Ciência Livre: vale a pena um professor criar o seu blog
É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de
comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso a trabalhos
científicos essenciais.
Ladislau Dowbor
Na virada do milênio, decidi
repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um
balanço. Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento
econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com
inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas,
relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria
produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava
pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e
clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje ao meu
filho, que me ajudou a montar o meu primeiro site. Alguns já chamam este
tipo de ajuda de filhoware.
Decidi fazer este pequeno balanço
porque deve ajudar muita gente que se debate com a transição. Deixem-me
dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o
digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem
como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de
arquitetura do trabalho intelectual.
O ponto de partida foi o meu blog,
http://dowbor.org,
hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta
distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que
eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que
do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma
drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso
está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à
nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.
Deixem-me
lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos
EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50
milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora.
Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE
(China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia
entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador
da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda
pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E
quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é
provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os
primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira
ainda muito tímida.
Isto dito, eu que não sou nenhum MIT,
constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte,
esperando que as informações sejam úteis:
1) A criação de um blog
individual de professor representa um investimento extremamente
pequeno, comparando com o benefício obtido, sobre tudo porque hoje temos
estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não
custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua
vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e
seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.
2) Ter um blog não
é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter
de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog
científico, na realidade, como o meu, é muito mais uma biblioteca de
fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu tenha de
acompanhar e administrar.
Não faz muita diferença com uma estante na
minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar o meu
texto com uma palavra chave no computador, do que localizá-lo na
estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu
blog, não precisa me pedir o livro emprestado nem perder tempo dele e
meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.
3) A
produção científica e a divulgação deixam de constituir processos
separados. O artigo ou o livro que o professor escreve, ou que recebeu e
quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar
pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português,
pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias
do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei
e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles
encontraram simplesmente porque colocaram palavras chave na busca por
internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada,
mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai
para a 6ª edição pela editora, uma coisa não atrapalha a outra, a
editora encontra o seu interesse também.
4) O essencial não está
na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente.
Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa
biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já
não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em
pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da
pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e
visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira
prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação
em geral.
5) O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros.
Coloco no blog, em Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me
parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para
repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta
sobre energia, recomendo que peguem no meu site o artigo de Ignacy
Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século
XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar
imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para
alunos.
6) Como professor, recebo
frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço
suficientemente a minha área para saber que se trata de um ótimo
trabalho. Normalmente, ninguém leria o trabalho, pois o aluno não é
conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e
colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber
agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias
pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De
certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons
trabalhos de pessoas menos conhecidas.
7) Tudo isto está baseado
no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido,
que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não
utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da
ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a
apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao
mesmo tempo que permite que o texto seja imediatamente acessível para
fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite
inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.
8)
Um enriquecimento muito importante do processo, é que me permite
utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada
produção, associando ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso
ou animação gráfica sem nenhum constrangimento, pois do lado de quem lê
haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente
valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir
determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto
em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem,
ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem
utilizada é muito útil.
9) Trata-se de uma ferramenta em que o
universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez do
professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para
discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para
os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos
online sobre o tema, desenvolverão a sua capacidade de pesquisar no
imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados.
Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos
disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo
educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de
conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é
relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.
10) O
processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores.
Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de
pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A
minha solução, é que publico sim em periódicos formalmente avaliados
como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para
ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo
meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e que não
me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada
24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas
condições, francamente não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e
50 dólares por artigo e por acesso. Já são mais de 15 mil cientistas
americanos que boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em
sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não
atualizar os seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital, um
para pontos, outro para leitores.
11) Com pequenos conselhos de
alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais
evidentes de comunicação. No blog abri a possibilidade de qualquer
pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais
científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil
“colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha
sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma
aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem
os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento,
permite fazer circular o material. Por tanto, a minha biblioteca virtual
não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com
todos os interessados, mesmo que não me conheçam.
12) Uma virtude
básica do processo que precisa ser entendida, é que os textos circulam
não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não
porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os
usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa
que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular, é o
que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam
como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de
acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo
lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções
necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de
construção científica.
13) Finalmente, eu acho que da mesma forma
que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes
alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde,
Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros –
precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire
os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo
Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de Copyright só
teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou
grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados
por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição.
Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com
os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que
estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de
comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos
científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar
dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que
custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.
Permito-me
aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu
blog, hoje um Wordpress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho.
Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no
nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da
vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, com
organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam
enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem
se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no
começo até montar um blog adequado para professor), fiquem à vontade,
eventualmente posso até recomendar pessoas que possam ajudá-los. Vamos
encher este país de ciência, de boa ciência, progressista,
transformadora.
Quanto ao medo das
pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável,
descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open
access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes
simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o
sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu
conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é
relevante ou não”.