terça-feira, 27 de outubro de 2015

As mídias e o estupro naturalizado

26/10/2015 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

Sobre meninas e lobos

A cultura do estupro, que significa o consenso e a naturalização da violência contra a mulher, domina a publicidade e os meios de comunicação.


Marina Ganzarolli*
 
reprodução
Nesta semana (20) começou o “MasterChef júnior Brasil”, uma competição culinária transmitida pela Rede Band entre 20 crianças, de 9 a 13 anos de idade. Após o primeiro episódio, a repercussão nas redes sociais em relação a uma das participantes, a menina Valentina, gerou revolta na Internet. Mensagens pornográficas e apologia à pedofilia resumem o conteúdo dos tuítes direcionados à garota e dos comentários estampados na página Admiradores da Valentina, criada no Facebook:  “Se tiver consenso é pedofilia?”, dizia uma delas.


Não existe relação sexual consensual com uma criança. Uma menina, assim como toda criança, não tem plena capacidade para fazer pra fazer essa escolha, nem pra se defender, se forçada. Não importa se ela se parece com uma criança ou com uma mulher. Uma mulher no espaço público também não é sinônimo de um corpo à disposição do desejo e do prazer masculinos. Nem as meninas tampouco as mulheres estão fadadas à manutenção do trabalho reprodutivo no espaço privado. A todas deve ser garantido o direito de serem livres, de fazerem suas escolhas, de possuírem autonomia sobre seus corpos e sobre sua sexualidade. Mas na realidade, estamos em constante e precocemente sujeitas às mais diversas formas de controle e violências em uma sociedade essencialmente machista.


Em resposta à violência e ignorância dos tuites e postagens,  no dia 22 o coletivo ThinkOlga, idealizador da campanha Chega de FiuFiu, lançou a hashtag #PrimeiroAssédio no Twitter, concentrando em algumas horas milhares de relatos sobre a primeira vez em que meninas e mulheres sofreram algum tipo de assédio ou violência sexual: “Ônibus cheio, eu sentada no colo da minha mãe (cega). Homem abre o zíper da calça e me mostra o genital. Eu tinha 8 anos”, relatou uma delas. Novamente, a contrarreação aos relatos que inundaram as redes sociais chamam a atenção para a naturalização da violência contra a mulher, gordofobia e culpabilização da vítima: “Só mina gorda e feia nesse #primeiroassédio” disse um deles. O líder da banda Ultraje a Rigor, o ultrarreacionário Roger Moreira e uma espécie de Lobão engraçadinho, fez piada sobre o assunto e ironizou os relatos de violência e abuso que circularam na web: “Acho que eu tinha uns 10 anos. Uma empregada deixou eu pegar nos peitos delas. Foi bom pra cassete”, disse.


Segundo o IPEA, em relação ao total das notificações de estupro ocorridas em 2011, 88,5% das vítimas eram mulheres, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade e mais de 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes. A violência sexual é a quarta violação mais recorrente contra crianças e adolescentes denunciada no Disque Direitos Humanos (Disque 100).


O Brasil foi o primeiro país a promulgar um marco legal dos direitos humanos de crianças e adolescentes, em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). O ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 só foi possível graças à mudança de paradigma provocada pela Constituição de 1988, quando passamos a falar em proteção integral dos direitos da criança. A visão higienista e correcional dada a “criança-menor” foi substituída pela perspectiva da criança enquanto sujeito de direitos. O enfrentamento da violência sexual – para o qual quase não havia política pública alguma na época – ganhou destaque na Carta Constitucional (parágrafo 4o, art. 227). O ECA prevê que quem aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso a pena de reclusão de 1 a 3 anos mais multa (art. 241-D).    


Assim, desde 1988 muita coisa mudou e hoje dispomos de um Sistema de justiça e de segurança específicos para crianças e adolescentes e de um Comitê, um Conselho misto e um Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

Apesar de o enfretamento institucional do problema ter avançado, culturalmente, desgraçadamente, parece que não saímos do lugar. Nesta semana (21), Pedro Magalhães Ganem (JusBrasil) relatou um caso no Espírito Santo em que o Juiz determinou que o estuprador registrasse a criança que foi gerada em decorrência do estupro, no caso, o avô do bebê e pai da vítima, uma criança de 13 anos. Ou seja, se temos um arcabouço legal relativamente avançado, os que deveriam aplica-lo nem sempre agem em consonância com o respeito aos direitos humanos e a proteção simbólica e material das vítimas.

A cultura do estupro, que significa o consenso e a naturalização da violência contra a mulher, também domina os meios de comunicação. A recente novela da Globo Verdades Secretas envolvia a trama de uma menina de 16 anos que, em busca do sonho de virar modelo, acaba virando profissional do sexo e se envolve com um homem acima dos 40 anos. Para manter o relacionamento ele se casa com a mãe da garota e, na condição de seu padrasto, controla todos os movimentos da menina. A relação extremamente abusiva, romantizada pela TV, não impediu que a novela obtivesse altos índices de audiência, implicando num sinal de menos para a mulher enquanto sujeito de direitos.

Falar sobre pedofilia não é fácil. A maioria dos comentários expressa nojo e repulsa diante das mensagens criminosas dirigidas à Valentina. Mas como bem explica a própria Carol Patrocinio, a pedofilia tem duas definições: trata-se (i) de uma perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças ou (ii) da prática efetiva de atos sexuais com crianças. Dessa forma, antes de acontecer o crime (ii), temos que enfrentar a doença (i).


Mas esses meninos e homens, melhor intitulados pedófilos e criminosos, não vivem em Marte, não estão apartados da realidade social que os circunda. Pelo contrário. Eles são diariamente bombardeados com imagens de crianças hiperssexualizadas, de corpos de mulheres objetificados como pedaços de carne, de adultas infantilizadas, de padrões inalcançáveis de beleza, magreza e branquitude.


A nova garota-propaganda da gigante da moda Dior, a modelo israelense Sofia Mechetner, tem apenas 14 anos. Sofia abriu o desfile de inverno da marca italiana em julho deste ano e às críticas a sua tenra idade não foram suficientes: a modelo e a coleção são um sucesso.  Em 2008 uma campanha publicitária da marca de roupas infantis Lilica Ripilica em que uma menina de cerca de 4 anos aparecia deitada em uma pose sensual, segurando um doce com os dizeres “Use e se lambuze”, foi retirada de circulação, dado sua conotação erótica. Em mraço deste ano, a marca de roupas Use Huck, do apresentador Luciano Huck, foi notificada pelo PROCON do Rio de Janeiro após estampar camisetas infantis com a frase “Vem ni min que eu tô facin”. Após a repercussão negativa a marca se desculpou e cessou a venda do produto em seu site.


O Instituto Alana, criador do projeto Criança e Consumo, alerta para os impactos negativos do consumismo infantil e para a relação direta entre erotização precoce e exploração sexual de crianças e adolescentes. A identidade da criança está em constante formação e desenvolvimento até que ela alcance a vida adulta. Produtos como maquiagem e sutiã com bojo para crianças, disponíveis no mercado, geram estímulos com os quais as crianças – em processo de formação da autoestima – não sabem lidar.


A noção de pertencimento a um grupo, a identidade da criança, está em constante formação e desenvolvimento até a vida adulta, quando tem plena capacidade não só de tomar decisões, mas de compreender a extensão e as consequências de suas escolhas. Mas numa sociedade capitalista de consumo, o quanto antes as crianças virarem consumidores, melhor. Pouco importa que a publicidade promova a adultização e hipersexualização das crianças e acarrete um encurtamento da infância.


Não adianta achar “nojento” e acreditar que nada disso tem a ver com você e com a sua família. Argumentos como “imagina se fosse com a sua filha” ou “não dá pra generalizar, nem todos os homens são assim” apenas mascaram o que importa: as vítimas e sua dignidade enquanto seres humanos, sujeitos de direitos. Nossa opinião é irrelevante. Fato é que todas as meninas e mulheres estão sujeitas à violência, diariamente. Isso sim pode ser generalizado. É por isso que temos que falar sobre gênero e sexualidade das escolas. É por isso que não avançaremos enquanto estivermos ensinando a nossas meninas a “se comportarem” – não usar saia, falar baixo, não beber, não sair à noite, não descobrir sua sexualidade, basicamente, não viver – e não a nossos meninos a não estuprarem as mulheres. Todas as mulheres estão sujeitas à violência, ao assédio e ao abuso e os “lobos” estão sempre mais próximos do que se imagina. São o pai, o tio, o padrasto, o primo, o vizinho, o colega de trabalho, o amigo da escolar, o moço do bar, o cara da televisão, a propaganda do desenho, uma brincadeira inocente ou aquela piada inofensiva.


* Marina Ganzarolli é advogada, co-fundadora do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia (NDD) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), e foi Conselheira Municipal da Criança e do Adolescente da Cidade de São Paulo.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A relação com a mídia

Ler ou não ler a mídia?

Alex Castro
Fonte: Revista Fórum
ainda vale a pena se informar? aliás, se informar onde?
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primeiro, um texto de gustavo tanaka, “por que parei de assistir televisão“:

[D]ecidi parar de assistir televisão, ler jornal, ouvir rádio. E minha vida melhorou. Para aqueles que vão me criticar, explico aqui o que aconteceu, respondendo as perguntas que mais me fazem. …
Eu não preciso receber as notícias pela mídia. Quando um assunto começa a ficar importante, as pessoas falam mais pelo Facebook e meus amigos falam quando eu os encontro, vez ou outra ou uma zapeada nos portais de conteúdo. Eu nunca fico totalmente por fora.
E quando eu quero saber mais sobre o assunto, eu aí sim acesso um site de mídia e busco as informações para saber mais detalhes.

* * *
aí, essa crítica da marjorie rodrigues, “Será mesmo revolucionário se informar só pelo Facebook?“.
ela argumenta que é problemático trocar a mídia tradicional pelo facebook, como se isso fosse alguma grande vantagem:
“Não há nada de revolucionário, libertador ou grandioso em tirar poder de grandes empresas locais de mídia para dá-lo a uma única empresa global de mídia. Querer que larguemos outras formas de produção e consumo de conteúdo e fiquemos só trancados no Facebook é exatamente o que o Markinho quer. …
Gustavo (e eu) estamos apenas seguindo a boiada dos nossos tempos. Mas, por vezes, achamos que estamos fazendo algo diferente e extraordinário. Nada mais equivocado.”

* * *
aí, sabrina aquino levanta outra questão, em seu facebook:
ok, a mídia tradicional é mesmo uma merda. mas, se não ela, então quem?
“Você posta uma notícia da mída tradicional e faz uma crítica ao governo. O que acontece? Aparece governista: “Ah, gostaria de uma fonte mais confiável do que O Estadão, O Globo, Folha de São Paulo, Exame, etc”.
Olha, eu também.
Mas não houve democratização dos meios de comunicação… fazer o quê se a gente só tem 4 famílias mandando nos meios de comunicação num país com 200 milhões de habitantes…
Aí aparece o governista novamente: “Ah, mas com o congresso que tá aí”.
Não amiguino carinhoso… isso também não vale como argumento, pois Lula entrou em 2002, com 80% de aprovação e, 8 anos depois Dilma idem e com a maioria da bancada no congresso ao seu favor. Não democratizaram porque não quiseram. Simples.
Mas notícia só vale para o governista quando vem do Forum do Eixo, da Cycy Morena, do Diário do Centro do Machismo e P Amorim, esses jornalistas que são tão comprometidos com as verdades oficiais.”

* * *
por fim, eu digo, mudando um pouco o eixo da conversa:
pra mim, acompanhar o noticiário converteu-se em um investimento narcissista.
eu me informo sobre a crise no egito não por empatia e curiosidade, não por realmente me importar com o destino do povo egípcio, mas sim para me gabar de minha cultura, para ter assunto no almoço com as colegas de trabalho, para impressionar a chefa.
ou, como diz a nova campanha de um canal de notícias que sabe EXATAMENTE o que está vendendo: “torne-se indispensável”
e eu me pergunto: o que quero? me tornar indispensável? ou me tornar uma pessoa melhor?
existe algo de seriamente errado em uma cultura que vende como fundamental a necessidade de saber o nome do presidente da frança mas não do porteiro do prédio.
* * *