovisual, autorrepresentação, multiprotagonismo, cultura da convergência são palavras-chave da pesquisa.

As imagens foram captadas com máquina fotográfica digital caseira, sem qualquer aparato de produção, como luz, captação de som. O próprio diretor captou sozinho praticamente todas as imagens e entrevistas, no melhor estilo Do it yourself media, explorando as possibilidades de realização audiovisual. "A autoralidade está sendo discutida no Ctrl-V, pois contraponho o olhar individual com o processo colaborativo", ressalta o diretor. Outro aspecto marcante do documentário é a presença de trechos de filmes consagrados pela indústria hollywoodiana. Além de elemento narrativo central do documentário, ajuda a organizar, na prática, a discussão sobre propriedade intelectual e os limites da cultura remix.

O projeto e a pesquisa


A plataforma web (http://ctrl-v.net/), reúne bibliografia, filmografia e mais cinquenta entrevistas exclusivas com alguns dos maiores pensadores internacionais sobre a indústria audiovisual, entre eles: Edward Jay Epstein, Neil Gabler (EUA), Gilles Lipovetsky, Yvon Thiec (França), Massimo Canevacci (Itália) Octavio Getino (Argentina), Orlando Senna, Ismail Xavier (Brasil). A pesquisa foi financiada pela Aecid (Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento), e o documentário tem o apoio do Sesc e da TV Cultura.

Além do documentário, a pesquisa inclui livro, a ser lançado no começo de 2012, que relata a experiência, e programa de webTV, com a íntegra das entrevistas. A pesquisa é metalinguística, explora as possibilidades da convergência audiovisual e de criação em rede, enquanto analisa a conformação de um novo processo de produção audiovisual, multiprotagonista, em rede. Dirigido pelo pesquisador cultural Leonardo Brant, o documentário foi pautado e editado colaborativamente no âmbito da RAIA (Rede Audiovisual Iberoamericana -- http://www.raiavirtual.net/).

Ficha Técnica:

Origem: Brasil, Espanha, Argentina, Estados Unidos
Ano: 2011
Gênero: documentário
Duração: 54 min
Colorido

Concepção, roteiro, entrevistas, câmera e direção:
Leonardo Brant

Produção Executiva:
Fernanda Martins

Direção de Produção:
Roberta Milward

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Conteúdos, acesso, personalização...

O fim da televisão como a conhecemos

A TV virará apenas uma tela de conforto, simples extensão das grandes empresas americanas da web, que detêm cada vez mais informações sobre seus usuários.

 lollopins / Flickr

 


Ignacio Ramonet*
Publicado no Boletim Carta Maior
 


A televisão continua mudando rapidamente. Essencialmente, pelas novas práticas de acesso aos conteúdos audiovisuais que observamos sobretudo entre as gerações jovens. Todos os estudos realizados sobre as novas práticas de uso da televisão nos EUA e na Europa indicam uma mudança acelerada. Os jovens telespectadores passam do consumo “linear” da TV para um consumo de programas gravados e “à la carte” em uma “segunda tela” (computador, tablet, smartphone). De receptores passivos, os cidadãos estão passando a ser, mediante o uso massivo das redes sociais, “produtores-difusores”, ou produtores-consumidores (prosumers).
lollopins / Flickr
Nos primeiros anos da televisão, o comportamento tradicional do telespectador era olhar os programas diretamente na tela de seu televisor da sala, mantendo-se frequentemente fiel a um mesmo (e quase único) canal. Com o tempo, tudo isso mudou. E chegou a era digital. Na televisão analógica, já não cabiam mais canais e não existia a possibilidade física para acrescentar novos, pois um bloco de frequência de seis mega-hertz equivale a um só sinal, um só canal. Mas, com a digitalização, o espectro radioelétrico se fraciona e se otimiza. A cada frequência de 6 MHz, em vez de um só canal, podem-se transmitir até seis ou oito canais, e dessa forma se multiplica a quantidade de canais. Onde antes havia sete, oito ou dez canais agora existem cinquenta, sessenta, setenta ou centenas de canais digitais...

Essa explosão do número de canais disponíveis, particularmente por cabo e satélite, tornou obsoleta a fidelidade do telespectador a um canal de preferência e suprimiu a linearidade. Como consequência, abandonou-se a fórmula do menu único para consumir pratos à la carte, simplesmente zapeando com o controle remoto entre a multiplicidade de canais.

A invenção da web – há 25 anos – favoreceu o desenvolvimento da internet e o surgimento do que chamamos de “sociedade conectada” mediante todo tipo de links, desde o correio eletrônico até as diferentes redes sociais (Facebook, Twitter, etc.) e mensagens de texto e imagem (WhatsApp, Instagram etc.). A multiplicação das novas telas, agora nômades (computadores portáteis, tablets, smartphones) mudou totalmente as regras do jogo.

A televisão está deixando de ser progressivamente uma ferramenta de massas para se transformar em um meio de comunicação consumido individualmente através de diversas plataformas, de forma posterior e personalizada.

Essa forma de ver programas gravados se alimenta em particular dos sites de replay dos próprios canais de televisão, que permitem, via internet, um acesso não linear aos programas. Estamos presenciando o surgimento de um público que conhece os programas e as emissões, mas não conhece obrigatoriamente a grade de programação e nem sequer o canal de difusão ao qual esses programas originalmente pertencem.

A essa oferta, já muito abundante, se somam agora os canais online da Galáxia da Internet. Por exemplo, as dezenas de canais difundidos pelo YouTube, ou os sites de vídeos alugados sob demanda. Até o ponto de já não sabermos sequer  o que significa a palavra “televisão”. Reed Hastings, diretor da Netflix, o gigante norte-americano de vídeos online (com mais de 50 milhões de assinantes), declarou recentemente que “a televisão linear terá desaparecido em vinte anos porque todos os programas estarão disponíveis na internet”. É possível, mas não é certo.

Os próprios televisores também estão desaparecendo. Nos aviões da companhia aérea American Airlines, por exemplo, os passageiros da classe executiva já não dispõem de telas de televisão, nem individuais nem coletivas. Agora, cada passageiro recebe um tablet para que ele mesmo faça seu próprio programa e se instale com o dispositivo da forma como achar melhor (encostado, por exemplo). Na Norvegian Air Shuttle, se vai ainda mais longe. Não existem telas de televisão no avião, nem tampouco entregam tablets, mas o avião tem internet wifi e a empresa parte do princípio que cada passageiro leva uma tela (um computador portátil, ou tablet, ou smartphone) e que basta com que se conecte ao site da Norvegian para ver filmes, séries, programas de TV ou ler jornais (que já não são mais partilhados...).

Jeffrey Cole, professor norte-americano da UCLA, especialista em internet e redes sociais, confirma que a televisão será vista cada vez mais pela Rede. “Na sociedade conectada, a televisão sobreviverá, mas diminuirá seu protagonismo social, ao passo que as indústrias cinematográfica e musical poderiam se desvanecer”, diz.

No entanto, Jeffrey Cole é muito mais otimista do que o diretor da Netflix pois afirma que, nos próximos anos, a média de tempo dedicada à televisão passará de entre 16 a 18 horas semanais atualmente para até 60 horas, dado que a televisão, segundo Cole, “vai saindo das casas” e poderá ser vista “a todo momento” graças a qualquer dispositivo com tela, apenas se conectando à internet ou mediante a nova telefonia 5G.

Também é preciso contar com a competência das redes sociais. Segundo o último relatório do Facebook, quase 30% dos adultos norte-americanos se informam por meio do Facebook e 20% do tráfego das notícias provêm dessa rede social. Mark Zuckerberg afirmou há alguns dias que o futuro do Facebook será em vídeo: “Há cinco anos, a maior parte do conteúdo do Facebook era texto. Agora, evolui para o vídeo porque é cada vez mais fácil gravar e compartilhar”.

Por sua vez, o Twitter também está mudando de estratégia: está passando do texto ao vídeo. Em um recente encontro com os analistas de Wall Street, Dick Costolo, conselheiro do Twitter, revelou os planos do futuro próximo dessa rede social: “2015 será o ano do vídeo no Twitter”. Para os usuários mais antigos, isso tem o sabor de traição. Mas, segundo Costolo, o texto, sua essência, os célebres 140 caracteres iniciais, está perdendo importância. E o Twitter quer ser o ganhador na guerra do vídeo dos telefones portáteis.

Segundo os planos da direção do Twitter, podem-se subir vídeos do smartphone para a rede social a partir de agora, início de 2015. Passará dos escassos seis segundos atuais (possibilitados pelo aplicativo Vine) até acrescentar um vídeo tão logo quanto possível diretamente na mensagem.

O Google também quer agora difundir conteúdos visuais destinados a sua gigantesca clientela de mais de 1,3 bilhões de usuários que consomem cerca de seis bilhões de horas de vídeo por mês... Por isso, comprou o YouTube. Com mais de 130 milhões de visitantes únicos por mês nos Estados Unidos, o YouTube tem uma audiência superior à do Yahoo!. Nos EUA, os 25 principais canais online do YouTube têm mais de um milhão de visitantes únicos por semana. O YouTube capta mais jovens entre 18 e 34 anos do que qualquer outro canal norte-americano de televisão a cabo.

A aposta do Google é que o vídeo na internet vai pouco a pouco acabar com a televisão. John Farrell, diretor do YouTube na América do Sul, prevê que 75% dos conteúdos audiovisuais serão consumidos via internet em 2020.

No Canadá, por exemplo, o vídeo na internet já está a ponto de substituir a televisão como meio de consumo massivo. Segundo um estudo do instituto de pesquisa Ipsos Reid and M Consulting, “80% dos canadenses reconhecem que, cada vez mais, veem mais vídeos online na rede”, o que significa que, com tal massa crítica (80%!), aproxima-se o momento em que os canadenses verão mais vídeos e programas online do que na televisão.

Todas essas mudanças são percebidas claramente não apenas nos países ricos e desenvolvidos. Também são vistas na América Latina. Por exemplo, os resultados de um estudo realizado pela pesquisadora mexicana Ana Cristina Covarrubias (diretora da empresa Pulso Mercadológico) confirmam que a rede e o ciberespaço estão mudando aceleradamente os modelos de uso dos meios de comunicação no México – em particular, da televisão. A pesquisa trata exclusivamente dos habitantes do Distrito Federal do México e abrange grupos precisos da população: 1) jovens de 15 a 19 anos; 2) a geração anterior, pais de família entre 35 e 55 anos de idade com filhos de 15 a 19 anos. Os resultados revelam as seguintes tendências: 1) tanto no grupo dos jovens como na geração anterior, as novas tecnologias penetraram em grandes proporções: 77% possuem telefone móvel, 74% possuem computador e 21%, tablet, e 80% têm acesso à internet. 2) O uso da televisão aberta e gratuita está caindo e se situa apenas em 69%, ao passo que o da televisão paga está subindo e já alcança os 50%. 3) Por outro lado, aproximadamente a metade dos jovens que assistem televisão (29%) usam o televisor como tela para ver filmes que não estão na programação de TV: assistem DVD/Blu-ray ou Internet/Netflix. 4) O tempo de uso diário do telefone móvel é o mais alto de todos os aparelhos digitais de comunicação. O celular registra 3 horas e 45 minutos. O computador tem um tempo de uso diário de 2 horas e 16 minutos, e o tablet de 1 hora e 25 minutos; e a televisão de apenas 2 horas e 17 minutos. 5) O tempo de visita a redes sociais é de 138 minutos diários para Facebook e 137 para WhatsApp; para a televisão, é de apenas 133 minutos. Se somarmos todos os tempos de visitas a redes sociais, o tempo de exposição diária à internet é de 480 minutos, o equivalente a 8 horas diárias, ao passo que o da televisão é de apenas 133 minutos, equivalentes a 2 horas e 13 minutos. A tendência indica claramente que o tempo dedicado à televisão foi rebaixado amplamente pelo tempo dedicado às redes sociais.

A era digital e a sociedade conectada já são, portanto, realidades para vários grupos sociais na Cidade do México. E uma de suas principais consequências é o declínio da atração pela televisão, especialmente a de sinal aberto, como resultados do acesso aos novos formatos de comunicação e aos conteúdos oferecidos pelos meios digitais. O grande monopólio do entretenimento que era a televisão aberta está deixando de sê-lo para ceder espaço aos meios digitais. Quando antes um cantor popular poderia ser visto por vários milhões de telespectadores (cerca de 20 milhões na Espanha) em um programa de sábado à noite, por exemplo, agora esse mesmo cantor precisa passar por 20 canais diferentes para ser visto por cerca de 1 milhão de telespectadores.

De agora em diante, o televisor estará cada vez mais conectado à internet (é o caso da França, para 47% dos jovens entre 15 e 24 anos). O televisor se reduz a uma mera tela grande de conforto, simples extensão da web que procura os programas no ciberespaço e na Cloud (“Nuvem”). Os únicos momentos massivos de audiência ao vivo, de “sincronização social” que continuam reunindo milhões de telespectadores, serão então os noticiários em caso de atualidade nacional ou internacional de caráter espetacular (eleições, catástrofes, atentados etc.), os grandes eventos esportivos ou as finais de jogos do tipo reality show.

Tudo isso não é apenas uma mudança tecnológica. Não é só uma técnica, a digital, que substitui a outra, a analógica, ou a internet que substitui a televisão. Isso tem implicações de muitas ordens. Algumas positivas: as redes sociais, por exemplo, favorecem o intercâmbio rápido de informação, ajudam a organização dos movimentos sociais, permitem a verificação da informação, como é o caso do WikiLeaks... não restam dúvidas de que os aspectos positivos são numerosos e importantes.

Mas também é preciso considerar que o fato de a internet estar tomando o poder nas comunicações de massas significa que as grandes empresas da Galáxia da Internet – ou seja, Google, Facebook, Facebook, YouTube, Twitter, Yahoo!, Apple, Amazon etc.–, todas elas norte-americanas (o que já constitui um problema em si mesmo...), estão dominando a informação planetária. Marshall McLuhan dizia que “o meio é a mensagem”, e a questão que se coloca agora é: qual é o meio? Quando vejo um programa de TV na web, qual é o meio? A televisão ou a internet? E, em função disso, qual é a mensagem?

Sobretudo, conforme revelou Edward Snowden e como afirma Julian Assange em seu novo livro “Quando Google encontrou o WikiLeaks”, todas essas megaempresas acumulam informações sobre cada um de nós a cada vez que utilizamos a rede. Informações que são comercializadas, vendidas a outras empresas. Ou também cedidas às agências de inteligência dos EUA, em particular a Agência Nacional de Segurança, a temida NSA. Não nos esqueçamos de que uma sociedade conectada é uma sociedade vigiada, e uma sociedade vigiada é uma sociedade controlada.

*jornalista espanhol. Presidente do Conselho de Administração e diretor de redação do “Le Monde Diplomatique” em espanhol. Editorial Nº: 231. Janeiro de 2015.
Tradução de Daniella Cambauva

Créditos da foto: lollopins / Flickr

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Às vezes, quem conta um conto diminui um ponto...

Caso Tim Maia não é o primeiro em que a Globo reescreve a História em seu benefício ou no de parceiros


publicado em 6 de janeiro de 2015 às 12:15

por Luiz Carlos Azenha

Vi muita gente escandalizada com o fato de a Globo ter cortado, na minissérie que pretendia ser um resumo do filme sobre Tim Maia, os trechos em que Roberto Carlos desprezava o ex-colega de banda. O filme — e, portanto, a minissérie — foram baseados no livro Vale Tudo, de Nelson Motta.
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Segundo a Globo, não foi nada disso
Talvez por não envolver um ídolo tão popular, outros casos muitos parecidos e recentes de tentativas da emissora de reescrever a História não mereceram a mesma atenção.
Quando o Jornal Nacional completou 34 anos, por exemplo, exibiu um clipe registrando a presença do repórter Ernesto Paglia no comício das diretas, em 16 de abril de 1984, em São Paulo. Foi o suficiente para que Ali Kamel, que ainda estava em ascensão na emissora — hoje dirige o Jornalismo — fosse ao Observatório na Imprensa dizer que “uma pequena imagem do repórter Ernesto Paglia pode ter contribuído para rechaçar de vez uma das mais graves acusações que o JN já sofreu: a de que não cobriu o comício das diretas, na Praça da Sé, em São Paulo”.

Mais adiante, depois de contestar versões de outros autores sobre a cobertura da Globo naquele dia e de transcrever o texto da reportagem de Paglia, Kamel tenta justificar — como se a Globo estivesse no campo dos cerceados pela ditadura:
Esquecem-se de que a ditadura ainda estava forte, tão forte que as diretas foram votadas sob a vigência das medidas de emergência, um dispositivo constitucional, decretado nas vésperas da votação, que proibiu manifestações populares em Brasília (lembram-se do general Newton Cardoso, em seu cavalo, dando chicotadas em carros presos num engarrafamento?) e proibiu a transmissão por emissoras de rádio e televisão da sessão do Congresso Nacional que acabaria rejeitando as diretas-já. Não, a Globo não fez uma campanha, mas não deixou de fazer bom jornalismo.
Kamel provavelmente escreveu de ouvir dizer, após consultar arquivos. Eu, não. Eu trabalhei na Globo naquela época. Era da TV Bauru, mas cobria férias dos repórteres em São Paulo. Passava meses e meses hospedado num hotel e trabalhando na redação da Marechal Deodoro. Testemunhei pessoalmente ou ouvi relatos de colegas.

A tática de quem pretende recontar a História com outro viés quase sempre envolve focar no ponto mais positivo para sua narrativa e desconhecer o contexto.

O fato é que naquele período da História aconteceram as grandes greves do ABC, que a Globo praticamente desconhecia, quando não levava ao ar versões que o movimento operário considerava descabidas. Foi então que surgiu o “Fora Rede Globo, o povo não é bobo”, cantado por milhares de pessoas nas assembleias. Carros da emissora foram apedrejados. Lula costumava dizer aos companheiros para não confundir os jornalistas com os patrões e, portanto, aqueles deveriam ser poupados.

Na campanha das diretas, que surgiu antes do comício da Praça da Sé, a Globo simplesmente desconheceu as primeiras manifestações populares, algumas envolvendo milhares de pessoas. Era uma não notícia. A internet ainda não existia. Mesmo assim, era chocante ver as capas de jornais com fotos de manifestações e informações sobre a campanha e o Jornal Nacional absolutamente calado sobre o assunto.

Além disso, foi escancarado o apoio das Organizações Globo à ditadura militar, como porta-voz do regime. Os exemplos abundam. Um editorial escrito por Roberto Marinho em 7 de outubro de 1984, DEPOIS do comício das diretas, em que ele diz que a Revolução — isso mesmo, Revolução, não golpe — foi bem sucedida, é um deles.

É neste contexto que deve ser analisada a “reportagem” da emissora no comício de São Paulo.
A equipe da Globo, sim, esteve lá. Porém, a ênfase da reportagem foi no aniversário de São Paulo. Basta ler a própria transcrição do Ali Kamel. É o equivalente a noticiar primeiro que dois automóveis foram destruídos no centro de São Paulo e em seguida informar que caiu um Boeing sobre eles, matando os 200 ocupantes. Um absurdo que qualquer estudante de jornalismo é ensinado a nunca cometer é definido como “bom jornalismo”.

Para um exemplo mais recente, basta relembrar o Jornal Nacional de 12 de março de 2012, dia em que Ricardo Teixeira renunciou à presidência da CBF.

Patrícia Poeta, num texto que obviamente não foi escrito por ela, na transcrição da CartaCapital: “Ao longo de uma gestão de mais de duas décadas, a seleção tricampeã se tornou penta. Teixeira colecionou vitórias, mas também desafetos. E enfrentou denúncias”. Uma forma nada sutil de tentar atribuir as acusações a Teixeira a rusgas pessoais.

No corpo da reportagem, narrada por um repórter que obviamente não tinha poder de decisão sobre o texto final, 22 segundos foram dedicados às denúncias num tempo total de 3 minutos e 39 segundos:
Ao longo da carreira, Ricardo Teixeira foi alvo de denúncias. Diante de todas elas, Teixeira sempre disse que as acusações eram falsas e tinham caráter político. A denúncia mais contundente foi a de que ele e um grupo ligado à Fifa teriam recebido dinheiro de forma irregular nas negociações de uma empresa de marketing esportivo, em 1999. Viu os processos serem arquivados pela Justiça.
Na Globonews, Merval Pereira foi além:
Esses problemas de denúncias contra o Ricardo Teixeira vêm de longe e ele enfrentou com tranquilidade e sempre conseguiu superar essas denúncias. [...] Então resolveu tirar o time porque viu que não tinha condições de recuperar, como várias vezes se recuperou, o prestígio político.
De novo, a sutileza: os problemas de Ricardo Teixeira foram com adversários pessoais e políticos, nenhuma relação com a corrupção que a Globo tanto gosta de denunciar na Petrobras.

Em primeiro lugar, não é verdade que todos os processos contra Ricardo Teixeira foram “arquivados pela Justiça”. Em O Lado Sujo do Futebol, descrevemos as manobras jurídicas utilizadas por ele para se desfazer de processos no Brasil. Descrevemos detalhadamente a relação histórica e incestuosa da Globo com João Havelange e seu sucessor, Ricardo Teixeira. Era apoio político em troca do monopólio nas transmissões da Copa e do futebol brasileiro. Ponto. O próprio Ricardo Teixeira, em entrevista à revista Piauí, disse que só ficaria preocupado quando as denúncias contra ele saissem no Jornal Nacional.

Nunca de fato sairam. Naquela noite de 12 de março de 2012 a principal omissão do JN foi sobre o fato de que a Justiça da Suiça decidiria em breve se seriam divulgadas ou não as provas obtidas na investigação de João Havelange e Ricardo Teixeira, provas definitivas de que ambos receberam milhões de dólares em propina da empresa de marketing ISL em contas no Exterior. Este, sim, o verdadeiro motivo da renúncia de Teixeira, que a Globo vergonhosamente escondeu.

A Globo pagava à ISL, que pagava escondido a Havelange/Teixeira, que protegiam e eram protegidos da Globo. É o círculo perfeito!

No livro também tratamos das relações da própria Globo com a ISL, empresa da qual a emissora brasileira comprou os direitos de transmissão das Copas de 2002 e 2006 depois de montar uma subsidiária, a Empire, nas ilhas Virgens Britânicas, com isso sonegando milhões de reais de imposto no Brasil, segundo a Receita Federal. A mesma Receita diz que a Empire serviu apenas de fachada, para justificar o falso investimento no Exterior do dinheiro usado para quitar os direitos. Como se vê, não foram apenas a ISL, João Havelange e Ricardo Teixeira que tiraram proveito de negócios obscuros em refúgios fiscais.

Como vimos no caso do comício das Diretas, também no caso Teixeira a Globo tirou proveito da descontextualização: focou nas “vitórias” em campo do cartola.

O que nos leva ao episódio Tim Maia.

Não só o filme sobre o cantor mostra Roberto Carlos numa luz não muito agradável. O livro em que o filme foi baseado também o faz, com menos dramaticidade. Sim, registra que Roberto Carlos, a pedido da mulher Nice, levou Tim Maia para fazer um disco na gravadora CBS. Mas também conta que Tim Maia ofereceu a Roberto Carlos a música Não Vou Ficar, que se tornou o primeiro sucesso de Tim, com proveito para ambos.

O livro, pelo menos, deixa claro que houve rusgas e ciumeira entre os dois:
“Ô mermão, o Roberto aprendeu tudo comigo, mas o Roberto é branco, mermão, branco não dá, o que ele tem é que me botar na Jovem Guarda, mas ele tem medo porque sabe que eu entro e acabo logo com a banca dele”. Se era difícil encontrar Roberto, era impossível falar com ele, sempre cercado por um monte de gente, secretários, seguranças e puxa-sacos. Tim achava que Roberto não queria chamá-lo porque a Jovem Guarda era um programa de bons moços e ele era o Tim que puxava cadeia e fumava maconha.
O primeiro problema entre eles, ainda segundo o livro, foi quando Roberto Carlos, integrante da banda Sputniks, de Tim Maia, decidiu cantar sozinho, “por fora”, sem consultar antes os parceiros. Deu briga.

Na minissérie da Globo, além de cortar o trecho do filme em que Roberto Carlos humilha Tim Maia, a emissora deu a seu contratado, segundo a Folha, a oportunidade de dizer que ajudou Tim. Mais que isso, numa cena inédita colocou o ator que encarna Tim Maia no cinema para dizer na minissérie: “E foi assim, rapaziada, que Roberto Carlos lançou o gordo mais querido do Brasil”.

Assim, a Globo transformou uma relação complexa de amor e ódio, ajuda e competição — pelo menos é assim que aparece no livro — numa simplificação que beneficia HOJE a imagem de seu parceiro de negócios. Como aconteceu com Ricardo Teixeira.


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