As polarizações não dão conta das mudanças de imaginário. Entrevista especial com Ivana Bentes
“A primeira coisa que
chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória
apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma
Mídia-Estado na cultura política”, afirma a pesquisadora.
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Foto: www.brasilescola.com
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Os discursos de que o
Brasil está dividido pós-eleições presidenciais, por conta da diferença de 3% entre a presidente reeleita e o candidato de oposição,
“não explica a eleição de 2014”, avalia
Ivana Bentes em entrevista à
IHU On-Line. “Não podemos falar de um
Brasil
partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e
desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos”, enfatiza. Segundo
ela, “a partição binária não serve a ninguém. É mais um ‘meme’ e uma
narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é
muito mais mesclado e instável que o ‘muro’ que querem erigir entre
nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos,
PT e PSDB”.
Apesar de a leitura de um país dividido ser equivocada na opinião da
pesquisadora, ela frisa que a polarização e a “narrativa do embate não
desapareceu”, tampouco “os conflitos de classe”. Embora a divisão
apareça em alguns pontos, “essa dualidade não dá conta, em termos
simbólicos, das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos
muitos”, enfatiza.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail,
Ivana Bentes responde algumas das perguntas da
IHU On-Line, com ênfase em uma análise do discurso tanto da mídia, que ela denomina de
“Mídia-Estado”, quanto das redes sociais. “Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam
revistas como a Veja,
pois com uma mídia-multidão as denúncias seriais e campanhas podem ser
desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes
também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo,
intolerância”, pontua.
Para ela, “é fato que o estilo Veja e o ‘ódiojornalismo’
acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar
sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e
conservador)”. Contudo, pontua a professora de Jornalismo, as redes,
diferente de veículos como a Veja, “antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-la ou diminuir seu estrago”.
Ivana explica o apoio dos movimentos sociais à
reeleição de Dilma ao “reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das
Jornadas de Junho de 2013,
à crise da representação, à democratização da mídia, à centralidade da
cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política”. A
presença do ex-presidente
Lula nas eleições, “de forma pragmática e simbólica”, também contribuiu para a reeleição da presidente
Dilma e “recolocou o
lulismo na linha de frente desta guinada à esquerda da campanha de
Dilma”.
Pós-eleições, com a
reeleição de Dilma,
Ivana frisa
que “é preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que
estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos
muito à direita e que está ‘tudo dominado’. É preciso uma virada de
imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica
‘mudança’ que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos
distintos”.
Ivana Bentes é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É doutora em Comunicação pela
UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. É coordenadora do
Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ.
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Foto: arquivo pessoal |
Confira a entrevista. IHU On-Line – Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?Ivana Bentes - A primeira coisa que chama atenção na
eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente
Dilma Rousseff,
é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política,
associada com arcaísmos e anacronismos de um pensamento conservador que
atravessa os mais diferentes grupos e classes sociais. O resultado das
eleições e os discursos de ódio que afloraram não se explicam
simplesmente “partindo” o
Brasil entre ricos e pobres
ou muito menos entre regiões. É hora de entender a porosidade e
penetrabilidade desses discursos duais de demonização do outro, minando
um amplo campo social, e perceber novos imaginários emergentes.
Chegamos
ao clímax de uma campanha eleitoral que reflete uma cultura de
criminalização que produz uma ativa rejeição da política, apresentada
cotidianamente em narrativas midiáticas que ficcionalizam as notícias e
novelizam a política, com reiteradas associações da política e dos
políticos com corrupção, ilegalidade, traições, intrigas. Uma memética
negativa que afasta e despolitiza os muitos do que realmente está em
jogo: interesses econômicos, especulação contra a vida, a privatização
das riquezas, o moralismo e conservadorismo em que assujeitam minorias e
diferenças.
A fábrica de fatos e a produção da opinião públicaEssa cultura do
“ódiojornalismo” e o
estilo Veja
também aparecem na retórica dos articulistas e colunistas de diferentes
jornais e veículos de mídia que formam hoje uma espécie de
“tropa de choque” ultraconservadora
(Arnaldo
Jabor, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Demétrio
Magnoli, Ricardo Noblat, Rodrigo Constantini, são muitos), que
alimentam uma fábrica de memes de uma ultradireita que se instalou e
trabalha para minar projetos, propostas, seja de programas sociais, seja
de ampliação dos processos de participação da sociedade nas políticas
públicas, seja de processos de democratização da mídia e todo o
imaginário dos movimentos sociais.
Essa demonização da política
tornada cultura do ódio se expressa por clichês e por uma retórica de
anunciação de uma catástrofe iminente a cada semana nas colunas dos
jornais e que retroalimentam, com medo, insegurança, ressentimento, uma
subjetividade francamente conservadora de leitores e telespectadores.
Se
lermos os comentários das notícias e colunas nos jornais (repercutidos
também nas redes sociais), vamos nos deparar com um altíssimo grau de
discursos demonizantes, raivosos e de intolerância, à direita e agora
também à esquerda. Trata-se de uma redução do pensamento aos clichês,
memes e fascismo, extremamente empobrecedora, mas incrivelmente eficaz.
Essa
pedagogia para os microfascismos e a educação para a intolerância podem
ser resumidos na retórica que desqualifica e aniquila o outro como
sujeito de pensamento e sujeito político, o que fica explícito na fala
de alguns colunistas.
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“As eleições têm um componente
simbólico e de ‘narrativa’ que ultrapassa em muito qualquer
racionalidade ou matemática eleitoral”
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Um exemplo muito claro, inclusive no seu cinismo, é este trecho de uma coluna do
Arnaldo Jabor
de 28/10/2014, pós-eleições. Com uma argumentação pueril e assujeitante
que coloca eleitores, nordestinos e nortistas, pobres como
“absolutamente ignorantes sobre os reais problemas brasileiros”, em um
cenário pós-eleições em que “nosso futuro será pautado pelos burros
espertos, manipulando os pobres ignorantes. Nosso futuro está sendo
determinado pelos burros da elite intelectual numa fervorosa aliança com
os analfabetos”.
Numa coluna anterior, de 14/10/2014, podemos
ver como funciona essa pedagogia calcada na construção de memes e
clichês, a obsessão anacrônica por
Cuba e agora pelo
“bolivarianismo”
e o caráter ameaçador que se dá a qualquer política pública
contemporânea e modernizante que tenha como horizonte a participação
social:
“—
Qual é o projeto do PT? — Fundar uma espécie de bolivarianismo tropical e obrigar o povo a obedecer ao Estado dominado por eles. —
Que é bolivarianismo? — É um tipo de governo na
Venezuela
que controla tudo, que controla até o papel higiênico e carimba o braço
dos fregueses nos supermercados para que eles só comprem uma vez e não
voltem, porque há muito pouca mercadoria.”
Trata-se de metáforas primárias, mas capazes de se difundir velozmente em um “semiocapitalismo” para usar a expressão do ativista e pensador italiano Franco Beraldi, inspirada em Félix Guattari,
que tem como base signos, imagens, enunciados que giram velozmente,
viralizam, comovem. Essa é a base tanto do ativismo, da publicidade
social, quanto do pensamento conservador. A questão é como desconstruir
esses clichês e trabalhar para que essas mudanças em curso se
massifiquem a ponto de se tornarem um novo comum.
De certa forma
foi o que vimos em relação aos programas sociais. Não será possível
desmontá-los e desqualificá-los como se imaginava, pois o acesso aos
programas tem dois vieses: a entrada da chamada classe C
ao mundo do consumo, como consumidores simplesmente, mas ao mesmo tempo
uma politização do cotidiano, com a percepção de si como sujeito de
direitos e com uma interface com o Estado que não se reduz ao negativo,
carência e insuficiência de serviços.
A próxima desconstrução massiva da mídia se dará em torno das noções de “participação popular”, “liberdade de expressão” e “controle social”, buscando construir uma valoração negativa e associá-las a um projeto autoritário de “menos democracia”
e de restrição de direitos, quando se trata justamente de redistribuir
poder simbólico e capital midiático pelos muitos. Uma operação que está
em curso e que busca articular: políticas de regulação da mídia com “censura” de conteúdos.
IHU On-Line – Como avalia as discussões políticas via redes sociais?
Ivana Bentes -
Os discursos de ódio que assolam o país (uma construção em curso desde
2002 e alimentada midiaticamente no caso do antipetismo) contaminaram
também parte da militância governista e de forma difusa contaminaram as
redes e as ruas em embates reais e simbólicos. Sem dúvida, trata-se do
resultado de um processo em curso que passa pela judicialização da
política, mas que inclui muitas outras indignações, inclusive as das Jornadas de Junho de 2013
contra os partidos e os processos verticais de governos e Estados. Um
discurso represado contra a corrupção, que foi explorado à exaustão pela
mídia e que desde as Jornadas de Junho surge no que tem de libertador, mas também de hipócrita e moralista, um discurso de viés conservador.
A Mídia-Estado produz e
gerencia subjetividades, excitando e medindo forças com a sociedade,
com as redes, com muitos conectados e desconectados e teve, nessa
eleição, um caráter, eu diria que até épico, uma inflexão e temperatura
que intensificou a percepção dos muitos do que podemos chamar de
midiocracia, o governo das mídias.
O jornalismo padrão Veja como paradigma
Se analisarmos nessa eleição o grau de ingerência das mídias e o que chamei, na falta de uma palavra melhor, de
“ódiojornalismo”,
galvanizando microfascismos e comportamentos antidemocráticos, podemos
entender os mecanismos de produção de crise. Foi o caso da intervenção
da
Veja, nessas eleições, entre outros acontecimentos que precisam de algum tempo para serem avaliados. Como pudemos acompanhar no
projeto Manchetômetro,
que mede o número e destaque de matérias negativas para os diferentes
candidatos e o número de escândalos e seu tempo de exposição na mídia.
Nas análises da campanha presidencial de 2014, o site
"Manchetômetro" chama atenção para o devir-
Veja do noticiário brasileiro, com destaque para a
Folha de São Paulo, para o que chamou de
“Folha padrão Veja”, em que
“Dilma foi campeã de chamadas e manchetes negativas por quase todo período de campanha”.
Na ecologia das mídias que se retroalimentam, a
Folha chegou a publicar um material noticiando a ausência de repercussão da
capa da Veja sobre as acusações do doleiro a
Lula e
Dilma.
“Jornal Nacional não menciona reportagem”, de 25/10/2014.
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“Acho de um equívoco sem tamanho o
discurso antipetista que quer a todo custo ‘o PT fora do poder’, mas
também os que defendem a todo custo o governo”
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Sabemos que uma revista como a Veja é motivo de piada em todos os Cursos de Comunicação
do país, não apenas pelo nível de distorção e editorialização de suas
capas, mas como exemplo de um singular negócio. A moeda da Veja e de parte da mídia nunca foi o jornalismo, mas a "produção de crise"
e sua capacidade de produzir instabilidade política e destruir
reputações. Essa é sua única moeda: a ameaça de produção de crise e o
restabelecimento da "estabilidade".
Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja,
pois com uma mídia-multidão, as denúncias seriais e campanhas podem ser
desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes
também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo,
intolerância.
É fato que o estilo Veja e o “ódiojornalismo”
acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar
sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e
conservador). Vemos hoje o leitor típico de Veja
multiplicado e repetindo ou produzindo esse jornalismo de ódio, numa
subjetividade denuncista/fascista. Ao mesmo tempo, para além da
desconstrução da retórica "fait divers" da Veja
e desconstrução do denuncismo como "negócio", as redes antecipam as
crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-las ou
diminuir seu estrago.
Foi o que vimos nas capas antecipadas nas redes parodiando a capa denúncia da Veja contra Dilma e Lula,
na sexta-feira dia 24 de outubro. Utilizaram o humor como anticorpos
para uma denúncia bomba produzida para desestabilizar as eleições.
Trata-se da expressão da inteligência coletiva, que neutraliza o truque
conhecido e aguardado derretendo a suposta "bala de prata" dessas eleições antes mesmo de ela ser disparada.
A chegada nos Trending Topics - TTs da hashtag #deseperodaVeja denunciando e desconstruindo a denúncia do doleiro contra Dilma e Lula teve um efeito impactante e de amortecimento do golpe midiático. A resposta de Dilma Rousseff no seu programa eleitoral denunciando a manobra, o direito de resposta no próprio site da Veja, obtido junto ao TSE, a não repercussão da capa da Veja no Jornal Nacional
da sexta-feira formaram uma onda de repúdio e descrédito em torno da
operação golpista, notícia que não deixou de ser superexplorada pelos
adversários de Dilma Rousseff.
Ainda no campo da análise dos discursos, é preciso dizer que todo o poder de fogo de Veja
se concentra na capa, peça over editorializada e peça em que investem
todo o impacto emocional, estético (anunciam previamente nas redações e
contam com a cumplicidade do restante da mídia para repercuti-la
mimeticamente). No episódio dessas eleições, a capa se resume a uma
frase de um doleiro pinçada de um processo.
Ação e Reação. O escracho contra a sede da Abril
Dentro da revista, o conteúdo da capa é pífio sempre. Tudo se resume a três linhas: “O Planalto sabia de tudo — disse Youssef. — Mas quem no Planalto? — perguntou o delegado. — Lula e Dilma
— respondeu o doleiro. (....) O doleiro não apresentou — e nem lhe
foram pedidas — provas do que disse”, conclui a “reportagem”,
explicitando o próprio blefe. Aposta-se em uma capa editorializada e em
uma frase não comprovada para tentar desestabilizar uma eleição. A
maioria das pessoas também só lê as manchetes das primeiras páginas, a
disputa se dá aí, pois atuam formando os memes negativos, associando
pessoas, partidos e ações a crimes, ilegalidade, insegurança. A
estratégia se repete a ponto de não mais surtir o efeito esperado.
Ainda na sequência do golpe malsucedido de
Veja, vimos da reação com uma ação de
“escracho” da
União da Juventude Socialista – UJS, com pichação e lixo jogado na fachada da
Editora Abril. Uma ação que poderia ter custado a eleição de
Dilma, por confrontar diretamente a mídia e criar uma solidariedade com a
Veja. O fato de o
TSE ter dado direito de resposta à
Dilma
neutralizou parte do impacto negativo do golpe e contragolpe. Acho
legítimas as ações de escracho, revolta e indignação que produzem danos
simbólicos, um grande debate nas
Jornadas de Junho de 2013 que envolveu as ações
Black Blocs e que vemos que vieram para ficar na linguagem das ruas. Mas a ação do escracho na porta da
Abril,
legítima, foi no limite do “timing” e poderia ter selado uma reação
furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não
aconteceu.
O Jornal Nacional da Globo fez a crônica da Veja, da UJS e do TSE de forma razoavelmente equilibrada no dia 25/10, véspera das eleições, para quem esperava o “apocalipse” (mais um golpe de mídia) e um alinhamento automático da Globo com a Veja nesse episódio. Dilma manteve a vantagem na pesquisa do Ibope
e ganhou as eleições por uma diferença apertada de pouco mais de três
milhões de votos. Mas não antes de enfrentar um último boato nas redes:
que o doleiro delator, que passou mal em meio a tantas reviravoltas,
tinha sido envenenado pelo PT e agonizava em um
hospital! Chegamos num nível bem alto de novelização dos fatos, um tipo
de narrativa com vilões, mocinhos, vítimas e algozes que tem enorme
penetração no imaginário e nas redes, que funcionam como veneno e
antídoto, desconstruindo e produzindo memes e clichês.
Esse tipo
de acirramento na disputa política introduz uma lógica dual e de
confronto violento, pessoal, engajado e mobilizador, pois a “épica” e
narrativa criada traz um componente de despolitização, que desloca a
argumentação, o embate de ideias, para um confronto meramente
afetivo/emocional, como nos jogos de futebol e comportamento das
torcidas organizadas; o que aproxima ainda mais a política da ficção, do
teleshow da realidade e da lógica melodramática das narrativas
novelescas, populares no Brasil. Como politizar a comoção e os afetos?
Esse me parece um desafio para o ativismo e para a formação política.
O debate em torno da democratização dos meios de comunicação chegou a um limite no Brasil. Temos a Lei de Meios na Argentina, avanços no debate no Uruguai, no México. No Brasil, a Reforma da Lei Geral de Comunicações
segue obstruída mesmo sendo uma demanda e reivindicação de todos os
movimentos sociais e culturais. Com a massificação das redes sociais, o
midiativismo, a proliferação de pontos de mídia e de uma miríade de
contradiscursos, o enxameamento da mídia-multidão começamos a
experimentar uma outra deriva, mas insuficiente se não se auto-organizar
e se constituir como uma outra cultura de redes, capaz de reagir e
neutralizar os microfascismos cotidianos.
IHU On-Line – A reeleição apertada de Dilma demonstra um país dividido?
Ivana Bentes - O embate agônico entre “torcidas”
partidárias resultou ao final dessas eleições em um recorrente discurso
da partição, do muro, do dualismo, do binarismo, de um país
conflagrado. Esse discurso do Brasil “partido” pós-eleições não explica
essa eleição de 2014. Vimos pessoas que migraram do ativismo e das
mobilizações de Junho de 2013 ao voto em Aécio Neves (inclusive intelectuais de renome que apoiaram Marina Silva no primeiro turno e seguiram a candidata apoiando Aécio),
mas particularmente os que estavam nas ruas por uma indignação difusa
contra o sistema representativo e os partidos e que conectaram o
sentimental de “mudança” com o marketing da mudança do candidato do PSDB. Uma associação que Marina Silva capitalizou no primeiro turno, com a mesma ambivalência.
Vimos uma população que criticou as ruas por produzirem crise votar em
Dilma, por medo e receio de que as manifestações de
Junho
fossem um complô da direita para desestabilizar o governo. Uma leitura
equivocada da radicalidade e insurgência dos desejos. Vimos a oposição
(em geral fratricida) formar um campo de esquerda solidário sustentando
as encostas para evitar a enxurrada conservadora que desce destruindo o
construído. Destacamos aqui o apoio de lideranças do
PSOL, como
Marcelo Freixo, eleito com uma votação histórica de 350.408 votos e
Jean Wyllys, que reivindicou um compromisso da
candidata Dilma com as questões
LGBT e com as minorias e populações indígenas.
Vimos uma real politização da disputada
Classe C (a classe dos “batalhadores” sem partido, ou desorganizados) se posicionando claramente em defesa das suas conquistas, refletidas no dia a dia. Vimos essa mesma
classe C identificada com os valores conservadores do racismo, preconceito, moralismo.
Vimos a expressão assustadora de uma
classe média raivosa e anacrônica, repetidora dos clichês mais primários
construídos pela Mídia-Estado. Um “ódio ao PT”
identificado como ódio aos pobres, nordestinos, etc. Vimos a defesa da
elite dos seus privilégios e uma esquerda perguntando “onde erramos”?
Vimos os que se abstiveram, anularam e se retiraram taticamente do jogo,
por exaustão, recusa, repúdio das regras do jogo.
Não podemos falar de um Brasil partido
em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que
expressam grupos e segmentos múltiplos. O trabalho, depois de um
intenso embate, é potencializar e politizar, organizar e construir
movimentos, coletivos, organizações, bases menos maniqueístas e
dualistas. Redistribuir riquezas e não aprofundar o fosso.
A partição binária não serve a ninguém. É
mais um "meme" e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O
mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o "muro" que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB.
A narrativa do embate entre “ricos e pobres” não desapareceu, e nem os
conflitos de classe, mas essa dualidade não dá conta em termos
simbólicos das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos
muitos.
Discursos Sobre a retórica presente nos discursos de
Aécio Neves,
destacamos além da captura (mesmo que marqueteira e superficial) do
legítimo desejo de mudança e uma equiparação entre “mudança” e
“alternância de poder”, e ainda mudança e futuro. Mas o batido chavão do
candidato que olha para o “futuro” e se apresenta como seu fiador não
convenceu uma parte do eleitorado que votou com base na sua percepção do
presente e sem fantasiar ou imaginar futuros alternativos radicais em
relação aos programas e experiências bem-sucedidas.
Qual o lastro de "mudança" e "futuro" nas propostas e projetos apresentados por
Dilma? Esses 12 anos fizeram história e tem um presente urgente e um horizonte, um projeto em disputa. O futuro, na
campanha de Dilma, surge como um presente estendido e turbinado, melhorado. Enquanto os eleitores de
Aécio Neves votaram em programas que desaprovam e combatem ativamente
(Bolsa Família, Prouni, cotas), a partir de argumentos insustentáveis (bolsa-esmola, meritocracia, etc.) e que
Aécio Neves
afirmava que iria "continuar" para agradar aos demais eleitores, sem
nenhuma outra proposta alternativa aos programas. Com o agravante de o
PSDB ter tentado desqualificar todos os projetos sociais do governo. Estranha equação!
IHU
On-Line – Que avaliação faz dos movimentos sociais nessas eleições,
inclusive daqueles que criticaram o governo e acabaram por apoiar a
reeleição de Dilma? Ivana Bentes - O
que vejo de mais positivo nesta eleição foi o retorno dos movimentos
sociais e culturais na disputa do projeto do governo, com uma multidão
que, mesmo insatisfeita, foi para as ruas. A pressão para uma guinada à
esquerda e a retomada de políticas interrompidas resultou na entrada de
Juca Ferreira na coordenação do
Programa de Cultura de
Dilma.
Em torno dele formou-se uma rede que colocou a presidente em diálogo
(em atos, comícios, cartas, declarações e posicionamentos) com a pauta
trazida por jovens das periferias, do hip hop, do funk, do passinho, com
projetos sociais e culturais vindos das favelas; que recolocou na cena o
debate em torno dos Pontos de Cultura, da banda larga, da cultura
digital, da criminalização da homofobia, da Reforma Política.
O reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das
Jornadas de Junho de 2013,
a crise da representação, a democratização da mídia, a centralidade da
cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política, me
parecem que efetivamente impactaram de forma decisiva para o engajamento
e a ida de militantes, ativistas, participantes de uma frente de
esquerda
(PT, PSOL, PCdoB, etc.) que chegaram não apenas com um “voto crítico”, mas com apoio e capital simbólico e de credibilidade (
MTST,
MST,
Reitores de Universidades públicas, professores, cineastas, Pontos de
Culturas, médicos, cotistas, etc. que se expressaram em centenas de
manifestos).
De forma pragmática e simbólica, a presença do ex-presidente
Lula nessas eleições, subindo em palanques e atos, recolocou o lulismo na linha de frente dessa guinada à esquerda da campanha de
Dilma.
Lula,
mais do que ninguém sabe que só nos resta a virada de imaginário e
reconhecer que sem uma reaproximação com as ruas, sem as bases e o
diálogo com os movimentos sociais e culturais, não tem
PT e não tem mística que segure os retrocessos com um Congresso tão conservador que reelegeu
Bolsonaro e
Feliciano e uma eleição que deu ao
PMDB o governo de sete estados, contra cinco do
PT e cinco do
PMDB.
Lula apontou nas suas falas o que vimos a presidente reeleita expressar no seu discurso: “
Dilma
precisa sair do isolamento nos próximos quatro anos e se reaproximar
dos políticos, dos empresários e dos movimentos sociais". Cabe ainda
destacar a carta divulgada pela presidenta
Dilma aos indígenas na sua campanha: "
Carta aos Povos Indígenas do Brasil", em resposta à
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB,
se comprometendo com pautas e questões trazidas por lideranças
indígenas. Trata-se de um dos pontos mais críticos do seu governo e que
envolvem embates com as forças mais retrógradas deste país: "Hoje, todos
sabemos, existem desafios na esfera jurídica para podermos avançar na
demarcação das terras indígenas no país, principalmente nas regiões
Centro-Oeste, Sul e Nordeste. Temos que enfrentar e superar estes
desafios, respeitando a nossa Constituição".
Os canais ficaram
obstruídos nos últimos anos, os estragos e erros foram grandes em alguns
campos, como o da questão indígena e o debate ambiental. É um enorme
desafio dos movimentos e do governo, que depende de articulação e
pressão.
A questão da Cultura é decisiva porque no
“semiocapitalismo”,
o capitalismo cognitivo, capitalismo que tem como valor a informação, a
comunicação, os afetos, o modo da produção cultural (a precariedade, a
informalidade, a autonomia) são as próprias formas do trabalho
contemporâneo, as formas gerais do trabalho. Nesse sentido, a cultura
hoje é um processo transversal que impacta nas formas de produção de
valor em todos os demais campos.
Podemos, partindo da cultura e do MinC, por exemplo, repensar questões decisivas como a valorização, apoio, sustentabilidade dos Pontos de Cultura, Pontos de Cultura Indígenas,
ações de formação dos movimentos urbanos, novas redes de produção
audiovisual, de mídia, dos povos tradicionais, cultura digital, etc. É
um erro o governo não olhar para esse campo como estratégico, como lugar
de desenvolvimento, produção de valor e radicalização da democracia.
Cultura não é mais um “setor”, é um processo transversal e decisivo.
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“A ação do escracho na porta da
Abril, legítima, foi no limite do ‘timing’ e poderia ter selado uma
reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não
aconteceu”
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IHU On-Line - Recentemente a
senhora postou um texto que iniciava com a seguinte declaração: “Eu voto
porque somos ingovernáveis”. O que subentende nessa afirmação?
Ivana Bentes - Não vejo
contradição nem oposição aos processos que levam das ruas às urnas e
vice-versa, são complementares. Por isso temos que votar e lutar. Somos
ingovernáveis, no sentido de que o processo representativo, as eleições,
não podem ser o objetivo e nem o ápice do processo participativo. As
redes são velozes e instituíram uma outra temporalidade e polifonia na
política. Precisamos saber navegar e tomar decisões com base na
ruidocracia. Os muitos tornaram-se visíveis e querem participar da vida
política.
Essa participação pode ser pelas urnas, mas pode ser
pelas ruas e redes também, de forma autonomista, por que não? Caminhamos
nas redes e movimentos para a organização autogestionada, a organização
de ação direta. Nesse sentido, a experiência de intensa participação
nas redes sociais massifica, dissemina, difunde, prepara para a
democracia direta, plebiscitária, em tempo real, que amplia o poder de
decisão e intervenção dos muitos. Trata-se de uma mudança intensiva, de
intensidade na participação, que a meu ver não tem volta.
O pânico da participação, de um
Congresso e
Parlamento
em grande parte anacrônico e conservador, é sintoma da crise dos
intermediários que assolou diferentes campos. Crise da intermediação,
quando milhares de pessoas passam a exercitar a governança nas redes, da
mesma forma que buscam processos desintermediados na produção cultural
(crise das gravadoras, editoras, disputa nas redes com as mídias
corporativas fordistas) e ascensão de uma cultura de redes que tem como
horizonte a autonomia e a liberdade (“faça você mesmo”), a conectividade
e o coletivo como valor.
Fica claro nessas eleições a crise da
passagem entre modelos distintos. A cultura política baseada na
democracia representativa (que não se esgotou totalmente, mas emerge na
sua insuficiência) e a cultura de redes. O sintoma do anacronismo na
política passa pela tentativa de criar estados de exceção, como o
insistente golpismo da direita, pedindo "impeachment" de
Dilma,
antes mesmo de a eleição acabar e um estado permanente de crise,
“amanhã será pior!” A antecipação continuada de crises produz medo e
incertezas, constrange e despotencializa.
Temos exemplos
concretos de práticas midiáticas de antecipação e produção de crise e
instabilidade como controle. Lembro dos seres sensitivos que antecipam
crimes no filme
Minority Report. No
Brasil foram desbancados pelos seres que antecipam golpes. Antes mesmo da reeleição da presidente
Dilma,
Merval Pereira, na sua coluna de
O Globo de 24/10/2014, já pedia o seu
"impeachment" por possíveis crimes futuros!
Merval
trabalha e cava para achar as "condições para incluir a atual e o
ex-presidente em um processo criminal". E ameaça, "nesse caso, o
impeachment da presidente será inevitável". Como disse sobre a
Veja e serve para
O Globo,
a moeda da mídia é a ameaça, a chantagem, a produção de instabilidade e
a produção de crise. Jornalismo é apenas o nome do genérico que embala o
real negócio.
Mas as bordas conectadas balançam as redes e
desestabilizam os velhos centros de poder. Os pré-cogs, os sensitivos da
democracia, também visualizam futuros alternativos e algumas tags
inspiradoras que neutralizam os videntes golpistas:
Lei de meios,
Lei Geral de Comunicações,
Direito de Resposta,
Regulação da Mídia,
Pontos de Mídia Livre,
Cultura de Redes e a
Democratização das verbas publicitárias
do próprio governo, dinheiro público investido nas grandes corporações
de mídia e que poderia fortalecer a nova ecologia midiática das redes.
Estamos falando de um
Estado-Rede,
aberto aos movimentos e às críticas; é hora de se pensar em grandes
frentes parlamentares de defesa de pautas e projetos, independente de
partidos ou de eleição, o que importa é organizar e fortalecer os
movimentos e conseguir vitórias públicas para os muitos. Os que foram às
ruas para eleger a presidenta
Dilma podem voltar às ruas para exigir essa virada de imaginário e participação.
Vimos nesse processo eleitoral a explosão dos discursos de ódio e entre eles o racismo, que, como mostra
Foucault,
é a condição sob a qual podemos exercer o direito de matar, de
humilhar, de assujeitar, expondo ao risco determinados tipos de sujeitos
e comportamentos, impondo a morte política, a expulsão dos territórios,
a rejeição. Estamos vendo o crescimento desses discursos de ódio, com
pedidos até de “intervenção militar” dos que perderam as eleições, numa
tentativa de enfraquecer a democracia. O que é paradoxal e inédito
pós-ditadura militar. Esses discursos de ódio, de racismo, não são,
portanto, uma regressão e nem a sobrevivência de um passado arcaico, mas
o produto de uma Mídia-Estado e de processos contemporâneos de biopoder
e de gestão da vida.
IHU On-Line - Como avalia o discurso de uma nova política nas campanhas políticas? Ivana Bentes - O debate e o discurso em torno de uma “nova cultura política” me parece decisivo, e
Marina Silva
soube capitalizar esse sentimento no primeiro turno, mas não o
sustentou nem na teoria e nem na prática. Por isso sua explosão nas
urnas nos remete a um tipo especial de "viral" que é o termômetro das
comoções e afetos. Digo viral e mesmo um "meme" eleitoral pensando que
as eleições têm um componente simbólico e de "narrativa" que ultrapassa
em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral.
Marina
tinha a melhor narrativa, da seringueira da floresta alfabetizada aos
17 anos que por um golpe do destino teve a candidatura à presidência
jogada no seu colo. Mas não sustentou a candidatura e nem o debate para
além da comoção memética, pois revelou ter os piores defeitos e
incoerências de
Dilma Rousseff em relação aos temas
comportamentais como o aborto, as drogas, o casamento gay. Como poderia
ser uma alternativa aos sem voto ou aos que foram para as ruas em
junho de 2013 com esse perfil conservador no campo do comportamento?
A questão ambientalista que
Marina
trouxe também é decisiva e desejável para uma mudança de mentalidade
política. Mas o seu projeto ambientalista não se definiu nem como
antidesenvolvimentista. Suas pautas acabaram soando como simples
remediação dentro de um "capitalismo verde", sem força e/ou desejo de
nomear e fazer o embate com o agronegócio, por exemplo.
Obviamente que o
governo Dilma
foi pífio em relação às questões ambientais e indígenas. Mas a questão
se estende aos demais partidos e projetos: Que tipo de governabilidade
um partido como o
PSB e mesmo o
PSDB teria que negociar, já que a eleição presidencial não muda a configuração over conservadora do
Congresso?
Marina
acabou se revelando a expressão de uma elite empresarial e de certo
"capitalismo verde", da "responsabilidade social", o equivalente aos
ecobags, o consumidor verde que acha que já faz muito por não usar saco
plástico descartável no supermercado ou por comprar a cenoura orgânica
do
Marcos Palmeira (também acho ótimo, mas insuficiente e paliativo), sem encarar a questão dos transgênicos, por exemplo, e do agronegócio.
Potências e limites do atual governo Dilma O desenvolvimentismo fordista de
Dilma e a sustentabilidade
“flex” da economia verde dos aliados de
Marina
são igualmente insuficientes e insustentáveis. Um é a remediação e
complemento paliativo do outro. A palavra "sustentabilidade" aponta para
mudanças de modelo mais radicais e profundas que não apareceram em
nenhum dos programas.
Ao mesmo tempo, a presidenta
Dilma,
mesmo atuando dentro da “velha política”, tem um legado e capital
simbólico de mudança e ruptura agindo, um projeto inacabado e em curso. O
que
Lula/Dilma fizeram (contra toda uma elite
midiática e conservadora, contra uma parte da classe média
preconceituosa e voltada para seu umbigo) com o
Bolsa Família,
a expansão das universidades públicas, as cotas, teria de ser feito
para neutralizar os ruralistas, para mudar o sistema de segurança e de
mídia. Ou seja, intervir e mudar as velhas forças conservadoras, o que
vem ao encontro do desejo de governança e participação.
O
PT
e o governo não souberam polinizar e espraiar o que de radicalmente
novo trouxeram com essa participação e rede de movimentos em torno do
projeto popular. Temos que entender que “nova política” não é uma
palavra mágica, é lutar contra as forças mais pernósticas deste país:
ruralistas, mídia corporativa e agentes da (in)segurança pública. O
Estado brasileiro não vai desbaratar essas forças sozinho e nem "de
dentro". Ou bem essas forças arcaicas de especulação contra a vida se
tornam intoleráveis socialmente, ou não tem governo, partido ou
candidato que as vença. Mas sem dúvida temos mais chances de fazer essa
mudança a partir do campo da esquerda do que reafirmando os valores
retrógrados de uma elite conservadora.
A
“nova política” passa por essa indignação que marcou as
Jornadas de Junho de 2013,
passa pela crise da democracia representativa, mas não prescinde dela,
passa pela demanda de participação e cogestão do Estado, mas também o
fortalecimento de processos autonomistas, de autonomia e liberdade, de
fabulação de mundos e de virada de imaginário.
O que entendo como
“nova política” no Brasil não é só olhar para frente, mas instaurar processos de reparação, o que inclui também o que o governo
Lula/Dilma teve coragem de fazer: aumentar o
salário mínimo no Brasil (que a direita dizia que ia quebrar o país), fazer a
PEC das empregadas domésticas,
afrontando a Casa Grande na sua mentalidade escravocrata, dando
existência política aos remanescentes dos quilombos, com o
reconhecimento das terras quilombolas, aprovando a
Lei Cultura Viva para os
Pontos de Cultura e o
Marco Civil para a Internet,
entre tantas viradas políticas decisivas. Mas claro que isso não basta e
é preciso construir futuros alternativos aos que temos hoje, diante da
crise ambiental, indígena, crise de paradigmas e modelos.
A polêmica da participação social A polêmica
(induzida pela Mídia e pelos derrotados nas eleições presidenciais) criada em torno do decreto da
Participação Social
proposto pelo governo indica como os conservadores criam memes e
clichês de neutralização dos avanços, colocando as mudanças necessárias
dentro da configuração fantasiosa de um “bolivarianismo tropical” ou
“golpe comunista”.
Tornar lei "participação" é o embrião para um
Estado-rede aberto à cogestão da sociedade. Não podemos esquecer que no
auge das manifestações e da crise de 2013, a presidente
Dilma acenou com uma Constituinte para fazer a
Reforma Política, e a mídia corporativa veio em peso acusar o governo de
“venezuelização”,
golpe, mudança das regras do jogo, e o governo recuou. Agora que
reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a
Reforma Política,
mas um real diálogo com os movimentos sociais. Os parlamentares que
votaram contra o Decreto da participação são anacrônicos, entendem
participação como
“reserva de mercado” para os poucos representantes no Congresso.
É preciso ampliar a participação, mas
enquanto a direita diz que estamos entrando na era do "bolivarianismo
tropical" com Dilma reeleita, certa esquerda coloca todo e qualquer
retrocesso na conta do governo, de forma igualmente redutora. A direita
acreditando que representação é um "cheque em branco"
que você assina nas eleições e lava as mãos. Certa esquerda fazendo o
discurso da sacralização das ruas, como se, sozinhas, as ruas e
movimentos pudessem derrotar as forças obscurantistas mais arraigadas
que especulam contra a vida. A real é que não se trata de escolher entre
as ruas ou as urnas, mas ruas e urnas e mais centenas de ações,
práticas e movimentos autonomistas e autogestionados contra o
retrocesso. São muitas as formas de participação. O Plano Nacional de Participação Social apenas consolida o que já estava previsto em parte na própria Constituição, como os conselhos populares.
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“Agora que reelegemos Dilma, os
movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real
diálogo com os movimentos sociais”
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É preciso fazer o embate com uma direita
anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda
que acha que ainda estamos muito à direita e que está "tudo dominado". É
preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e
qualificar a palavra mágica “mudança” que atravessou todos os partidos e
candidatos com sentidos distintos.
O imaginário em torno da palavra mudança
Temos que nos apropriar e ressignificar o imaginário e desejo em torno das mudanças que tanto Marina Silva e depois Aécio Neves
tentaram capturar, criando uma “nuvem” fluida e frouxa em torno dessa
tag ou conectando mudança com um projeto político que é a vanguarda do
atraso.
O que precisamos reafirmar é que as brechas e contradições existem dentro do próprio governo Dilma e devemos explorá-las. Não vejo como Dilma pode "continuar" sem mudar. Pois também ela se valeu do discurso da mudança.
O PT ainda é a mais
completa tradução da bipolaridade esquizofrênica na política brasileira e
que por isso mesmo está aberto às pressões, de todos os lados.
Quando
Vladimir Safatle definiu
Marina como uma
"Margareth Thatcher da Floresta", achei exagero, mas é esse personagem político que
Marina assumiu. A nova política de
Marina acabou com seu apoio a
Aécio Neves,
ao meu ver, dilapidou parte do seu capital simbólico rápido demais. Mas
as questões trazidas por sua candidatura não podem ser abandonadas, são
reais e importantes.
Ao apoiar
Aécio Neves, candidato derrotado nessas eleições,
Marina cruzou uma fronteira delicada. Desagradou e de certa forma “traiu” parte dos que
foram para as ruas em 2013 pedindo mudanças.
Aécio Neves
tentou capitalizar o sentimento e desejo de mudanças da forma mais
conservadora, com um sentimento raivoso antipetista, pouco generoso,
binário e redutor em relação ao passado. Nesse sentido, o
“Muda Mais” de Dilma também ainda é apenas uma carta de intenções, mas se explicitou no discurso de vitória e logo depois, ao propor a
Reforma Política, a
criminalização da homofobia e a
regulação da Mídia.
PT e PSDB PT e
PSDB
têm projetos distintos, mas são dois projetos que incorrem em um erro
comum e de boa parte da direita e da esquerda atual, a crença em um
progresso infinito, aceleracionista e de esgotamento dos recursos
naturais em nome do
“desenvolvimento”, produzindo
crises estruturantes: consumismo, crise ambiental, destruição de
culturas e modos de existência que resistem a esses processos de
assujeitamento da vida.
Ou seja, o desenvolvimentismo selvagem não é um problema da
Dilma, é o
"estado da arte"
de parte da sociedade brasileira e global: consumismo desenfreado,
especulação contra a vida, margem de lucros exorbitantes que passa por
cima de culturas e direitos. Só uma forte pressão dos movimentos sociais
quebra esse modelo. Só uma mudança de mentalidade vai expurgar essas
forças de morte e desmandos arcaicos do país.
As questões continuam e não têm respostas fáceis. Temos que lutar para que o atual sistema partidário, inclusive o
governo Dilma,
incorpore as pautas e questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos
que sair do infantilismo político e purista que é o compromisso atávico
com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão brotar da
remediação e ruptura com o atual sistema partidário.
Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo
"o PT fora do poder",
mas também os que defendem a todo custo o governo. Os governistas são
um atraso para discutirmos, criticarmos e pressionarmos governos
"de dentro" deles. Criticar e exigir mudanças não como inimigos, mas como aliados.
Votei em
Dilma Rousseff
porque acredito na possibilidade de tensionar seu governo por fora e
por dentro. Quem precisa de políticas públicas não pôde se dar o luxo de
arriscar mais retrocessos. Quem precisa de políticas públicas nos
transportes, na saúde, banda larga, políticas para a juventude e para as
minorias, votou na continuidade de um projeto que em 12 anos teve
resultados concretos, como tirar o
Brasil do mapa da fome — é muito e é muito pouco!
A
“classe C”
quer mais direitos e mais políticas públicas que potencializam a vida,
potencializem a sua cultura e jeito de estar no mundo, não apenas ser
consumidora, por isso a classe dos
“batalhadores” (linda expressão que foi decisiva nessa eleição). A
Marina falou para uma classe média e para uma elite liberal com pautas que
Dilma subestimou.
Aécio Neves despertou os microfascismos de toda sorte, numa reorganização do campo conservador no
Brasil:
ódio aos nordestinos, ódio e desqualificação da política, ódio aos
petistas, ódio ao processo eleitoral. O legítimo desejo de mudança deve
ser capturado para aprofundar os processos democráticos, e não
interrompê-los, neutralizá-los.
Votei em
Dilma Rousseff
porque acredito que as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a
financeirização da vida, seja de onde for, e vejo que partindo da
cultura pode-se reinventar o
Brasil, transformando
precariedade em potência. Não é fácil, dentro de um ambiente político
hostil e cenário econômico difícil, mas o que nos move são as dinâmicas
dessa própria luta que ressignificam o presente urgente e inventam
futuros alternativos.