sábado, 28 de novembro de 2015

Negritude e comunicação social

O novembro negro e os meios de comunicação

Escrito por: Alex Hercog
Fonte: Carrta Capital/Intervozes, via FNDC

É preciso disputar os lugares de produção de sentidos, como a mídia, para acabar com o racismo

Em uma entrevista, Cartola afirmou que uma de suas principais canções, “O sol nascerá”, foi gravada sem que ele soubesse, pois um atravessador havia vendido a composição. Ela, então, foi trabalhada por mais de 25 artistas. Cartola, cujo avô foi escravizado, morreu como nasceu: pobre.
O sambista carioca era torcedor do Fluminense. Dois anos antes de Cartola escolher o tricolor como time do coração, um episódio marcou a história do clube: o jogador Carlos Alberto foi provocado pela torcida do América, que o chamou de “pó de arroz”. Negro, o atacante tricolor sempre passava pó no rosto antes das partidas para dar uma esbranquiçada. Até hoje, o time adota o pó de arroz como símbolo.
dez-mandamentos
Bastidores da gravação da novela Os Dez Mandamentos, da Tv Record
Passado quase um século, ainda tem gente no Brasil que se pinta para mudar a cor da pele. É o caso dos atores da emissora da Igreja Universal. Na novela de sucesso “Os Dez Mandamentos”, boa parte da história se passa no norte da África e os personagens não são majoritariamente brancos. Os atores, contudo, são. Em vez de contratar atores afrodescendentes, a escolha da Record foi de dar os principais papéis para atores brancos, que são tornados “morenos” com quilos de maquiagem.
Na TV da família Marinho, “somos todos Maju”. Mas não negros. Os apresentadores e apresentadoras da emissora e de suas afiliadas são majoritariamente brancos. Na principal novela em exibição, “A Regra do Jogo”, são 48 atores e atrizes no seu elenco central. 43 são brancos e 5 são negros. Os personagens são descritos pela emissora da seguinte forma: “Ninfa: beldade do morro e semideusa do funk”; “Dênis: bandido e membro da facção criminosa”; “Iraque: bonito e sedutor; mototaxista da comunidade”; “Indira: sensualíssima e cabeça dura” e “Dinorah: empregada doméstica há mais de 30 anos”.
O favelado compunha o samba, mas não ganhava dinheiro; o branco gravava e ficava rico. Não bastava o atacante ser bom de bola, precisava se pintar para não parecer tão negro. Se o personagem for um imperador, da elite social, ainda que africano, o papel tem que ser dado para um ator branco. Mas se o personagem for bandido, desenvolva um trabalho de baixa remuneração ou tenha apelo sexual, então o ator negro é o ideal para interpretá-lo.
E não só no campo do entretenimento seguem as opressões. No dia 18 de novembro, mais de 15 mil mulheres negras de todos os estados brasileiros marcharam em Brasília contra o racismo, a violência e pelo bem viver. Pouco adiantou para sensibilizar os meios de comunicação, que só transformou a marcha em notícia após um homem branco pró-impeachment ter atirado com um revólver durante a passeata. Ele foi a notícia, não as milhares de mulheres e suas reivindicações.
No dia 20, a marcha da Consciência Negra também reuniu milhares de pessoas em diversas cidades do Brasil. Em Salvador – cidade com mais negros no mundo fora da África – duas grandes passeatas marcaram o dia. Uma delas, que ocorreu no centro, praticamente não foi objeto de cobertura midiática. A outra, na área conhecida como Liberdade, a imprensa compareceu, atraída pela presença do ex-presidente Lula.
Os enquadramentos adotados pelos jornais relevam suas escolhas políticas. “Lula está em Salvador marchando no dia da Consciência Negra” rendeu mais notícia do que, por exemplo, “Movimento Negro quer o fim dos autos de resistência”; “Manifestantes são contra a redução da maioridade penal”; “Participantes pedem justiça no caso da Chacina da Vila Moisés/Cabula”.
Na mídia, aliás, pouco ou quase nada se discute sobre como manter vivos os jovens negros, o que fazer para que a população negra ocupe outros espaços que não os presídios ou também quais políticas públicas devem ser desenvolvidas junto aos moradores de favelas. E isso não ocorre por falta de apelo ou conhecimento. De acordo com o Mapa da Violência, no Brasil são assassinadas 116 pessoas por dia. Quase 70% são negros. Praticamente a mesma porcentagem de negros encarcerados, em um país que tem mais de seiscentos mil presos. Nas favelas, a contagem se repete: 72% dos moradores desses locais se declaram negros.
Portanto, mulheres, músicos, atores e jovens negros: as suas demandas políticas, o seu reconhecimento profissional, a valorização financeira do seu trabalho e o seu direito à vida continuam sendo cerceados. E o são também pelos homens brancos que, por razões históricas, controlam o poder econômico, político, religioso e midiático do país. Para mudar a realidade, é preciso disputar esses poderes. É preciso disputar a comunicação, hegemônica e alternativa, para que outras narrativas produzam novas representações e vivências. Que este novembro fortaleça esse movimento. “Fim da tempestade, o sol nascerá”.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Porque as "questões das mulheres" são questões de toda a sociedade

Mulheres abrem mão de carreira por causa de maridos, não de filhos, diz estudo




Pesquisa realizada nos EUA concluiu que elas se sentem pressionadas a assumir filhos e obrigações do lar para que maridos possam se dedicar à profissão
Muitas mulheres deixam suas próprias carreiras em segundo plano não para criar os filhos, mas para priorizar a carreira de seu parceiro. Esta é a conclusão de Pamela Stone, professora de Sociologia da Hunter College, em Nova York (EUA), em entrevista ao jornal espanhol El País nesta terça-feira (10/11).

Ela é uma das autoras do estudo “Life and Leadership after HBS” ("Vida e Liderança após Harvard Business School", em tradução livre). Em sua pesquisa, foram entrevistados 25 mil ex-alunos e ex-alunas da instituição, com idades entre 26 e 47 anos, com o objetivo de analisar as aspirações profissionais de homens e mulheres que foram preparados para posições de liderança no mercado de trabalho.

Segundo Stone, as mulheres sentem-se pressionadas por seus parceiros, pelas instituições onde trabalham e pela sociedade como um todo a assumir a criação dos filhos e as obrigações do lar para que seus companheiros possam se dedicar à carreira.

Agência Efe/Arquivo

Christine Lagarde é diretora do FMI (Fundo Monetário Internacional); ela, que tem dois filhos, não sucumbiu à pressão social
 
Como resultado, as mulheres se mostraram mais insatisfeitas com suas trajetórias profissionais do que os homens. Dados coletados mostraram que 60% dos homens estavam “extremamente satisfeitos” com suas experiências profissionais e oportunidades de promoção contra 40% de mulheres que descreveram sentir o mesmo. Dos homens que participaram da pesquisa, 83% eram casados.
 
Atualmente as mulheres ocupam menos de 20% dos cargos de responsabilidade nas 500 empresas mais importantes do mundo, de acordo com a revista Fortune. Além disso, a Organização Internacional do Trabalho divulgou, em março, um relatório indicando que não haverá igualdade salarial entre os sexos até 2085.   

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O estudo ainda revelou que 75% dos homens esperava que, no futuro, suas companheiras assumissem a maior parte da responsabilidade de criar os filhos, e 50% das mulheres respondeu que esta seria de fato sua função. Entre os homens entrevistados, 70% considerava que suas carreiras teriam prioridade sobre a de suas esposas e cerca de 40% das mulheres concordaram com esta afirmação.

Para Pamela, a “culpa” é da própria sociedade. Ela acredita que as mulheres devem conversar com seus parceiros para poderem desenvolver suas carreiras e se sentirem mais satisfeitas profissionalmente.

“Os casais jovens que estão pensando em criar um projeto de vida juntos deveriam ter uma conversa sobre quais são as pretenções profissionais e pessoais de cada um. É muito importante escolher uma pessoa que respeite os nossos desejos”, disse. 

domingo, 1 de novembro de 2015

Refugiados, mídia brasileira, povo brasileiro

Imagem de Brasil hospitaleiro 'não passa de um mito', diz pesquisador




Gustavo Barreto analisou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração nos últimos 200 anos e avalia que racismo contra estrangeiros é constante no país

Mesmo em meio a uma crise política e econômica, o Brasil já deu abrigo a mais de 2.000 refugiados sírios desde o começo da guerra no país. O número, divulgado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), revela que a abertura brasileira é maior do que a dos Estados Unidos (1.243) e até da Grécia (1.275), uma das portas de entrada na Europa, vinculando no mundo a imagem de um país hospitaleiro, onde todos os estrangeiros e imigrantes são bem-vindos.

"Isso não passa de um mito", assegura o pesquisador Gustavo Barreto, que defendeu recentemente uma tese sobre a percepção do estrangeiro pela imprensa brasileira. Após mergulhar em mais de 11 mil edições de jornais e revistas entre 1808 e 2015, ele concluiu que o racismo contra imigrantes, refugiados e estrangeiros é constante na imprensa brasileira, que emplaca a ideia de uma aceitação seletiva.

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Sérgio Vale / Secom

Acre é uma das principais portas de entrada para haitianos que desejam reconstruir a vida no Brasil



Os imigrantes não viram notícia da mesma maneira. “Se for um imigrante ‘aceitável’, como os europeus, ele vai aparecer em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for ‘aceitável’, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam. Uma leva de haitianos é considerada uma ‘invasão’ e a mesma leva de espanhóis é considerada um ‘movimento migratório’”, explica Barreto.

Na tese “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015”, Barreto analisou a cobertura do tema em jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Correio da Manhã, O País e Gazeta do Rio de Janeiro desde a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro até hoje. Algumas matérias encontradas por Barreto e a introdução da tese estão disponíveis no site Mídia Cidadã.



Opera Mundi: Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4 milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se devendo aos imigrantes. O Brasil é uma terra de imigração?

Gustavo Barreto: Eu diria que o país está em um meio termo. Terra de imigração são os Estados Unidos, a França, o Canadá, a Argentina. Nesses países, mesmo que se observe em alguns casos um direcionamento racial muito claro, a participação do imigrante na formação da sociedade é de duas a cinco vezes maior. Mas o Brasil é certamente um caso interessante, com diferentes povos interagindo quase que por acidente, diante da incoerência entre as políticas ao longo do tempo e dentro do país.

OM: “O Brasil está de braços abertos” para os refugiados, disse a presidente Dilma Rousseff em pronunciamento no último dia 7 de setembro. Qual é historicamente a visão do refugiado no Brasil? Com esta asserção do governo, você diria que existe uma inflexão importante?

GB: No Brasil, historicamente, o refugiado e o imigrante fugindo da guerra e da fome – caso de muitos europeus durante todo o século 19 e início do século 20 – são vistos como trabalhadores, recursos úteis para a economia. No entanto, somos responsáveis por algumas das políticas mais xenófobas e racistas já adotadas em qualquer país. Já no início da República, os governantes proibiram a entrada de “pretos” e “amarelos”, o que era mais ou menos um consenso no regime anterior. Depois, os gestores de Vargas deixavam claro que os negros “de fora” não deveriam se misturar com os negros brasileiros, o que se confirmava não só pelas declarações na imprensa como pela política adotada. Esse cenário nunca mudou totalmente nestes 200 anos que cobrem minha pesquisa. Existe uma política discricionária em relação à imigração, com algumas tentativas do governo federal, nos últimos 20 anos, de humanizar a questão do refúgio, por exemplo. Mas a lei voltada para os estrangeiros continua sendo uma lei aprovada durante a ditadura militar.
A visão do “Brasil de braços abertos” não me parece a mais adequada. Apesar de o governo federal adotar uma posição notoriamente divergente em relação a muitos países do mundo – e isso produz uma enorme diferença no cotidiano dos refugiados do Brasil, sem dúvida –, e certamente distinta em relação a outros tempos históricos de xenofobia aberta, o refugiado hoje sequer é recebido pelas instituições sociais federais ou regionais. No aeroporto, ainda é a Polícia Federal [que o recebe]. Ao entrar – quando consegue –, ele é recebido pela Igreja Católica ou por ONGs. Na prática, o governo empurra uma enorme responsabilidade para instituições que pouco podem diante de uma crise deste tamanho. Basta ver a situação das instituições receptoras de refugiados e de outros imigrantes em São Paulo. Apesar de o governo federal, em parceria com a ONU, dar algum apoio, a resposta ainda fica muito aquém do que deveria. E isso em um país que possui atualmente pouco mais de 8 mil refugiados, segundo os dados oficiais. Oito mil é o número aproximado de refugiados que entram pela Grécia [na Europa] todos os dias. É menos do que entra na Alemanha em algumas horas. Não temos condição de comparar, ainda.

Arquivo pessoal

O pesquisador Gustavo Barreto (esq.) estudou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração
Eu trocaria a imagem dos “braços abertos” pela imagem de alguém abrindo uma porta, de braços fechados, e permitindo a entrada dos refugiados. É uma ação humanitária louvável, mas está longe de serem os “braços abertos” anunciados.

OM: Como o imigrante vira notícia?

GB: Se for um imigrante “aceitável” – como os europeus ou alguns outros tidos como “brancos” (e a “branquitude” é social em alguns casos) –, [aparece na imprensa] em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for “aceitável”, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam ou de dois em dois mil – ou seja, reúna dois mil haitianos no mesmo lugar e eles viram, talvez, notícia. Dentro deste mecanismo, não é difícil entender porque uma leva de haitianos é considerada uma “invasão” e a mesma leva de espanhóis é considerada um “movimento migratório”.
Recentemente, uma prova de vestibular de uma importante universidade privada questionou seus candidatos sobre qual é o imigrante “de que o Brasil precisa”. O gabarito trará provavelmente a ideia de que imigrantes são bons para a economia, como descreveu Sayad, enquanto outros não são necessários, não se “precisa” deles. O mais lamentável, a meu ver, é a ideia de que o imigrante ainda leva consigo, mesmo passados 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o carimbo de trabalhador, de necessário ou desnecessário. Mesmo que a História nos ensine que migrar é uma necessidade tão básica quanto comer.


OM: Hoje, como está percebida a chegada dos sírios e dos haitianos, dois povos empurrados de seus países em um contexto de emergência?

GB: A reação é totalmente diferente, e isso não é nenhuma novidade. Como o número de haitianos é grande desde 2010, eu pude observar na minha tese o racismo aberto e amplo contra os haitianos, quase todos negros. Até mesmo o medo do ebola atingiu os haitianos, que sequer passam pela África na rota mais comum para o Brasil.
Com os sírios – e ao longo da história tem sido assim, segundo pude observar na tese –, o cenário muda um pouco. Agora mesmo, podemos observar dezenas de matérias na imprensa de solidariedade com o povo sírio. A guerra não é a única explicação, do contrário a simpatia se estenderia aos refugiados da República Democrática do Congo, de Angola ou do Mali, por exemplo. E o que observamos é uma cobertura notoriamente negativa, quando haviam apenas angolanos e liberianos para mostrar. A cobertura sobre os angolanos nos anos 1990 os destacava como traficantes ou pequenos contraventores, marginalizados que estavam em bairros e favelas da periferia do Rio como o Complexo da Maré.
O que mudou, então? Os sírios, a meu ver, são mais palatáveis. E nos anos 1930, durante uma crise parecida no Oriente Médio, a mídia foi decisiva para eleger quais árabes eram aceitáveis e quais não eram. Em 1934, os assírios passaram em poucos meses de campanha midiática de “árabes cristãos” a “refugiados muçulmanos”. Depende da forma como você constrói. E a visibilidade positiva que você, enquanto editor, decide dar a cada povo. E isso está acontecendo hoje tal como há 200 anos vem acontecendo.


OM: Houve uma preocupação com o embranquecimento da sociedade brasileira?

GB: O tempo todo. Esta é uma dinâmica que corta toda a sociedade brasileira até os dias de hoje. O desejo de se europeizar permanece no discurso público, mesclado agora com a hegemonia norte-americana. Isso era claro durante todo o século 19 por meio de políticas públicas e discursos abertos; mais ou menos evidente durante a Primeira República; envergonhado, porém fortemente persistente durante o período Vargas; e envergonhado e persistente durante o pós-Segunda Guerra Mundial. Conforme destaquei anteriormente, a cobertura de imprensa ainda nos dá pistas concretas acerca da ideologia do embranquecimento. Mas é preciso, agora, avaliar o dito pelo não dito – certamente uma nova forma de perpetuar o racismo, mas ainda muito presente e ainda muito eficaz.

Reprodução Facebook

Refugiados durante
curso de adaptação gratuito oferecido pela USP com aulas gratuitas de geografia do Brasil


OM: Como é vista a imigração “natural”, a dos vizinhos?

GB: Igualmente problemática, porém mais antiga e, portanto, mais acomodada. A boa relação com os países do Mercosul ajuda bastante, mas há casos em que os estigmas que estão escondidos no cotidiano do brasileiro ressurgem a partir de matérias sensacionalistas da imprensa. Casos de crimes cometidos por estrangeiros, por exemplo, costumam ser ressaltados de modo que um país – e seus respectivos nacionais, portanto – passa a ser “condenável” na imprensa. Pelo menos por um período, enquanto durar a repercussão de um caso.

OM: Do ponto de vista do vocabulário, qual é, na imprensa, a diferença no uso dos termos imigrante, estrangeiro e refugiado?

GB: Isso pode variar, claro, mas eu observei na minha tese que há gradações de aceitação. O refugiado é o menos aceito, historicamente, por carregar o peso das guerras. Um dos principais autores que eu consultei, Abdelmalek Sayad, constata por exemplo que muitos dos imigrantes são obrigados a carregar o seu país nas costas. E com a evidência de uma guerra ou um conflito civil, o refugiado é o mais “pesado”.
O imigrante, por outro lado, é a incógnita. A questão acaba sendo essa: ao ser tornado uma incógnita, ele não é nem um cidadão de seu país, nem um cidadão nacional. Deixá-lo nesse limbo permite, por exemplo, que muitos governos expulsem imigrantes assim que estes se tornem não mais “desejáveis”, e a aceitação dele pode variar de acordo com fatores culturais ou econômicos.
O estrangeiro, por outro lado, é o “turista” do qual fala Zygmunt Bauman. A sua principal característica é a mobilidade. Ao contrário do imigrante, que é obrigado a se enraizar em um único lugar devido às dificuldades financeiras e políticas, o estrangeiro transita pelo mundo sem se preocupar com sua raiz. Ele pode se deslocar quando bem entender, e isso o diferencia inclusive do próprio nacional que nunca terá condições de se desterritorializar.

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OM: Esses “papéis” podem ser trocados?

GB: Claro, o refugiado pode ser visto, arrisco, como um “coitado” que deve ser acolhido, enquanto o imigrante pode tomar o lugar do “aproveitador”, que quer apenas enriquecer e roubar os recursos do país. Estes são discursos bastante comuns durante toda a história do Brasil e foram feitos contra os judeus e alguns grupos de árabes, por exemplo, durante todo o início do século 20. O que todos estes discursos e conceitos promoveram, ao longo desse período? A desumanização daquela pessoa que está por trás do imigrante, do refugiado, do estrangeiro. Era uma forma de dizer claramente, seja para qual efeito fosse: você é o outro. Não somos iguais. Não é à toa que, conforme descrevo na tese, pelo menos 12 campos de concentração de estrangeiros foram identificados durante os anos 1930 e 1940. Não eram, certamente, os mesmos que se viam na Europa naquele momento. Mas a gênese e, inclusive, os grupos, eram os mesmos.

Luiz Carlos Erbes/ Câmara Municipal de Caxias do Sul

Ganenses que vieram para a Copa do Mundo em 2014 e pediram refúgio ao Brasil recebem orientação



OM: Como é percebido o estatuto do escravo, que foi um imigrante forçado?

GB: O escravo nunca foi reconhecido oficialmente como tal até o início da década de 2000. Até mesmo as Nações Unidas demoraram em reconhecer a escravidão como um crime contra a Humanidade, o que exige um processo de reparação e conciliação. Para que não se tenha dúvida de que o negro era nocivo ao futuro do Brasil, os republicanos do fim do século 19 legislaram para que fosse proibido subsidiar a entrada de imigrantes negros. A tese conta um caso curioso de um projeto de lei que tentou trazer negros livres para o Brasil na década de 1850, com recursos públicos. Não passou, evidentemente, mas isso demonstra um pouco a força que tem a figura do imigrante como trabalhador – o imigrante trabalhador é praticamente um pleonasmo na História da imprensa brasileira que pesquisei. E o negro era um “bom” trabalhador, desde que fosse colocado em seu lugar, de subalternidade.
A luta do negro para se tornar cidadão é tão atrasada que, eu arrisco, ainda está longe de chegar a um patamar aceitável de inclusão. As profissões similares ocupadas por escravos durante o século 19, como amas de leite e carregador, ainda são ocupadas por uma imensa maioria de negros. E isso tem a ver com o status do negro – e aí incluímos os haitianos, os malineses, os congoleses, etc – de subalternidade que é imposto na imprensa brasileira ao longo desses anos. Isso mudou? Não sei. Pela minha área de atuação, que é restrita aos imigrantes na imprensa, não muito.


OM: Diferentes comunidades costumam ser percebidas de maneiras diferentes: "os japoneses são trabalhadores", por exemplo. Existem muitos estereótipos?

GB: Os estereótipos são percebidos em toda a história da imigração relatada pela imprensa. Há dezenas de exemplos na tese e no site da tese. Eles mudam, é claro, de acordo com os ventos políticos. Há diversas entradas possíveis: ideológicas, sociais, culturais, religiosas. Depende dos objetivos de cada grupo político. Houve, como afirmei, quem defendesse o negro como trabalhador em plena década de 1850, enquanto outros trabalhadores – como os judeus e os árabes em alguns momentos no início do século 20 – foram tidos como “aproveitadores” por basearem toda a sua renda no comércio, que supostamente não “produzia” efetivamente nada. No fundo, os estereótipos cumprem uma função política. Uma vez alcançados os objetivos políticos, muitos dos estereótipos eram deixados de lado, substituídos pelo “humanismo” da “hospitalidade” brasileira – outro recurso usado na esmagadora maioria das vezes apenas com um propósito político. Incluindo o de expulsar algumas etnias.


OM: Houve épocas em que o imigrante era mais bem visto ou, ao contrário, mais rechaçado? Já houve a tentação de fechar as fronteiras?

GB: Não há nenhum período político brasileiro em que não houvesse a tentativa – muitas vezes bem-sucedida – de “fechar as fronteiras”. Todos – inclusive o atual. Essa tentação dá o tom do “diálogo” em torno da imigração. Mais recentemente, por exemplo, quando a imprensa relatou uma suspeita de ebola de um guineense no sul do país, milhares de comentários pelo fechamento das fronteiras foram repetidos nos portais de informação e pelas redes sociais, mesmo que a Organização Mundial da Saúde alertasse que este não era um caminho razoável ou aceitável. E isso tem a ver não apenas com a ideologia das pessoas, mas com a forma como a imprensa coloca o tema – conforme mostrei na tese. O sensacionalismo é um dos métodos para assustar as pessoas.
Em outros momentos, o imigrante por vezes era mais bem visto – o branco, católico, trabalhador – enquanto esse jogo poderia virar na geração seguinte – caso dos italianos “subersivos”, ou quando a Itália estava do “lado errado” da guerra. Há grupos, no entanto, que nunca tiveram uma aceitação ampla e irrestrita por parte da imprensa. É caso dos muçulmanos abertamente praticantes. E esse é um problema estrutural que persiste. Há, evidentemente, outros casos, como o dos paraguaios, dos bolivianos ou dos chineses. O estigma pesa muito mais do que em relação aos espanhóis ou os sírios, por exemplo.


OM: Qual é o impacto de eventos como o 11 de setembro ou ações do Estado Islâmico sobre a percepção do público brasileiro sobre árabes e muçulmanos?

GB: A imprensa passa a ideia, atualmente, que os atentados dos EI pesam sobretudo contra os cristãos, quando são os muçulmanos – qualquer um que se coloque contra o fundamentalismo e, portanto, uma imensa maioria de muçulmanos – as maiores vítimas. Não são os grandes eventos que formulam esse tipo de orientação, e sim a imprensa que, pouco a pouco, vai idealizando um cenário em que há atores facilmente identificáveis em um roteiro pré-moldado. Ao tentar “explicar” os acontecimentos de modo “simples”, a imprensa ainda continua ressuscitando velhos fantasmas de modo eletivo. É por isso que os rebeldes de maioria cristã da República Centro-Africana, que promovem atrocidades parecidas com as do Boko Haram, são muito menos conhecidos. Ou, em outro exemplo, é isso que faz com que os budistas sejam vistos no país como sinônimo de povo pacífico, mesmo que haja fundamentalistas extremamente violentos no sul da Ásia. Esses relatos não cabem na historinha contada na grande imprensa.

Lamia Oualalou / Opera Mundi

Salam é um dos refugiados que vive em ocupação de grupo de sem-teto no centro de São Paulo



OM: Existe um complexo de vira-lata em relação a alguns estrangeiros?

GB: Sem dúvida. Isso, no caso da tese, é percebido na forma elogiosa, quase que divina, que são relatadas algumas culturas europeias aqui estabelecidas. Isso nada tem a ver com a realidade, mas esse mecanismo tem a ver com a noção de que alguns povos são superiores a outros, o que tem sido combatido desde marcos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A minha real expectativa é de que essa diferenciação – pelo menos tal como se dava nos séculos anteriores – tende a enfraquecer.


OM: Como explicar a dificuldade encontrada para mudar o estatuto do estrangeiro, que data da época da ditadura?

GB: Trata-se de um misto de descaso com conservadorismo. Ainda impera, inclusive no discurso de esquerda – o que impressiona, pois trata-se evidentemente de um discurso da direita –, um nacionalismo que teima em segregar os nacionais e os estrangeiros, relegando os estrangeiros a eternos “outros”. Esse discurso não encontra base na realidade, mas persiste, de alguma forma. O descaso é coerente com a atenção que o tema recebe do público em geral. A questão imigrante parece um capítulo relegado ao esquecimento, uma nota de rodapé na história do Brasil. O assunto sempre retorna, mas como um detalhe, um apêndice.
A tese que prevaleceu é a tese conservadora do “caldeirão cultural”. Uma vez jogados todos num caldeirão, sairia uma raça melhorada, mistura da força do negro (ou sem o negro, de preferência) com a inteligência do europeu. Daí nasceria o brasileiro, o “diverso”, que é outra coisa, única. A ideia de que várias culturas poderiam conviver é pouco aceita, na prática: a diversidade tipicamente brasileira tem a ver com o fato de que todas as culturas deveriam sumir, produzindo o brasileiro miscigenado (porém brasileiro).
Dessa forma, mudar o estatuto de uma peça de segurança pública, como é atualmente, para uma legislação humanista e aberta à diversidade não encontra ampla aceitação na sociedade. Essa aceitação pode ser moldada e, novamente, os estereótipos certamente serão convidados a atuar politicamente em prol dos projetos em disputa. Essa é uma longa batalha e meu palpite é que, caso venha à tona, pode se tornar um grande debate nacional – o que, no cenário de ultraconservadorismo atual, pode ser um desastre. Analiso a cobertura da aprovação do estatuto em vigor, no início da década de 1980, e não me parece algo distante do que vivemos hoje.