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quinta-feira, 29 de maio de 2014

O rumor público é feito de quê? II

O verdadeiro discurso do medo

No Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos.


Wanderley Guilherme dos Santos
Fonte: Boletim Carta Maior 
Arquivo

Também seguimos inseguros, os empenhados existencialmente nesse fluxo histórico de espetacular transformação da comunidade brasileira. Também seguem meio desorientados os que apostaram na capacidade de um punhado de políticos de boa cepa ensinar ao país que é possível perseguir uma sociedade justa, não obstante os entulhos de um passado oligarca e suas reencarnações tatibitati. Mas incomoda vê-los hesitar diante das vociferações dos antidemocratas de todas as cores. A imagem de meia dúzia de desatinados, entre os quais índios sem teto ou sem oca, expostos a selfies na marquise do Congresso não prenuncia nada engraçado. Muito menos folclóricos ainda são os gigantescos engarrafamentos castigando a população que retorna do trabalho, à conta da intimidação promovida por uns poucos buldogues ameaçadores, fora da linha sindical. São movimentos de carregação aproveitados, bandeiras à vista, por legendas partidárias sem expressão e sem voto, desafio da força bruta ocasional à tolerância democrática.

A democracia é, por certo, um sistema político que garante voz a quem deseja acabar com ela, mas não é um arranjo institucional de espinhela caída a permitir ações que constrangem a maioria da população. O conhecido e histórico oportunismo de certos grupos sociais – trabalhadores em transportes, especialmente de massas, e empregados em saúde pública – e de rótulos partidários sem energia própria podem, parasitando a inércia das instituições legítimas e com divulgação garantida, persuadir a maioria não organizada dos cidadãos que são eles os minoritários. Imprensados entre a balbúrdia com proteção jornalística e o silêncio governamental, ficam os trabalhadores em dúvida sobre se a melhoria em suas condições de vida não constitui imerecida exceção num país aparentemente em ruínas.

Quem conhece o todo e não compartilha informação com os beneficiados comete grave erro de propaganda política. Faz parte da obrigação governamental não apenas fazer, mas fazer saber. Em 27 de maio último, por exemplo, o Senado aprovou proposta tornando legal a expropriação de empresas que explorem trabalho escravo. Não há em nenhum lugar do mundo legislação semelhante. Tal como o programa bolsa-família, essa legislação será em breve copiada por outros países, pois o trabalho escravo não é monopólio de países pobres. Contudo, notícia de tal importância foi relegada a páginas remotas dos diários ou nem mesmo registrada. Do mesmo modo, o imenso planejamento das benfeitorias que serão deixadas pela Copa de futebol, muitas das quais já operando, foi até aqui esmagado por uma das mais estúpidas campanhas jamais patrocinada pelo conservadorismo oposicionista e uisquerdóides de todos os tempos. Pois vai ter Copa, sim, assegurada pela maioria real do país e apesar do paralisante acidente vascular do governo.

Minorias têm direitos, mas não podem ter o poder de subjugar a maioria. Tratá-la como maioria é traição institucional e política. A população trabalhadora tem direito a exigir transportes suficientes e em boas condições, mas previamente tem o direito constitucional de ir e vir. Conta-se que, na China pré-conquista do poder, o Partido Comunista organizava greve de bondes fazendo os transportes rodarem gratuitamente. Não li que jamais os incendiasse e obrigasse os trabalhadores seguirem a pé para suas casas. Já no Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos. Não conheço tratado de política em que tais movimentos prenunciem avanços democráticos. Conheço histórias em que os desfechos foram tiranias longevas.

Há razão para a ansiedade de parte da população e para o desejo de mudança. Já não é tão claro, apesar de destemidos intérpretes e fora os itens costumeiros de melhor transporte, saúde, educação e segurança, o que deseja a significativa maioria da população. Pelo que costuma responder sobre a difusão da violência, o anarquismo sem rumo dos blaquiblocs e aparentados, esplendidamente repelidos, o que a maioria deseja é mudar a sociedade. É importante que as autoridades meditem sobre isso, não se entreguem às interpretações velhacas e tragam segurança jurídica e existencial à maioria. São pagas para isso.

sábado, 19 de abril de 2014

Cinemão!

18/04/2014 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

A ditadura civil-militar em 10 filmes

Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.


DivulgaçãoEsta lista não se pretende definitiva, muito menos apontar quais os dez melhores filmes sobre a ditadura civil-militar.

Trata-se de um panorama que busca abarcar grande parte da produção cinematográfica brasileira a respeito do tema. Há filmes de todas as décadas desde o golpe. Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.

Imaginamos que os filmes dessa lista deem conta da maioria dos processos que envolveram a ditadura. Mas mais importante, esperamos que deixem evidente a capacidade do cinema em se colocar como documento de uma época das mais diversas maneiras.

O Desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965)

Impressiona que um filme feito no "calor da hora" tenha um grupo de personagens que dê conta das mais diversas posturas em relação ao golpe. Há o empresário que quer a manutenção da ordem, sua mulher alienada que continua vivendo como se nada tivesse acontecido, e o amante desta, o jornalista idealista em completa crise existencial.
 
Saraceni vê o golpe dentro de um processo histórico e não como evento isolado, fora de contexto, tendo assim sucesso na construção de tal panorama.

Terra em Transe (Gláuber Rocha, 1967)



Em 1964, um mês antes do golpe, Deus e o Diabo na Terra do Sol já estava finalizado e pronto pra chegar aos cinemas. Enquanto tratava das condições de exibição e distribuição do filme, Gláuber assistia a tomada de poder pelos militares. Três anos depois, é em Terra em Transe que temos retratado sua visão deste processo.

Paulo Martins é o protagonista que carrega em si o conflito entre conservadorismo e engajamento, quer ser poeta e tratar de temas políticos ao mesmo tempo.

Há uma certa análise superficial do filme, que acusa Gláuber de criticar todos os lados. No entanto, trata-se de um raro olhar dialético das contradições da época, concentradas em um personagem. Sem dúvida, um olhar bastante cético em relação às perspectivas futuras. Um ano depois, era decretado o AI-5.

A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla, 1969)



Pode parecer estranho para alguns a presença deste filme numa lista como essa, mas é essencial retomar a postura de um dos mais importantes cineastas brasileiros em relação ao momento histórico de que tratamos aqui. E neste caso, é do total deboche e sarcasmo.
As desventuras de Angela Carne e Osso pela Ilha dos Prazeres retratam a mediocridade e alienação da classe média paulistana. E Sganzerla utiliza de todos os artifícios e referências da Boca do Lixo, das chanchadas e dos quadrinhos para isso.

E como grande momento, o discurso final do empresário traído interpretado por Jô Soares, prenhe de simbolismo em relação ao contexto histórico, quando diz: “Eu não calculo nunca, mas quando faço uma besteira, eu vou até o fim”.

Manhã Cinzenta (Olney São Paulo, 1969)



Censurado em 1969 por ser considerado “altamente subversivo”, o filme foi confiscado e nunca chegou a ser exibido comercialmente. Uma de suas cópias foi salva e ficou escondida na Cinemateca do MAM por 25 anos.

Olney São Paulo é o único cineasta brasileiro a ser preso e torturado pela produção de um filme.

Manhã Cinzenta retrata a prisão e tortura de estudantes que participavam de uma manifestação. Eles são interrogados por um robô e um cérebro eletrônico, situação absurda que Olney usa como metáfora, tanto para mostrar os extremos do regime quanto para tratar com escárnio a alienação de parte da sociedade na época.

Você Também Pode Dar um Presunto Legal (Sérgio Muniz, 1973)



Feito em 1971 e finalizado dois anos depois, o filme de Sérgio Muniz só foi exibido no Brasil em 2006. Esse hiato de 33 anos ocorreu pois, na época, amigos do diretor recomendaram que ele não passasse o filme no país, temendo por sua segurança.

O documentário foca nas ações do delegado Sérgio Fleury e do Esquadrão da Morte durante a ditadura, alternando matérias de jornal e imagens da época com depoimentos de torturados e fragmentos das peças "A Resistível Ascenção de Arturo Ui" (Bertold Brecht) e "O Interrogatório" (Peter Weiss).

E Agora, José? – Tortura do Sexo (Ody Fraga, 1979)



O filme Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) é muitas vezes considerado pioneiro em retratar as torturas que ocorriam nos porões dos órgãos policiais da ditadura. No entanto, tal “honraria” pertence, na verdade, a este filme, produto da Boca do Lixo paulistana. Assim como o sucesso de bilheteria estrelado por Reginaldo Faria e Antonio Fagundes, E Agora, José? também trata de um sujeito apolítico que é preso por engano e torturado pelo regime.

Enquanto Pra Frente Brasil pretende-se denúncia histórica – e acaba sendo reprodutor da “teoria dos dois demônios”, a qual defende que direita e esquerda estavam erradas – o filme de Ody Fraga tenta se equilibrar entre o engajamento e o escárnio, embora acabe derrabando em vícios do gênero e da época, como o erotismo misógino.

De qualquer forma, uma obra normalmente esquecida e que vale a revisão pelo pioneirismo e possibilidades que origina.

Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984)  



Em fevereiro de 1964, Eduardo Coutinho foi até a Paraíba para contar a história da morte do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado dois anos antes. O diretor buscava mostrar como as Ligas Camponesas, que tinham como objetivo a mobilização do trabalhador rural pela reforma agrária, estavam sendo reprimidas pelos latifundiários.

No entanto, o filme foi interrompido pelo Golpe. Membros da equipe de filmagem foram presos, acusados de estarem ensinando táticas de guerrilha para os camponeses, e parte do rolo do filme confiscado. Coutinho volta ao Engenho da Galileia dezessete anos depois para encontrar Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e continuar o filme, que, iniciado como ficção, acabou se tornando o mais importante documentário do cinema brasileiro.

Cabra Marcado para Morrer talvez seja o único filme brasileiro que não possa ser excluído de uma lista como esta, pois é de fato um produto da repressão da ditadura. Não retrata um contexto, faz parte dele.

Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998)



Miguel (Zécarlos Machado) descobre o paradeiro do homem responsável pela sua tortura e de seus amigos. Ele engaja-se na busca desse acerto de contas e tenta convencer Elói, Paulo e Osvaldo a fazer o mesmo. A grande virtude do filme de Beto Brant está exatamente nessa batalha de argumentos a favor ou contra o enfrentamento com o carrasco, da onde emerge a necessidade da rememoração (um dos personagens diz que “já foi há tanto tempo, é melhor não mexer no passado”) e da busca pela justiça.

Paira sobre o filme, assim, a lógica de que, em um caso desses, quando não há ação do Estado, as consequências podem ser fatais.

Memória para Uso Diário (Beth Formaggini, 2007)



Produzido pelo grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, o documentário tem como cerne o exercício de memória em busca da reparação. Depoimentos explicam a história e as atividades do grupo. Familiares são levados às ruas que receberam o nome de seus parentes desaparecidos, onde explicam para os moradores quem foram aquelas pessoas. Uma senhora busca em arquivos do Estado uma prova de que seu marido desaparecido foi preso pelo regime. Um homem procura em um cemitério as ossadas de seu irmão.

No entanto, a grande virtude do filme é a relação que estabelece com a atualidade, bastante rara no cinema brasileiro contemporâneo. Vemos depoimentos de mães que tiveram seus filhos, negros e favelados, mortos sem razão aparente pela polícia militar. Relembrar, portanto, não serve apenas para resolver as questões passadas, mas também para expor a continuidade da truculência militar, agora com vítimas muito mais marginalizadas pela sociedade.

Hoje (Tata Amaral, 2013)



Acompanhamos a chegada da personagem Vera ao seu novo apartamento e todas as interações que uma mudança implica: conversa com a síndica do prédio, orientação sobre onde devem ir caixas e objetos etc.

De repente, surge Luiz, antigo companheiro de Vera nos tempos de guerrilha. Ele a questiona se o dinheiro daquele apartamento se deve a uma indenização, na qual o Estado reconhece que se trata de um cidadão desaparecido em razão de ações do regime.

O roteiro de Jean-Claude Bernardet, Felipe Sholl e Rubens Rewald (do ótimo Corpo, que também tem a memória e o direito à verdade como plano de fundo) faz dessa ambiguidade entre o real e a fantasioso instrumento para expor um trauma que precisa ser encarado a fim de ser resolvido.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Ethos discursivo, simulacro, interlocução: como se constroi uma imagem do outro

3/02/2014 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

Os 30 anos de ódio ao MST nas páginas de Veja

O que os ataques e silêncios da revista sobre o maior movimento social brasileiro revelam sobre a história recente da política brasileira


Najla Passos
reprodução


O ódio da mídia ao MST acompanha os 30 anos do movimento, desde a sua fundação, em janeiro de 1984. Mas o padrão de manipulação usado para tentar fraudar a imagem do movimento muda bastante, acompanhando a conjuntura e tentando tirar proveito dela. Prova é a forma com que a maior revista do país, a Veja, teceu a trajetória do MST em suas páginas: primeiro com a tentativa de cooptação, depois com total invisibilidade, até a campanha permanente de criminalização, que oscilou da associação com o perigo comunista, herdada da ditadura, à acusação de terrorismo, no período pós 11 de setembro. Nos últimos anos, uma nova condenação ao ostracismo, acompanhada pelo conjunto da mídia, garantiu a retirada do tema reforma agrária da pauta nacional.

O MST foi fundado no bojo do mesmo desejo de democracia que levou às ruas a Campanha das Diretas Já, como um movimento pacífico de luta pela terra. Mas o esforço dos companheiros que tentavam retomar a pauta da reforma agrária, interrompida com o deposição de João Goulart em 1964, não mereceu nem mesmo uma linha nas páginas da revista. Isso só viria a acontecer em junho do ano seguinte, quando José Sarney já havia herdado de Tancredo Neves o posto de primeiro presidente civil pós-ditadura, e acabava de lançar um pacote para viabilizar uma espécie de reforma agrária que jamais sairia do papel.

Assumindo para si um papel nunca a ela delegado de mediadora do “pacto social” que Sarney propunha ao Brasil polarizado, Veja defendeu o pacote na reportagem de capa “Reforma Agrária – os fazendeiros se armam”, de 19 de junho de 1985. O MST, que não apoiava a proposta, aparecia como um movimento localizado apenas em Santa Catarina, sem respaldo suficiente para se tornar um grande interlocutor do governo em relação ao tema.

O movimento voltou a ser capa da revista quando o país já se deparava com as falsas promessas de desenvolvimento do neoliberalismo, defendido com veemência pela revista. O alagoano Fernando Collor de Mello, lançado nas famosas páginas amarelas como o Caçador de Marajás,  havia ganhado a primeira eleição presidencial pós-ditadura, prometendo abertura às importações e diminuição das funções do Estado, em contraposição ao sindicalista Luiz Inácio da Silva, que defendia pautas mais sociais, como a bandeira da reforma agrária do MST.

No dia 15 de agosto de 1990, a Veja publicou sua primeira reportagem atacando frontalmente o MST. Na foto de capa, um único sem-terra, “armado” com sua foice, aterrorizava um exército de policiais armados com escudos, cassetetes e revólveres. Inaugurou ali a utilização do clássico termo “baderna”, com que até hoje descreve as ações do movimento.  Depois disso, a revista se calou acerca do MST, que continuou crescendo, a ponto de se transformar no maior movimento social brasileiro.



Ostracismo midiático
Em 1994, na corrida presidencial que contrapunha o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e novamente o operário Lula, o MST começou a ganhar espaço em outros órgãos de imprensa. A Folha de S. Paulo, em 1994, publicou 40 matérias sobre o MST. Em 1995, já com Fernando Henrique na presidência, foram 450. A Veja, porém, continuou firme no seu propósito de condenar o movimento ao ostracismo e, assim, manter longe da agenda nacional a pauta da reforma agrária. Duas grandes tragédias, porém, lançaram nova luz sobre o movimento: os massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás.

Em 9 de agosto de 1995, 355 sem-terra foram presos e torturados, 125 ficaram gravemente feridos e nove morreram, incluindo a pequena Vanessa, de 6 anos. Eles não eram ligados ao MST, mas a imprensa não fez esta distinção ao tratar do caso. O assunto ganhou repercussão internacional. Ainda assim, Veja resistiu o quando pode. Só foi noticiar o massacre quase um mês depois, na edição de 6 de setembro. A matéria “Executados, torturados e humilhados” apresentava o tom de indignação que tomava o mundo e não fazia alusões ao MST.

Em 17 de abril de 1996, 21 sem-terra ligados ao MST foram brutalmente executados e 51 ficaram feridos, no Massacre de Eldorado dos Carajás. O crime causou comoção mundial e a Veja não pode mais ignorar o movimento. Na edição de 24 de abril, a revista era pura indignação. A própria capa já era uma denúncia contra a atrocidade, com a exibição de um trabalhador rural assassinado com um tiro na nuca.

Na reportagem, Veja trouxe pela primeira vez a menção a um Brasil arcaico e um outro moderno, a partir de uma analogia usada dias antes pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Segundo a revista, “como um sociólogo debruçado sobre personagens de uma tese acadêmica, e não pessoas de carne e osso, com sonhos de um futuro melhor, filhos pra criar e uma vida para tocar, Fernando Henrique classificou os sem-terra e a PM de presentantes do ‘Brasil arcaico’, em oposição ao ‘moderno’, do qual se considera representante, talvez condutor”. Mas se a matéria principal tecia uma das raras críticas da publicação ao presidente e se mostrava solidária aos sem-terra, o box intitulado “O Sindicato-partido do MST” fazia o oposto, ao afirmar que o movimento era armado e tinha tradição de enfrentar a polícia.

Alvo prioritário
Após 1996, durante o império do pensamento único, a Veja transformou o MST em seu alvo prioritário. De acordo com a pesquisadora Carla Silva, no livro “Veja: o indispensável partido neoliberal”, as investidas contra o movimento superaram até mesmo os ataques ao PT e a igreja combativa. “Neste caso [do MST] não há uma tentativa de cooptação ou de diálogo, como se vê em relação ao PT, a quem a revista busca em vários momentos apontar linhas de ação. Também não há uma visão despolitizada como a Renovação Carismática colocada em oposição à CNBB. No caso do MST, a crítica é permanente”, registrou ela.

Na edição de 16 de abril de 1997, “A marcha dos radicais – quem são e o que querem os sem-terra” apresentava o movimento como o retrato mais perfeito do Brasil arcaico de que falava FHC em 1995 – e que até a própria Veja condenara. Os sem-terra eram apresentados como um povo inculto e atrasado, tal como os beatos seguidores de Antônio Conselheiro que desafiaram a República a se lançar na Guerra de Canudos. “Representantes de um Brasil Arcaicao, descalços, dentes ruins, bicho-de-pé e pouco estudo, os sem-terra invadem propriedades, desrespeitam a lei e enfrentam a polícia. Já morreram e mataram nesses conflitos. Parecem um pouco os fanáticos do beato Antônio Conselheiro”, pregava a revista.


Em outro momento, a reportagem acabava por revelar o porquê do seu ódio ao MST, considerado por ela a única oposição, de fato, ao governo FHC, após o que classificava de “desmoronamento da oposição sindical, da oposição de esquerda (PT e Lula) e também da de direita (o PPB de Maluf)”. E, em um terceiro momento, justificava porque precisava inverter a imagem do movimento perante a população: pesquisa do Ibope realizada no período mostrava que 83% dos brasileiros apoiavam a reforma agrária e 40% eram favoráveis, até mesmo à invasão de fazendas.

O MST e o “perigo vermelho”
As investidas da Veja contra o MST se tornaram mais agressivas nos anos seguintes. Na edição de 3 de junho de 1998, às vésperas da eleição que reconduziu FHC à presidência, a revista apresentava aos seus leitores um MST absolutamente aterrorizante. A foto de capa trazia João Pedro Stédile, umas das principais lideranças do movimento, com feições sérias, em tons vermelhos, a própria encarnação do demônio. O texto “A esquerda com raiva – inspirados por ideais zapatistas, leninistas, maoístas e cristãos, os líderes do MST pregam a implosão da democracia burguesa e sonham com um Brasil socialista” resgatava o pânico do perigo vermelho inculcado nos brasileiros pela ditadura.

Em 10 de maio de 2000, mais um exemplo: a matéria de capa “A tática da baderna – O MST usa o pretexto da reforma agrária para pregar a revolução socialista” voltava a semear o pânico. O texto da reportagem seguia a mesma linha: “Numa palavra, o MST não quer mais terra. O movimento quer toda a terra, quer tomar o poder no país por meio da revolução e, feito isso, implantar por aqui um socialismo tardio (...)”. Num box com a suíte “Meu nome é Stédile, João Stédile”, uma fotomontagem apresentava o líder sem-terra vestido de smoking e portando pistola automática, no melhor estilo James Bond, o espião da série 007 que tinha licença da rainha da Inglaterra para matar.

O MST terrorista

Depois dos atentados de 11 de setembro de 2011, com o mundo estarrecido frente ao perigo terrorista, a Veja se apropriou do pânico generalizado para, mais uma vez, inovar no tratamento destinado ao MST.  A etapa da tentativa de construção desse “MST terrorista” propagado pela revista começou com a publicação, em 18 de junho de 2003, quando Lula já havia assumido a presidência, da reportagem de capa em analogia direta à capa de 1998 que trazia Stédile travestido de diabo.

Nesta, o eleito para compor o quadro foi o então líder do movimento, José Rainha, estampado em foto de capa com a manchete “A esquerda delirante – Para salvar os miseráveis dos ‘desconfortos do capitalismo, o líder sem-terra José Rainha ameaça criar no interior de São Paulo um acampamento gigantesco como o de Canudos, instalado há um século por Antônio conselheiro no sertão da Bahia”,

Na reportagem, os mesmos estereótipos martelados na década anterior: anacronismo, atraso, radicalismo e táticas agressivas foram algumas das expressões reutilizadas. Também veio da década anterior a associação do líder sem-terra com o beato Antônio Conselheiro, tratado pela história oficial como o fanático que não aceitava os tempos modernos da república. Seguidores, pregação, beato, promessas e glorificação ideológica ajudavam a compor o texto que não poupou nem mesmo Euclides da Cunha, autor do clássico Os Sertões, que fala sobre Canudos, a ser citado na matéria para respaldar os absurdos propagados pela revista.

A partir daí, as matérias negativas contra o MST se tornaram pauta obrigatória em todas as edições da revista. Exemplo claro é o editorial “Veja avisou”, da edição de 2 de julho de 2003, que recuperava todas as críticas feitas pela revista ao movimento ao longo da década.  Em 30 de julho, a matéria “Stédile declara guerra” reforçava a associação do movimento à baderna e à violência, acusando-o de misturar os “excluídos do campo e da cidade, o complexo de culpa da classe média e a falta de firmeza das autoridades com as ilegalidades praticadas”. Foi nesta toada que a Veja concluiu o primeiro ano do mandado do ex-presidente Lula.

No início de 2004, a bancada ruralista, munida das páginas de Veja, começou a colher assinaturas para a instalação da CPI da Terra. A revista continuou firme na campanha, cada vez mais ácida. Na edição de 14 de abril daquele ano, a reportagem “O abril sem lei do MST” atestava a inoperância do governo Lula para conter as “ações criminosas” do movimento: a luta pela reforma agrária. Na semana seguinte, a matéria “Como na guerra” narrava a historia de um fazendeiro obrigado a fazer barricadas para se proteger dos “beligerantes” sem-terra.
As “madraçais” do MST
No final de setembro, o deputado João Batista usou a Tribuna da Câmara para exigir que o MEC fiscalizasse as escolas mantidas com dinheiro público nos assentamentos. Com base em matéria publicada pela Veja, ele acusava as escolas de formar futuros revolucionários, extirpando “o raciocínio lógico e o senso crítico” dos futuros cidadãos brasileiros. A base da denúncia que gerou calorosos debates foi a matéria “Madraçais do MST”, publicada na edição de 8 de setembro de 2004. “Assim como os internatos muçulmanos, as escolas dos Sem-Terra ensinam o ódio e instigam a revolução. Os infiéis, no caso, somos todos nós”, bradava a revista.

Em 2005, uma nova e ousada tentativa de criminalizar o MST. Na matéria “Ligações perigosas – escuta mostra que o MST orientou a facção criminosa PCC a organizar uma manifestação”, a revista acusava, sem nenhuma base palpável, o maior movimento social de brasileiro de ter relações sólidas com o movimento criminoso que, à época, assustava o país. As ligações jamais foram comprovadas, mas a revista nunca desmentiu as acusações.

No final do ano, a tal CPI da Terra apresentou seu relatório final propondo a transformação de invasão de terra em prática terrorista. Veja apelou de novo. Na reportagem “O terror contra o saber – braço feminino do MST destrói laboratório com mais de uma década de pesquisas”. A revista, claro, omitiu que o tal laboratório, da empresa Aracruz, realizava pesquisas com sementes transgênicas que causavam imensos prejuízos à agricultura familiar e agroecológica da região.

Nesta época, o desgaste sofrido pela imagem do MST já era claramente perceptível. Uma nova pesquisa do Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em 2006, mostrou o efeito de uma década de propaganda de Veja contra o MST: 56% dos brasileiros achavam que as ações do MST causavam mais resultados negativos para a reforma agrária do que positivos e 53% acreditavam que o governo deveria usar a polícia para conter as invasões.

Ataques e omissões recentes
Em 2009, a Veja conseguiu, enfim, respaldar a instalação de mais uma CPI para investigar o MST, a partir da reportagem de capa “Por dentro do cofre do MST”, na qual a revista acusava o governo federal e entidades internacionais de financiar as atividades classificadas como criminosas do movimento. Era a terceira, criada em cinco anos, para investigar e desgastar o MST. Para o governo Lula, ficava cada vez mais temerário apoiar o movimento já associado ao terrorismo, mesmo que, contra eles, não se provasse nada. A causa da reforma agrária foi sendo cada vez mais minada e abandonada.


Desde então, a presença do MST nas páginas da revista foi declinando. A luta dos sem-terra pela reforma agrária nunca mais mereceu reportagem de capa, ainda que para criticá-la. A presidenta Dilma Rousseff assumiu a presidência e governou os três primeiros anos do seu mandato com o MST e a reforma agrária na mais absoluta invisibilidade. Portanto, foi mais fácil para ela registrar os piores índices de investimentos na causa: conseguiu destinar um volume de terras à reforma agrária menor do que seu adversário, FHC, e assentou um número menor de famílias do que seu antecessor, Lula. E com a benevolência da revista.




Créditos da foto: reprodução

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Produção discursiva e direito: interpretações e jurisprudências

Consultor Jurídico 31/01/2012

Mudanças na jurisprudência

Promotores do MP-SP paulista terão "aula de mensalão"


Apesar de o acórdão sobre a condenação dos réus da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal ainda não ter sido publicado, as mudanças na jurisprudência criminal indicadas pelos votos dos ministros já são estudadas pelo Ministério Público. Reportagem de Cristine Prestes publicada nesta quinta-feira (31/1) pelo jornal Valor Econômico informa que a Escola Superior do MP em São Paulo dará uma aula a seus promotores e servidores sobre o julgamento do chamado "mensalão".

De acordo com a reportagem, a aula inaugural intitulada Os reflexos penais da Ação Penal 470 acontecerá no dia 21 de fevereiro. Segundo o diretor da escola, o procurador de Justiça Mário Luiz Sarrubbo, a grande inovação do julgamento ocorreu no trato com as provas contra os réus. "A maior quebra de paradigma é a interpretação e valoração das provas", afirma. Segundo ele, os tribunais do país tratavam as provas obtidas em investigações criminais de uma maneira muito mais garantista, o que não ocorreu no caso do mensalão. "A expectativa é a de que se utilize essa jurisprudência", diz. "O juiz vai ter um lastro maior, baseado na decisão da maior corte do país."

Ainda segundo o diretor da escola, a avaliação inicial será mais técnica, para que os promotores e a comunidade jurídica possam discutir até que ponto a nova jurisprudência do STF pode se assentar — ou se ela decorre de um julgamento político. Além de Sarrubbo, os palestrantes da aula inaugural serão os professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Renato de Mello Jorge Silveira e Eduardo Saad-Diniz.

Leia a reportagem:

Promotores do Ministério Público paulista terão "aula de mensalão"  
Por Cristine Prestes

As mudanças na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) promovidas durante o julgamento do processo do mensalão já começam a se disseminar nos órgãos de combate ao crime do colarinho branco. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), o maior da América Latina, é o primeiro que se tem notícia a trazer o tema abertamente à pauta de debates. A Escola Superior do MP-SP, destinada a treinar seus promotores e servidores, inicia seu ano letivo com uma "aula de mensalão".

Intitulada "Os reflexos penais da Ação Penal nº 470", a aula inaugural do MP-SP neste ano ocorrerá em 21 de fevereiro e terá como palestrantes os professores da Faculdade

de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Renato de Mello Jorge Silveira e Eduardo Saad-Diniz, além do diretor da Escola Superior do MP, o procurador de Justiça Mário Luiz Sarrubbo. "Estávamos torcendo para que o julgamento terminasse a tempo da aula inaugural", diz Sarrubbo. Segundo o procurador, a abordagem, neste encontro inicial, será mais técnica, para que os promotores e a comunidade jurídica possam discutir até que ponto a nova jurisprudência do STF pode se assentar - ou se ela decorre de um julgamento político. "Será uma primeira análise para um debate mais aprofundado sobre o tema e para ver como será possível aplicar as mudanças", diz.

Entre as inovações produzidas pelo STF durante o julgamento da Ação Penal nº 470 estão o uso da teoria da "cegueira deliberada", doutrina criada pela Suprema Corte americana que, no mensalão, levou a um debate sobre a possibilidade de condenação por lavagem de dinheiro em casos de dolo eventual - ou seja, quando há dúvidas sobre se o acusado sabia da origem ilícita dos valores recebidos; o fim da necessidade de indicação precisa do ato de ofício praticado ou omitido pelo agente público corrompido em troca de vantagem indevida oferecida pelo corruptor para caracterizar o crime de corrupção; e a teoria do domínio do fato, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin na década de 60 para permitir que se atribua responsabilidade penal a quem pertence a um grupo criminoso, mas não praticou diretamente o delito por ocupar posição hierárquica de comando - que, segundo o STF, é o caso do ex-chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, considerado o chefe da quadrilha que teria engendrado o esquema do mensalão.

De acordo com o procurador Alexandre Rocha de Moraes, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MP-SP, a maior novidade produzida pelo mensalão é o uso da teoria do domínio do fato para se chegar à condenação de chefes de organizações criminosas. Para ele, a aplicação da teoria para embasar condenações por crimes do colarinho branco Brasil afora dependerá de hábito. "O Supremo abriu uma porta", diz. Mas, de acordo com o procurador Mário Sarrubbo, a grande inovação do julgamento ocorreu no trato com as provas contra os réus. "A maior quebra de paradigma é a interpretação e valoração das provas", afirma. Segundo ele, os tribunais do país tratavam as provas obtidas em investigações criminais de uma maneira muito mais garantista, o que não ocorreu no caso do mensalão. "A expectativa é a de que se utilize essa jurisprudência", diz. "O juiz vai ter um lastro maior, baseado na decisão da maior Corte do país."

Segundo o procurador Alexandre de Moraes, o STF, durante muito tempo, esteve em uma "onda de abrandamento penal" - ele cita como exemplos recentes a limitação a interceptações telefônicas em investigações criminais, a permissão de progressão de regime prisional dos condenados por crimes hediondos e a restrição ao uso de algemas pelas polícias - decisões proferidas pela Corte em casos de grande repercussão. Para o procurador, entendimentos como esses levaram à anulação de investigações

relevantes e geraram indignação na sociedade. "O julgamento do mensalão é um incentivo contra a impunidade", diz. "Foi uma espécie de alento enxergar um novo paradigma de atuação do Supremo. É um estímulo ao juiz da primeira instância."

Moraes afirma que a aula inaugural da Escola do MP-SP é simbólica e pretende sinalizar, para os promotores, como eles devem pensar. "A ideia é mostrar o que aconteceu no processo do mensalão para que os eles possam começar a pôr em prática as novidades" diz. O mensalão também será um dos temas do congresso do MP-SP que acontece no segundo semestre deste ano.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-jan-31/promotores-ministerio-publico-paulista-terao-aula-mensalao 

sábado, 12 de maio de 2012

13 de maio e os discursos herdeiros da escravidão colonial...

O Brasil e a escravidão mercantil: nossa dívida com a África

Após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888. Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até hoje. O artigo é de Luiz Carlos Fabbri e Matilde Ribeiro.

1. O escravismo na formação do Brasil
O presente artigo tem por objetivo chamar a atenção sobre a atualidade política do regime escravista no Brasil e sobre a responsabilidade histórica do Estado brasileiro no tráfico transatlântico de escravos e na escravização de africanos ao arrepio da lei durante o Império. Com efeito, após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil independente permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, segundo a estimativa de Alencastro (2010), e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888.

Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até os dias atuais. Assim como a ―invisibilidade‖ dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece grandemente ignorada até o presente. Nesses tempos em que se reconhece e se discute o direito à memória e à verdade acerca das violações de direitos humanos nos períodos ditatoriais recentes, a nação brasileira precisa tornar-se ciente de que o tráfico abjeto e o regime escravista foram em larga medida obra de nossos conterrâneos.

Hoje, esse salto evolutivo em nossa memória histórica é não somente necessário, mas emergente, graças à amplitude e lucidez da nova política africana desencadeada pelo Governo Lula, o ―mais africano dos presidentes, no dizer do ex-Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. No ano de 2011, comemoram-se dez anos da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, que teve lugar em Durban, na nova África do Sul, em agosto/setembro de 2001.

Em sua memorável resolução final, a Conferência reconheceu ―que a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o tráfico transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas‖; reconheceu ainda que ―a escravidão e o tráfico de escravos são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico transatlântico de escravos, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata...

Durban foi um marco que galvanizou em todo mundo novos entendimentos e posturas, bem como movimentos sociais e políticas públicas sobre a problemática racial, particularmente com respeito aos afrodescendentes, como bem o ilustra, a declaração de 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes, em 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Tudo isso é imensamente relevante em nosso país. Com efeito, segundo projeções do IPEA, devido à diferença nas taxas de fecundidade entre população branca e não branca, projeta-se para 2050 que ¾ da população brasileira estará constituída por negros e pardos. O Brasil, este povo majoritariamente afrodescendente, tem o direito de conhecer toda a verdade sobre sua história. Ao fazê-lo, deverá reconhecer sua dívida com respeito à África, independentemente do colonialismo europeu, do qual os dois continentes foram vítimas, mas devido à participação direta do Estado brasileiro, pós-Independência, na pilhagem da África.

2. A longa abolição da escravatura
Como é sabido, o Brasil foi o último país das Américas a libertar efetivamente seus escravos. No entanto, após a firma do tratado anglo-brasileiro de 1826, em troca do reconhecimento pelo Reino Unido da independência do Brasil, havia sido aprovada pela Câmara de Deputados do Império e promulgada em 1831, durante a Regência, uma lei que abolia o tráfico de escravos e criminalizava a escravização de africanos desembarcados no Brasil.

Apesar desta lei, que está na origem de expressão popular ―para inglês ver, os chamados negreiros brasileiros prosseguiram com o tráfico, servindo-se de uma rede de agentes instalados ao longo de toda a costa ocidental da África. Na verdade, com a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos, após a guerra da independência, o tráfico negreiro brasileiro ganhou inclusive um novo impulso, sem a concorrência de seus congêneres do norte.

Além do tráfico, a lei de 1831 proibia a própria escravização, não somente assegurando plena liberdade aos africanos introduzidos no país após esta data como considerando seqüestradores seus eventuais proprietários, sujeitos a sanções penais. Por reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade, o Código em vigor à época impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano seqüestrado para qualquer porto da África.

Pouco depois, em 1845, o governo britânico decretou o Bill Aberdeen, que proibia o tráfico de escravos entre a Europa e as Américas e autorizava a Marinha a aprisionar navios negreiros, mesmo, no caso, quando navegassem em águas territoriais brasileiras, provocando pânico, segundo se diz, em traficantes e proprietários de escravos e de terras no Brasil. Para a Grã Bretanha, potência hegemônica no período, o tráfico tinha deixado de ser rentável, tornando-se um obstáculo às suas necessidades de expansão imperialista e de conquista de novos mercados, embora suas reais motivações se ocultassem sob o véu de razões filosóficas e humanitárias.

Apesar do forte sentimento anti-britânico gerado na alta sociedade imperial, o governo brasileiro viu-se obrigado a aprovar uma nova lei em 1850, dita lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico transatlântico para o Brasil e autorizava a apreensão dos negros ― boçais, que assim chamavam aos escravos recém-chegados que não dominavam o português. Mas, em contrapartida, a lei ignorava os escravos que haviam chegado ao país desde o tratado de 1826 e a lei de 1831, concedendo, de certa forma, um indulto aos seus infratores.

Com este gesto inaugural de impunidade, que viria a se incrustar a posteriori na sociedade brasileira, o governo brasileiro ―anistiava, a partir de 1850, os culpados pelo crime de seqüestro de africanos, fazendo vistas grossas ao crime correlato de escravização de pessoas livres. Com isso, os quase 800 mil africanos desembarcados até 1856 — e a totalidade de seus descendentes — continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888, ao mesmo tempo em que aumentava o tráfico interno em direção ao Sudeste e ao Sul, que ganhavam novo dinamismo econômico em detrimento do Nordeste. Assim, boa parte das últimas gerações de seres humanos escravizados no Brasil não era escrava de jure.

Ou seja, o tráfico de escravos e a escravização de africanos durante o Império não eram somente condenáveis no plano ético: eram atos ilegais cometidos pelas elites brasileiras, que permaneceram ocultos e impunes nas dobras da história dos vencedores. Paralelamente, a elevada concentração fundiária ganhava por esta via uma sobrevida e se consolidava, ao mesmo tempo em que se reforçavam os fundamentos da desigualdade racial no Brasil.

3. O Brasil e o tráfico negreiro
O tráfico negreiro com destino ao Brasil sempre teve uma dinâmica própria. Já desde o século XVII, era gerido a partir de portos brasileiros, isto é, os grandes traficantes que garantiam a reprodução do sistema escravista no país estavam sediados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e não em Lisboa. A partir de 1831, o tráfico passou integralmente ao controle de traficantes brasileiros e seus agentes em portos da África Ocidental. Os escravos eram trazidos da África, acorrentados em navios negreiros, com a bandeira brasileira hasteada em seus mastros, causando profunda dor em patriotas como Castro Alves, que em seu poema Navio Negreiro, de 1868, dezoito anos após a lei Euzébio de Queiroz, bradava enfurecido:

“Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!...”

No Império, os traficantes brasileiros eram considerados empresários de sucesso e possuíam um status social elevado, armando embarcações com destino à África, servindo-se de uma rede de fornecedores e agentes comerciais em vários países e empregando muitas pessoas. Até 1831 estiveram entre os homens mais ricos do Império, com ligações estreitas com a Corte e representantes na Câmara de Deputados, além de contar com a conivência da polícia e das autoridades locais.

Somente após 1850, com a Lei Euzébio de Queiroz, eles começaram a ser qualificados como ―piratas, tendo muitas vezes que fugir para o exterior. No entanto, sob a proteção dos latifundiários, que como compradores de escravos jamais foram punidos, foram autorizados a voltar a viver no país já nos anos 1860 e incentivados a aplicar suas fortunas em outros negócios, como a agricultura. De certa forma, portanto, a participação de brasileiros no tráfico negreiro e as benesses que receberam fazem parte de um processo que ajudou a plasmar as elites brasileiras nas entranhas da sociedade escravocrata brasileira.

Segundo Alencastro, ―do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de cinco milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). Somente após 1808, com a chegada da família real ao Brasil, teriam desembarcado mais de 1,4 milhões de escravos, aproximadamente ⅓ do total de africanos escravizados que aportaram em terras brasileiras.

Grande parte da decantada prosperidade econômica do Brasil imperial se baseou nesses enormes contingentes de escravos desembarcados durante o século XIX. Para citar um único exemplo, à persistência da escravatura se deveu o arranque da cafeicultura no Vale do Ribeira em São Paulo, que converteu o Brasil no maior produtor mundial do produto e viabilizou ulteriormente a industrialização do país.

O tráfico negreiro e o trabalho escravo no Brasil contribuíram poderosamente para a acumulação mundial de capital e a expansão econômica européia, tornando rentável a colonização da África. Em contrapartida, a África ficou estagnada, com grande parte de sua população dizimada ou deportada e com suas sociedades desestruturadas, ao mesmo em que se acentuavam os conflitos internos e as migrações massivas.

O caso de Luanda, bem documentado, ilustra as mudanças provocadas pelo tráfico nas sociedades africanas. De 1770 a 1840, seu porto permaneceu como o mais importante exportador de escravos da África Ocidental, mantendo-se nesta posição com respeito ao Brasil, mesmo após a primeira lei de abolição em 1831. Ao longo deste período, a população não só declinou fortemente como sofreu perdas significativas em sua mão de obra produtiva, para atender à demanda brasileira. Este processo, no entanto, jamais ocorreu sem resistências, sendo freqüentes as fugas e revoltas de grupos de população vulnerável para o interior e a criação em meados do século XIX de ―quilombos ou ―motolos, que costumavam se armar e atacar a cidade de Luanda.

Esta rapina abjeta de seres humanos reduziu o potencial de desenvolvimento e maculou o ethos civilizatório do qual a África era portadora. Visto da perspectiva do continente africano, o tráfico de escravos não foi, portanto, uma empresa exclusiva de colonizadores europeus, mas também, e diretamente, de traficantes brasileiros atuando com o beneplácito do Estado brasileiro, quando o país já havia se tornado independente.

4. A dimensão política de nossa dívida com a África
Quando falamos da dívida brasileira com respeito à África, não devemos restringi-la ao incomensurável aporte dos africanos à construção da nação brasileira ou, muito menos, igualar o Brasil à potência colonizadora. A colonização africana resultou do expansionismo europeu e, desta perspectiva, tanto Brasil como África padecemos solidariamente dos seus males. Mais precisamente: o Brasil não colonizou a África e nós não temos porque assumir uma responsabilidade histórica que não nos cabe diretamente.

A verdadeira dívida brasileira está espelhada no tráfico negreiro realizado por traficantes brasileiros, principalmente ao longo do Império, atuando ilegal e impunemente, sob a égide do Estado brasileiro, ou seja, refere-se a um período histórico de pouco mais de meio século, num contexto em que o Brasil e outros países do continente americano já haviam deixado de ser colônias, tornando-se independentes.

Com efeito, foram traficantes brasileiros, em associação com grandes latifundiários, ou seja, as elites econômicas imperiais, que tomaram as rédeas do tráfico para o Brasil. Embora o país tenha evoluído desde então, os herdeiros dessas elites, e em alguns casos inclusive seus descendentes diretos, continuam tendo um enorme peso na vida política e na economia do país. A atualidade do tráfico negreiro reside, contudo, mais além das chagas sociais que nos legou, no desafio que nos coloca sobre o imperativo de ampliar continuamente nossos horizontes democráticos e construir uma sociedade que respeite a dignidade humana.

A discriminação e o racismo contra o negro no Brasil têm na escravatura sua matriz principal e fundadora. O tráfico necessitava uma justificativa no plano ideológico, que reduzisse o "homem de cor" a um ser inferior, degradado, próprio a ser tratado como uma coisa, uma mercadoria. O racismo cresceu à medida que se expandiu o tráfico negreiro e se incrustou nas instituições brasileiras principalmente a partir do Império. Mesmo depois de abolida a escravidão, o racismo prosseguiu e prosperou, como parte de uma cultura dominante abraçada pelo Brasil independente, a mesma que tornou possível e aceitável o saque colonial, o imperialismo e, nos dias atuais, o neocolonialismo. No caso do Brasil, esta cultura ainda dominante se traduz na submissão, com freqüência servil, aos interesses das classes dominantes do mundo dito civilizado.

O governo Lula inaugurou uma reviravolta nesta triste herança histórica, ao assumir a dívida histórica do Brasil com respeito à África, e ao reafirmar, a um só tempo, o peso da África e dos afrodescendentes na formação social brasileira. Contrariando as pretensões primeiro-mundistas das elites tradicionais, pediu publicamente perdão aos africanos e fez da África uma prioridade para a nova inserção internacional do Brasil, mediante uma visão de largo prazo dos interesses nacionais. Conferiu assim uma nova legitimidade e um cunho popular à política externa brasileira, valorizando o componente africano de nossa sociedade e a sua contribuição decisiva para a afirmação da nossa cultura. Para a África, o Brasil de governo Lula tornou-se um poderoso aliado na conquista de maior autonomia e integração, ajudando-a a superar a situação de dependência e marginalização em que se encontra.

No plano interno, contudo, nesses tempos em que se discute o direito à verdade e à memória na perspectiva dos oprimidos, cabe ainda desvendar o quanto a forma que assumiu o escravismo no Brasil determinou seu desenvolvimento ulterior e, em particular, porque o Brasil permanece até hoje como a única grande economia agro-exportadora que não realizou uma extensa reforma agrária.

O ocultamento da verdade com respeito ao papel de brasileiros no tráfico negreiro contribui também, certamente, à perpetuação do trabalho escravo no Brasil até o presente, esse crime de lesa-humanidade, considerado imprescritível pela Constituição de 1988.

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 até agosto de 2010, foram resgatados quase 38 mil escravos. Por sua vez, a Comissão Pastoral da Terra estima que cerca de 25 mil brasileiros se tornam escravos a cada ano, passando a viver em barracões de chão batido, separados de suas famílias e subjugados por dívidas impagáveis e crescentes. Segundo Monteiro Filho da ONG Repórter Brasil, que se especializou no trabalho escravo contemporâneo, ―os empregadores que utilizam mão de obra escrava são, na maioria das vezes, grandes latifundiários [...] quando não são congressistas, membros dos Legislativos estaduais ou do Poder Judiciário‖. Segundo este autor, ―a maioria dos casos de utilização de mão de obra escrava é registrada... nas fazendas de gado‖. O Brasil, como maior produtor e exportador de carne bovina do mundo, e grande produtor agrícola, tem no poderoso agronegócio a marca do trabalho escravo contemporâneo.

Assumir a responsabilidade histórica pela enorme dívida que temos com a África não é, portanto, uma atitude passadista, porém tem um claro rebatimento em componentes estruturais de nossa realidade como nação e em alguns de nossos principais desafios atuais. Esclarecer e discutir este tema representa um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente em especial. A política externa e a de cooperação com a África precisam incorporar continuamente esta dimensão como fundamento incontornável de enfoques inovadores e emancipatórios, baseados no respeito à dignidade e à liberdade humana.

5. Referências bibliográficas
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Vários autores, Especial “A abolição em revista”, Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 3, nº 32, 2008, pp. 14-27, Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Os discursos que sustentam as práticas, e as práticas que sustentam os discursos

18/02/2012

A lógica da loucura

“Ha lógica na sua loucura.”
(Shakespeare, Hamlet)

Entrevistas como a do ex-ditador argentino Jorge Videla à revista espanhola Cambio 16, expressam momentos de sinceridade em que se reproduzem, de forma precisa, a lógica que levou aos regimes de terror que imperaram no cone sul latino-americano há poucas décadas.

Olhada desde agora, tudo parece uma loucura, da qual todos tratam de se distanciar, como se fosse expressão da loucura de alguns, que precisa ser reduzida ao passado e a alguns personagens particulares, uma parte dos quais processada e condenada. Teria sido “um momento ruim”, do qual os países teriam virado a página. Esquecer o passado, curar as feridas, voltar-se para o futuro – essa a proposta dos que protagonizaram aquele “loucura”.

Por isso incomoda muito quando algum daqueles personagens que dirigiram, com representação deles, os regimes de terror, retomam a lógica que os uniu. A leitura da entrevista do Videla é muito saudável, porque reproduz a mesma lógica do bloco que se formou para dar o golpe e deu sustentação à ditadura militar. Bastaria mudar alguns nomes e circunstâncias concretas, para que se tivesse um documento adequado ao que aconteceu no Brasil. É o discurso que sobrevive em setores militares e civis saudosos dos tempos do terror contra a democracia e contra o povo. Escutemos o que disse Videla.

“Na Argentina não há justiça, mas vingança, que é algo bem distinto.” “Houve uma assimetria total no tratamento das duas partes enfrentadas no conflito. Fomos acusados como responsáveis, simplesmente, de acontecimentos que não fomos nós que desencadeamos.”

Desqualificação da Justiça, como revanchismo, para o que eles tem que aparecer como salvadores providenciais de um pais à beira do abismo, com “vazio de poder”, dominado pelo caos. A Justiça os trataria de forma desigual, porque assumem agora a teoria dos “dois demônios”, dos dois bandos em guerra, buscando descaracterizar que foram os agentes do golpe militar, da ruptura da democracia e da instauração de uma ditadura do terror.

Relata Videla que o principal dirigente da oposição, Ricardo Balbin, do Partido Radical, lhe telefonava para incentivar que dessem o golpe. Nada diferente da UDN no Brasil e da Democracia Crista de Eduardo Frei no Chile.

“Os empresários também colaboraram e cooperaram conosco. Nosso próprio ministro da Economia, Alfredo Martinez de Hoz, era um homem conhecido da comunidade de empresários da Argentina e havia um bom entendimento e contato com eles".

“A Igreja cumpriu com o seu dever, foi prudente...” “Minha relação com a Igreja foi excelente, mantivemos uma relação muito cordial, sincera e aberta. Tinhamos inclusive aos capelães castrenses assistindo-nos e nunca se rompeu esta relação de colaboração e amizade.”

No Brasil a Igreja Católica participou ativamente na mobilização para o golpe militar, com o qual romperia e teria papel muito importante na denuncia e na resistência à ditadura. Na Argentina, ao contrário, a Igreja continuou apoiando a ditadura, a ponto de mandarem capelães participarem dos vôos da morte, quando duas vezes por semana eram jogados ao mar presos políticos.

“Foi um erro nosso aceitar e manter o termo de desaparecidos digamos como algo nebuloso; em toda guerra há mortos , feridos, aleijados e desaparecidos , isto é, gente que não se sabe onde está. Isto é assim em toda guerra. Em qualquer circunstância do combate, aberto ou fechado, se produzem vitimas. Para nós foi cômodo então aceitar o termo de desaparecido, encobridor de outras realidades (sic), mas foi um erro pelo que ainda estamos pagando e sofrendo muitos de nós. É um problema que pesa sobre nós e não podemos livrar-nos dele. Agora já e’ tarde para mudar essa realidade. O problema é que não se sabe onde está o desaparecido, não temos resposta a essa questão. No entanto já sabemos quem morreu e em que circunstâncias. Tambem mais ou menos quantos morreram, aí cada um que invente suas cifras.”

Essa a lógica da loucura das ditaduras militares, dos regimes militares, que uniu às elites dos países do cone sul, dirigidos pela alta oficialidade das FFAA, congrengando grandes empresários, donos das grandes empresas dos meios de comunicação, com apoio dos EUA. Esse o discurso que os uniu, expresso de forma fria e articulada.

Postado por Emir Sader às 20:15