quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sentenças e arrazoados: quem condena o quê

Vestígios de civilização

A fundamentação do juiz que inocentou um usuário de maconha vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.


Marcio Sotelo Felippe *
Boletim Carta Maior  Maj. Will Cox/ Georgia Army National Guard

Em "Futuros Amantes", Chico Buarque imagina que daqui a milênios, quando o Rio for uma cidade submersa, escafandristas virão explorar os segredos da sua amante, sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma. E que sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização.
 
Imaginemos que sábios, daqui a milênios, encontrem, entre vestígios de antiga civilização, a sentença de Rubens Casara, da 43ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro. Casara absolveu um homem, preso em flagrante, que mantia em sua casa plantio da erva da qual se extrai a maconha.
 
Outros milênios a partir daí correrão para que os sábios do futuro expliquem esse fragmento de estranha civilização. Porque descobrirão que havia duas drogas muito populares.
 
Uma era depressora do Sistema Nervoso Central, agindo ainda sobre fígado, coração, vasos e parede do estômago. Com o aumento da concentração da droga no organismo a pessoa apresentava diminuição da resposta aos estímulos, fala pastosa, dificuldade para andar. Em concentrações mais altas o indivíduo entrava em coma e podia morrer. Dependendo da quantidade ingerida, os efeitos em geral eram diminuição da capacidade de discernimento, entorpecimento fisiológico, redução da capacidade de tomar decisões racionais, ansiedade, depressão, parada respiratória e morte. Entre os consumidores dessa droga, cerca de 11% se tornavam dependentes. Estava claramente associada a doenças graves, como câncer, cirrose hepática, etc.
 
Outra provocava euforia, sonolência, perda de noção do tempo e espaço, perda de coordenação motora, de equilíbrio, taquicardia, perda temporária de inteligência. Tal como a outra, provocava dependência em aproximadamente 11% dos usuários e estava associada a doenças graves, câncer, problemas respiratórios, etc.
 
A primeira droga era lícita, estimulada pelo meio social, propagandeada nos órgãos de comunicação, tinha experts com grande prestígio internacional, admirados pela técnica e refinamento de seus saberes.
 
A segunda era ilícita. Quem usava ou comercializava podia ter sua vida, ou parte dela, destruída pelo Estado, que sobre eles fazia desabar toda a sua feroz capacidade repressiva. Em todo o mundo, milhares de pessoas eram presas pelo seu uso ou comercialização. O comércio ilegal gerava uma rede de delinquência, e por vezes organizações poderosas, praticamente subestados, nas quais tudo se podia, toda sorte de violências, assassinatos, torturas. Recursos imensos eram desperdiçados pelos Estados para combater essa droga, drenando riqueza que poderia ser usada para melhorar a condição de vida das pessoas que, lembrarão os sábios do futuro, viviam em estruturas sociais iníquas, em que pouquíssimos concentravam praticamente toda riqueza e bilhões viviam as agruras da fome e de uma vida miserável e sem esperança.
 
Competirá em vão aos sábios do futuro explicar essa loucura social. Muitas torpezas e muita estupidez histórica podem ter uma lógica interna, absolutamente insustentável do ponto de vista moral, mas uma explicação. Pode ser deslindada, por exemplo, a estupidez de queimar mulheres como bruxas na Idade Média como manutenção e reprodução da estrutura de poder da Igreja Católica. Podem ser deslindados os motivos asquerosos pelos quais judeus foram massacrados ao longo da História.  Mas no caso das duas drogas cujos efeitos descrevi, a primeira o álcool, a segunda a maconha, os sábios do futuro poderão concluir que os vestígios desta estranha civilização indicavam que foi o tempo da mera esquizofrenia social, ou seja, ausência de racionalidade que decorre da dissociação com o real.
 
A sentença do juiz Rubens Casara é antológica porque em poucas palavras, com uma clareza solar, de um lado faz emergir todos os problemas filosóficos, sociais, morais e jurídicos que dizem respeito à questão das drogas, e de outro o respeito a garantias e direitos fundamentais.
 
A droga é uma questão de saúde pública, não de polícia. Punir um adicto ou impor qualquer sanção ou restrição de direito a ele é o mesmo que punir quem sofre de, digamos, enxaqueca. A adição é doença. E quem consegue usar recreativamente maconha ou qualquer outra droga sem se tornar adicto deve ser tratado como   todos nós outros que ingerimos álcool social e recreativamente.
 
O uso é uma decisão do indivíduo. Sendo uma decisão do indivíduo, a licitude de sua obtenção deve ser, por inexorável decorrência lógica, admitida, com o que milhares de pessoas deixarão de ter suas vidas destruídas pelo envolvimento com a proibição indevidamente decretada pelo Estado. E estas pessoas são, quase sempre, os pequenos, homens e mulheres pobres sem qualquer esperança de uma vida melhor que, por isso, se arriscam a perder parte de suas vidas em cadeias ou, às vezes, a própria vida.
 
Afora esses aspectos mais gerais, filosóficos, a sentença do juiz Casara demole práticas perversas da persecução penal às drogas. Por exemplo, a associação automática, a priori, entre quantidade e tráfico. A decisão faz prevalecer a presunção de inocência, que inexiste em regra na prática policial e judiciária nesses casos. Examinando as provas com lógica implacável, conclui que as mudas, não obstante a quantidade, somente poderiam ser para uso próprio. Na esmagadora maioria dos casos policiais, promotores e juízes agem como se houvesse um software em suas mentes. Quantidade x, enter, condenação por tráfico. No julgamento em curso no STF um ministro chegou a propor a exata quantidade de droga que seria suficiente para caracterizar o tráfico. Sim, isto facilitaria muito. Juízes não precisariam mais usar a faculdade de raciocinar e colher provas e também dispensar esse chato princípio da presunção de inocência.
 
Ressalto, por fim, a parte final da fundamentação do juiz Casara porque vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.   Tudo que precisa ser dito sobre esse aspecto nela está: “ ... viola o princípio da proporcionalidade punir com pena privativa de liberdade um indivíduo que, para fugir dos riscos gerados tanto pela ‘indústria da ilegalidade’ quanto pela opção política que aposta no modelo bélico de enfrentamento de um problema que é, na realidade, de saúde pública, opta por cultivar a substância que pretende usar”.
 
Os sábios do futuro ficarão perplexos com esta civilização ensandecida, mas uma coisa não poderão deixar de dizer:  investigando os vestígios de uma estranha civilização, havia numa cidade chamada Rio de Janeiro um juiz.

*Marcio Sotelo Felippe é advogado e jurista. Exerceu o cargo de procurador geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O feici e seu poder tentacular...

18/12/2015 - Copyleft
Carta Maior 

O Whatsapp caiu e a culpa é do Facebook.

A responsabilidade originária deste dano é da postura arrogante e unilateral desta empresa que dissimuladamente alega operar pelo bem comum


Pedro Ekman* reprodução

O Brasil amanheceu nesta quinta-feira sem trocas de mensagens pelo Whatsapp e a culpa é do Facebook. Para quem está chegando agora, vale avisar que o Grupo Facebook de Mark Zuckerberg é também dono dos aplicativos Whatsapp e Instagram. A justiça determinou a suspensão por 48 horas do Whatsapp no Brasil por descumprimento de ordem judicial que determinava o acesso a dados do aplicativo de pessoas que estavam sendo investigadas.


Zuckerberg se disse “chocado que os esforços em proteger dados pessoais poderiam resultar na punição de todos os usuários brasileiros”. Balela, Zuckerberg não está preocupado com a privacidade dos brasileiros, ele manipula e vende todas as informações que coleta de absolutamente toda a população ao redor do mundo, mesmo aquelas privadas que não era para ninguém mais saber a não ser você e o destinatário da sua mensagem. Mandar conteúdo íntimo ou particular por foto, texto ou som via Whatsapp, Instagram ou Facebook é o mesmo que tirar a roupa em um Shopping Center pensando que está entre as quatro paredes do quarto. Isso não é nem de longe estar preocupado com a privacidade da população.


A decisão judicial de suspensão também não é razoável. Retirar do ar o serviço de comunicação de toda a população como punição a um fato restrito a poucos usuários tampouco parece respeitar o princípio de proporcionalidade garantido na Constituição Federal brasileira. Seria o mesmo que mandar fechar todas as agências dos Correios por causa de um punhado de cartas. Ou retirar o serviço de telefonia do ar se a operadora se negar a instalar uma escuta definida por ordem judicial.


Mesmo a medida desproporcional da justiça brasileira, pelo menos em parte, também é culpa do Facebook. A conduta arrogante da empresa americana em se recusar a cumprir ordem judicial no Brasil praticamente leva o litígio a uma estratégia que possibilite algum efeito concreto. Antes de determinar a suspensão do serviço, a justiça já tinha determinado multa diária de 100 mil reais que chegou a somar 12 milhões de reais. A postura do Facebook foi a mesma: “Não devemos satisfação a vocês, nos submetemos apenas às leis dos Estados Unidos”.


Muitos vieram a público bradar que o Whatsapp só teria saído do ar por que no Brasil aprovamos o Marco Civil da Internet que permite à justiça fazer esse tipo de coisa. Não é verdade, mesmo antes da aprovação desta lei, um juiz já chegou a determinar a retirada de todo o YouTube do ar a pedido da Daniela Cicarelli que queria a retirada de um único vídeo privado. É o mesmo caso de se tentar eliminar o mensageiro por causa da mensagem. Um erro grosseiro que não acontecia no mundo analógico, mas que pode se tornar uma prática no ambiente digital por puro desconhecimento do tema pelo sistema judiciário ou por simples abuso de poder.


Responsabilizar a ferramenta pelo mal uso que se faz dela é algo torpe. Alguns podem dizer que a criptografia é uma ferramenta utilizada por quem quer se esconder para cometer crimes. Pode até ser, mas é essa mesma criptografia que protege o voto eletrônico, a sua conta no banco e as denúncias de corrupção do seu político preterido. Não se proíbe o uso de facas, elas podem ser usadas para machucar alguém e para passar manteiga no pão.


Além de devassar a privacidade de todos os cidadãos, o Facebook também comete outras ilegalidades diariamente. Os planos de celular com uso “gratuito” do Whatsapp e Facebook são uma afronta direta à lei brasileira que proíbe a discriminação de conteúdos na rede. O delito cometido pelo Facebook e operadoras de telefonia estabelece um pedágio seletivo na internet. Da mesma forma, não temos que suspender a atividade das plataformas, mas sim suspender os planos de venda discriminatórios.

Mais de um milhão e meio de usuários brasileiros descobriram o Telegram nas 12 horas em que vigorou a suspensão do Whatsapp. O Telegram tem garantias mais consistentes à privacidade do usuário, como serviço de mensagem criptografada com autodestruição automática e de ser mais divertido disponibilizando figurinhas (stickers) que podem ser produzidas pelos próprios usuários.  E como ele outros aplicativos de fato preocupados com a privacidade do usuário estão à disposição do público há muito tempo, tais como o Actor https://actor.im ou o Signal https://whispersystems.org/ recomendado por Edward Snowden.


- E se esses aplicativos são melhores por que nunca usamos?
- Por que ninguém tem.
- E por que ninguém tem?
- Por que o zapzap não desconta da franquia.


E assim seguimos em um ciclo vicioso que sufoca a competitividade comercial na rede aniquilando a inovação. Por isso é tão importante que se mantenha a rede neutra, sem discriminação econômica ou de qualquer natureza de um aplicativo sobre outros.


A medida adotada pela justiça foi desproporcional e não beneficia a sociedade penalizada pela conduta comercial da empresa. A responsabilidade originária deste dano é da postura arrogante e unilateral desta empresa que dissimuladamente alega operar pelo bem comum ao defender seus interesses privados. O debate que se abriu na sociedade e a descoberta de novos aplicativos e maneiras de consumo mais seguras e conscientes é o grande saldo positivo que tivemos nesse episódio e o custo disto para o grupo que quer tornar a internet um domínio privado pode ter saído mais caro do que os 12 milhões inicialmente cobrados de Zuckerberg.

*Pedro Ekman é do Conselho do Intervozes

Um projeto cinematográfico de documentação do atual período - Moore

17/12/2015 - Copyleft

Michael Moore: o que roubar na próxima invasão?

O objetivo desta nova invasão dos EUA não seria para se apossar do petróleo, mas das ideias e soluções político-sociais encontradas por outros países


Rui Martins - Correio do Brasil

reproduçãoO maior crítico e inimigo da estrutura político-militar americana, o cineasta documentarista e escritor Michael Moore, estará em fevereiro no Festival de Cinema de Berlim, com seu novo filme Onde a Próxima Invasão?,já exibido no Festival de Toronto e com estréia nos EUA na véspera do Natal.

Desta vez, o sistema americano quer limitar a penetração do filme entre os jovens, classificando-o como permitido apenas a maiores de 17 anos, alegando algumas cenas de drogas e uns nus naturistas, mas na verdade criando uma nova categoria – a da pornografia política.

Para Michael Moore, os EUA são um país belicoso em permanente estado de guerra, principal responsável pela situação atual no Oriente Médio, decorrente da invasão do Iraque, justificada com mentiras. Natural, por isso, se esperar uma nova invasão para acionar a indústria armamentista americana e se apropriar de alguma riqueza.

Entretanto, o objetivo desta nova invasão não seria para se apossar do petróleo de algum país, porém – e aqui entra a ironia do provocador Moore – das idéias e soluções político-sociais encontradas por outros países e superiores às aplicadas pelo liberalismo capitalista dentro dos Estados Unidos.

Entre elas estão o sistema de saúde e previdenciário dos franceses ; a política de legalização de certas drogas pelos portugueses ; o comportamento natural de muitos europeus com relação aos seus corpos nos campos naturistas de nudismo; as merendas escolares nas escolas francesas; as longas férias concedidas aos operários italianos; o melhor sistema educacional dos finlandeses; e a maneira como foram processados e presos os banqueiros islandeses envolvidos na falência do país.

Por que não roubar tudo isso desses países e fincar uma bandeirinha americana no lugar?

O sucesso de Onde a Próxima Invasão? vai depender da dose de humor aplicada por Michael Moore, já premiado com Palma de Ouro em Cannes e com Oscars nos Estados.
Seus filmes mais conhecidos – Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11.

Rui Martins, correspondente em Genebra, estará em Berlim, do 10 ao 21 de fevereiro, convidado pelo 66. Festival Internacional de Cinema.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Mídia, mídias, sistema midiático

Países do Brics partilham sistema de mídia que defende interesses da elite, diz pesquisadora





Raquel Paiva, coordenadora de estudo que mapeia a mídia no bloco emergente e professora da UFRJ, aponta similaridades do jornalismo nos cinco países
Raquel Paiva é a pesquisadora responsável por coordenar o núcleo brasileiro de pesquisa que faz um mapeamento da mídia nos Brics. Em entrevista a Opera Mundi, a professora de comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) apresentou os primeiros resultados do estudo comparativo do Brasil com Rússia, Índia, China e África do Sul.

Leia também: Mídia deve ser discutida da mesma forma que política e economia, dizem especialistas dos Brics

Reprodução/UFRJ

Raquel Paiva é professora titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)


A perspectiva inicial é que os problemas de concentração e os interesse econômicos e políticos a frente dos veículos de comunicação é uma questão em comum entre os países do bloco emergente.Na esteira do crescimento dos Brics, Raquel acredita no esforço conjunto de grupos de pesquisa, profissionais e sociedade civil para que o bloco emergente possa também representar um novo modelo comunicacional contra-hegemônico.

Opera Mundi: Por que é importante discutir mídia e comunicação social na perspectiva dos Brics? O que há em comum entre os países que compõe o bloco em termos de comunicação?
Raquel Paiva: Acredito que da mesma maneira que se discutem outras variáveis com relação a este bloco que se iniciou e se consolidou a partir principalmente do viés econômico, outras forças também passam a ser elencadas como passíveis de discussão. Até mesmo questões que estejam de fato relacionadas à vida de suas populações e à solução de problemas seculares. A comunicação social em todas as abordagens é fundamental neste contexto.

De comum entre os países que compõe este bloco acho que há principalmente o sofrimento da maior parte da população, a existência de castas e elites transnacionais, um sistema de mídia que defende os interesses dessa elite politica e econômica, concentração de veículos, uma legislação restritiva de produção e um avanço tecnológico que pode interferir de maneira decisiva nessa concentração dos centros produtores de informação e entretenimento.

OM: Enquanto bloco emergente, você acredita que os países que integram os Brics podem apresentar contribuições para pensar a comunicação para além de uma lógica hegemônica? Ou seja, é possível pensar em novas formas de produção que nascem na esteira de uma nova organização mundial?
RP: Bom acho que sim, é possível idealizar e mesmo gestar novas formas de comunicação. Mas até agora constatamos a presença do mesmo modelo e com uma censura forte que se não é politica, mas é econômica. Não sei exatamente se estas novas possibilidades discursivas surgiriam a partir de um novo bloco governamental, mas acredito firmemente que grupos de pesquisa, de professores, de jornalistas desse bloco capazes de dialogar podem sim gestar novas possibilidades informacionais e comunicacionais.


Ignacio Ramonet: Maior batalha da esquerda na América Latina é contra 'golpe midiático'

México: Após assassinato de fotógrafo na capital, cresce medo entre jornalistas no país

Polícia diz que homem que baleou repórter e cinegrafista nos EUA atirou em si mesmo, mas está em 'condição crítica'

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Novas mídias articuladas formarão a próxima grande mídia


  

9.12.2015 - 9:36  

debate Mídia de Massas e Massas de Mídia trouxe para o Emergências a apresentação de destacadas experiências de comunicação alternativas à tradicional grande mídia. O debate foi realizado na tarde dessa terça-feira (8) no palco principal da Fundição Progresso, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro (RJ).

A mesa formada majoritariamente por mulheres foi mediada pela secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC), Ivana Bentes, que definiu a proposta do debate como uma pequena mostra de projetos latino-americanos que resolveram não esperar o fim dos oligopólios midiáticos por meio de regulamentação legal, passando à experimentação em verdadeiros "laboratórios de novas narrativas". Nas palavras da secretária, "a articulação dessas novas mídias é a nova grande mídia".

Debate Mídia de Massas e Massas de Mídia trouxe para o Emergências a destacadas experiências      de comunicação alternativas à tradicional grande mídia (Foto: Rafael Vilela)
A experiência dos Jornalistas Livres foi apresentada pela jornalista Laura Capriglione. Por meio de um detalhado relato sobre as recentes ocupações de escolas públicas de São Paulo e sobre a cobertura realizada pelos próprios estudantes, por seu coletivo e pela mídia tradicional dessas mobilizações, ela reafirmou a necessidade e a possibilidade concreta de se criarem narrativas contra-hegemônicas com alcance massivo.

Descontentes com o tratamento truculento que recebiam do governo e da imprensa, que os tratavam como vândalos, os estudantes organizaram em todas as escolas ocupadas uma página no Facebook e oficinas para aprenderem a fotografar e a conceber, filmar e editar vídeos, por exemplo. Tudo com ajuda de vários outros coletivos, entre eles os Jornalistas Livres, que conseguiram gravar e publicar falas do então secretário de Educação de São Paulo revelando sua tática de guerra contra os jovens. 

"Descobrimos que eles [Governo de São Paulo] iriam fazer uma reunião com os diretores para preparar essa guerra e esse foi exatamente o termo que eles usaram. E isso foi gravado. E imediatamente os jovens foram pra rua para falar: se quer guerra terá, se quer paz quero em dobro", contou Capriglione.

#YoSoy132

Vinda do México, Ana Rolón contou a história do movimento estudantil #YoSoy132, nascido de um protesto feito por 131 estudantes da Universidade Ibero-americana durante uma visita do então candidato à presidência do México Enrique Piñera Nieto, acusado de violar os direitos humanos. Hostilizados pelo candidato e chamados de "manifestantes pagos", os estudantes publicaram um vídeo na internet sobre o ocorrido que, em menos de uma hora, obteve mais de 1 milhão de visualizações.   

"Aí percebemos a internet como uma ferramenta poderosa para democratizar a comunicação. Por suas qualidades rizomática e democrática, ela apresentava novas soluções para responder às nossas novas necessidades", relatou. 

Com a viralização do vídeo, espalhou-se pela rede também a hashtag #YoSoy132 em apoio aos estudantes. Daí nasceria o movimento que, durante as eleições, conseguiu realizar um debate com os candidatos a presidente transmitido ao vivo via internet e sem a participação de Piñera, que se negou a comparecer. Esse vídeo hoje possui quase 1,5 milhão de visualizações no canal do movimento no Youtube. Passado o pleito, os estudantes transformaram seus canais digitaisem espaços de difusão de conteúdos relacionados a pautas de movimentos sociais.

Também do México e com inspiração no movimento Zapatista, o espaço de comunicaçãoDesinformémonos foi apresentado pela jornalista Gloria Munhoz como uma tentativa de combater a criminalização de lutas sociais e, ao mesmo tempo, refletir criticamente sobre elas. "O conceito é desaprender um monte de coisas que nos ensinaram e não ter só uma informação complementar, mas outra informação, construída de baixo para cima", definiu Munhoz, agregando que atualmente os conteúdos postados por eles nas redes sociais tem em média 35 milhões de interações por semana.

Uma experiência similar, mas concebida no Uruguai, foi contada por Lucas Silva, um dos integrantes do jornal-cooperativa La Diária. "A proposta é ampliar a agenda informativa, de maneira contextualizada e enfocando temas como gênero, direitos humanos, economia solidaria e outros", destacou.

O jornalista colombiano Holman Morris falou sobre sua experiência como diretor da TV pública da cidade de Bogotá. Criador do programa de TV Contravia, que mostrava as violações aos direitos humanos "em uma época em que o governo de Alvaro Uribe dizia que na Colômbia não havia conflito armado, nem desaparecidos", Morris afirmou ter sido preso arbitrariamente duas vezes e exilado por retaliação ao seu trabalho. 

O jornalista voltou a seu país convidado para assumir o cargo na TV pública de Bogotá com a missão de coloca-la a serviço dos direitos humanos e de uma cultura de paz. "Vimos que não basta ter um canal. O importante era fazer diferente do tradicional, aprender como relatar, projetar e qual era a agenda própria desse canal. Então, entregamos o canal às pessoas: aos movimentos jovens, Hip Hop, LGBT, ambientalistas. Uma TV de muitas caras e cores", contou.

Já o ator e humorista brasileiro Gregório Duduvier pouco falou sobre seu projeto Porta dos Fundos, dedicando seu tempo às críticas sobre as relações promíscuas que tanto a política como os meios de comunicação mantêm com o grande capital, o que limitaria o potencial transformador de ambos. Porém, todas as ações de caráter conservador por eles praticadas são justificadas em nome "do suposto gosto conservador do povo", disse ele.  

"Sempre tive que lidar com críticas ao humor que faço com frases do tipo ‘o povo não gosta disso', com base em pesquisas que ninguém nunca viu. Cansei de ouvir isso quando era contratado da Globo e no começo do Porta dos Fundos também. E o humor da TV aberta são as mulheres objetificadas, os homens desmunhecando, o caipira, o negro, são sempre as minorias. Basicamente, eles batem nas mesmas pessoas que a polícia", ironizou.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O que a megamídia não diz sobre o movimento dos alunos

02/12/2015 - Copyleft
Fonte: Boletim Carta Maior 

A revolta dos adolescentes vista por dentro

Quem são, o que querem e como se organizam os garotos e garotas que estão fazendo São Paulo pensar.


Katya Braghini, Paula Maria de Assis, Marianna Braghini Deus Deu, Andrezza Silva Cameski - Outras Palavras
  EBC

Estudar xingamentos não é difícil. O xingamento é anúncio simples, drástico, um slogan que tenta demarcar rispidamente um ponto de vista, uma forma de ver o mundo, uma representação construída sobre pessoas, coisas, instituições. Um xingamento corta a paisagem e tenta ser a verdade. Recruta as nossas faculdades de atenção.

Chamar alunos que ocupam escolas de “parasitas sociais”, porque eles simplesmente não aceitam o novo plano de governo do estado de São Paulo chamado “reorganização escolar” não é só injusto, já que eles estão em conformidade com o direito que lhes pertence. Representa também, muito claramente, o repúdio de uma parcela da sociedade paulista diante dos princípios da dignidade humana estabelecidos em um estado democrático de direito; aquilo que delimita as regras de exercício de poder do estado diante de sua própria administração.

Atentos à ordem e à harmonia social como expressão máxima da sensibilidade política, ignoram a contradição e as lutas sociais como condição essencial do sistema político que os rege; espelham o seu desconhecimento que é distribuído como verdade absoluta; regem o absurdo como uma contra-educação.

A ofensa aos alunos é como a “escola do mundo do avesso”, mundo de pernas para o ar, que na poética de Eduardo Galeano nos ensina a “padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo”. Nessa escola, o que vale é o crime das aulas de impotência, amnésia e resignação. Ou, como diz o próprio autor, se Alice voltasse, veria pela janela o mundo de cabeça para baixo.

Porque na escola de Galeano, alunos têm cursos de intolerância, de injustiça, machismo, racismo. Têm aulas de impunidade e de opressão. Esse espaço cruel, de mundo virado, mostra-se como o mais democrático dos locais, porque está em todos os lugares. Trata-se da aceitação geral de que pessoas são mercadorias e, desta forma, são governadas.

Essa sociedade é um cenário pessimista. Ataca alunos que defendem escolas. No livro, a esperança surge pelo combate de grupos contrários a essa lógica que repete o xingamento, jogando o certo no errado e fazendo do errado o certo.

No dia 14/11/2015, a página do G1 descrevia o orgulho de alguns pais diante da reação dos filhos que tentam impedir o fechamento de suas escolas. O Sr. Rabsaque Moreira Cruz, pai de aluno da EE Fernão Dias Paes – uma das primeiras escolas ocupadas – dizia-se orgulhoso, julgando que a “semente da mudança” na educação do estado seria feita pelos próprios alunos do sistema público.

Entretanto, os comentários das notícias cortam essa alegria, dizendo que pais e alunos “são massa de manobra de uma esquerda invasora das escolas”; “alunos deveriam estudar em vez de ocupar o tempo vagabundando em invasões”; que a culpa é da “maldita inclusão digital” que permite o contato dos jovens para fazer “política ordinária”; chamam a polícia e pedem “borrachon nos caras”; pedem “São Paulo para os paulistas” em alusão ao número de migrantes nas instituições; ofendem alunos chamando-os de “parasitas sociais” etc..

Xingar nada esclarece sobre quem são esses jovens e suas famílias, e conta menos ainda sobre o porquê de se opor a uma ideia que é divulgada como certa e racional. Afinal, quem são eles? O que querem? O que os mobiliza?


Breve panorama da situação paulista – Informações e dados

“Reestruturar” a rede de ensino significa separar os estudantes por idade e, para isso, fechar algumas unidades escolares tidas como ociosas. Cada escola, segundo a proposta, deverá ter exclusivamente um dos ciclos de ensino: Fundamental I, Fundamental II, ou Ensino Médio.

De acordo com o Censo Escolar MEC/INEP (2013), São Paulo com a sua rede de ensino mantinha 5.585 escolas. Após a divulgação do plano de reestruturação, as escolas seriam redimensionadas da seguinte maneira: 1.443 escolas de ciclo único; 3.186 escolas com dois ciclos e 479 escolas com três ciclos.

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) anunciou também que a reorganização do ensino escolar afetaria 94 escolas que passariam a outras funções: 25 na capital, 20 na região metropolitana, 45 no interior e 4 na Baixada Santista. Outras 28 escolas estão com destino incerto. Desse total, indicam que 66 prédios poderão abrigar unidades de ensino técnico ou seriam transformadas em creches e escolas municipais.

Ao todo, o plano pretende “liberar” 1,8% das 5.147 escolas do estado. No total, 1.464 unidades estão envolvidas na reconfiguração, mudando o número de ciclos de ensino que serão oferecidos. A SEE-SP divulga que 311 mil alunos serão remanejados, do total de 3,8 milhões de matriculados. A mudança atinge ainda 74 mil professores.