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terça-feira, 9 de setembro de 2014

TV e Cultura Livre: projeto possível? desejável?

O Brasil que você não vê na TV (comercial)

Escrito por: Luana Bonone
Fonte: Barão de Itararé

Enquanto a televisão comercial brasileira escolhe concentrar a cobertura eleitoral na agenda de candidatos e nos resultados de pesquisas de intenção de votos, há TVs públicas e estatais, dentro e fora do Brasil, realizando debates que dão conta de maneira muito mais interessante da realidade e dos possíveis rumos. Então por que a TV pública não tem audiência no Brasil?

A tragédia que se abateu sobre o candidato à presidência da República Eduardo Campos trouxe consequências sensíveis ao quadro eleitoral no país. Os canais de TV comerciais noticiaram o acidente, assim como a reação dos outros candidatos e do partido de Eduardo Campos à sua morte. Desde então concentram a cobertura nos resultados das pesquisas de opinião.

Mas onde está o debate público sobre os diferentes projetos, sobre o perfil das candidaturas ou mesmo sobre a opinião de cada candidato a respeito do projeto de país?  O que você não vê nos canais comerciais pode estar passando em outro canal, como é o caso da Televisión del Sur (Telesur), uma TV multiestatal, financiada por 7 países e que tem por objetivo ser um canal de notícias de toda a América Latina. Confira o debate que a Telesur promoveu a respeito ao crescimento das intenções de voto na candidata Marina Silva após o trágico acidente que tirou a vida de Eduardo Campos: Brasil: Marina Silva, principal rival de Dilma Rousseff en elecciones

O canal também noticia o impacto de programas educacionais brasileiros, como o Pronatec, e apresenta grandes nomes da nossa cultura, como a atriz Fernanda Montenegro. O mesmo vale para as notícias relativas aos demais países da América Latina, é claro.

A Telesur, portanto, é uma experiência exitosa em termos de sustentação da grade de programação, alcance e linha editorial definida, com capacidade de representar um contraponto à mídia comercial em termos de conteúdo, sem cair na armadilha de se tornar panfletária. Mas por que a TV pública é tão desconhecida em nosso país? Para o conselheiro da Telesur Beto Almeida, “a TV pública ameaça os conservadores porque não é TV de alinhamento incondicional, pode ser ou não. Já a TV comercial é dominada pelo anunciante, a ideologia da notícia passa pelo setor comercial”. E é justamente por isso que o jornalista defende a importância do fortalecimento dos canais públicos, sejam eles estatais ou não.

A América Latina se levanta
Há diversas experiências recentes na América Latina no rumo da democratização da comunicação e, via de regra, contam com importantes canais públicos de rádio e televisão. Beto explica que o Canal 7, TV pública argentina, faz um contraponto ao jornalismo comercial do país, o qual faz oposição aberta à presidenta Cristina Kishner. Entretanto, há um cuidado para o canal não desenvolver uma linha adesista ou panfletária. “O Canal 7 argentino fomenta o debate, faz contraponto, não sai em defesa da Cristina [Kishner]. Quando houve o caso dos chamados fundos abutres, a TV pôs o assunto em debate, colocou para falar pessoas historicamente caladas pela mídia comercial”, explica Beto Almeida.

A TV pública argentina também apresenta uma linha de documentários diferenciados, a favor da integração latino-americana. Na Bolívia, o Evo Morales criou uma TV pública e também uma rede nacional de rádios indígenas que reúne mais de 60 emissoras. No Equador, a legislação estabeleceu uma distribuição de espectro espelhado na legislaçãoargentina: 33% para o Estado, 33% para canais comunitários (entidades sem fins lucrativos) e 33% para o setor comercial de rádios e TVs. Na Venezuela, o Estado combina um modelo que fomenta TVs estatais e públicas. A concessão não renovada para a Radio Caracas Televisión (RCTV), em 2007 (vale destacar que a emissora permanece veiculando seu conteúdo em canal privado, com transmissão a cabo), foi passada para um canal público denominado Canal Social, dirigido por uma cooperativa que reúne em média 500 pequenos e micro produtores independentes. Após fazer este resumo dos avanços, o conselheiro da Telesur constata que o panorama na América Latina está mudando tremendamente, e lamenta: “no Brasil não”.

Membro do conselho curador da TV Brasil, Rita Freire lamenta ausência completa a respeito da comunicação pública nas eleições presidenciais: “é decepcionante que um tema tão fundamental como o as políticas para o fortalecimentos da mídia pública brasileira passe longe dos debates eleitorais, e isso porque tratar desse tema requer desconcentrar e democratizar a comunicação, algo que não interessa aos poucos e poderosos grupos da mídia privada que detem muito poder hoje”.

Comunicação pública no Brasil
No Brasil as ações pioneiras de estabelecimento de canais de radiodifusão públicos se deram no Estado Novo. Entretanto, a lógica estava voltada aos interesses de formação de mão-de-obra ao desenvolvimento do país de uma maneira rápida, barata e vertical (para evitar o questionamento que uma sala de aula pode ensejar). O primeiro projeto de televisão pública no Brasil, portanto, é de uma televisão educativa. Embora não tenha logrado sucesso – por conta da pressão das televisões comerciais, com destaque para o magnata da radiodifusão Assis Chateaubriant –, tal experiência viria marcar uma tradição das TVs públicas, ainda hoje em sua maioria educativas. A primeira experiência de radiodifusão efetivamente exitosa foi a Rádio Nacional, que efetivamente não nasceu de um projeto pensado pelo governo. A Rádio Nacional foi incorporada à União como resultado de uma ação de estatização do patrimônio da emissora após a constatação de uma dívida insustentável com o Estado.

Embora não tenha nascido de um projeto do governo Getúlio, a Rádio Nacional tornou-se um poderoso instrumento de propaganda do Estado Novo, fato que ainda hoje cria resistências dentro do próprio campo dos movimentos sociais à ideia de uma comunicação estatal. Beto Almeida, da Telesur, defende que o importante não é o caráter estatal ou não, mas o conteúdo, e destaca o caso das TVs públicas europeias, em geral alinhadas com uma opinião pró-OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em todos os conflitos internacionais recentes.

O único caso em que a posição da BBC de Londres divergiu da posição da OTAN, ocorrido no episódio em que o governo britânico sustentou que havia armas de destruição em massa no Iraque para justificar um ataque militar, seu diretor-presidente, Gavyn Davies, foi levado a se demitir. Tal fato revela que mesmo as TVs públicas mais consolidadas na chamada democracia ocidental não possuem autonomia editorial em relação à opinião hegemônica da elite. Exatamente por este motivo a autonomia, sejaem relação aos governosou a empresas privadas, e quaisquer instituições que o valham, é um valor muito caro à sociedade civil organizada. Assim, a luta se dá em torno da constituição de um canal público não-estatal no Brasil.

Segundo Diogo Moysés, do coletivo Intervozes de comunicação, “embora consagrado na Constituição de 1988, o sistema público de comunicação, compreendido como um campo estatal com autonomia em relação ao governo, começou a dar os primeiro passos com a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), no início do segundo mandato do ex-presidente Lula. Naquele momento, com o Ministério da Cultura à frente, foram criadas as condições para esse avanço”. A EBC congrega diversos veículos públicos, entre os quais a TV Brasil.

A TV Brasil
Mesmo os defensores da comunicação pública mais críticos à TV Brasil reconhecem que sua criação é um avanço no que se refere a política de comunicação no país. Ao mesmo tempo, todos os setores que valorizam a TV Brasil, apontam as contradições e insuficiências do canal, como reflexo dos limites da própria política de comunicação ora conduzida.membro do conselho curador da TV Brasil e entusiasta do projeto de fortalecimento da comunicação pública no Brasil, Rita Freire avalia que uma das questões importantes a ser tratada a respeito da TV Brasil no que diz respeito à sua autonomia é em relação à “dependência do governo, já que faltam políticas de Estado adequadas para preservar a EBC dohumores e prioridades políticas do momento, nas negociações deorçamentos e distribuição de cortes. Como a EBC abrange uma mídiagovernamental, que a NBR, as coisas se confundem até para a sociedade.A ideia de mídia pública se mistura com a do governo, dificultando que a população se aproprie mais do debate da EBC como empresa pública”. A TV NBR é um canal brasileiro de notícias governamentais.

Tal opinião é compartilhada por Diogo  “a independência de gestão e financeira da EBC em relação ao governo não se concretizou de fato, criando uma empresa cuja legitimidade pública terá dificuldade de se realizar. Além disso, há uma acomodação com a pequena capacidade de incidência dos conteúdos produzidos pela EBC, como se fosse satisfatório um sistema cuja incidência na vida dos brasileiros seja marginal, quase nula. Tudo isso está impedindo o sistema de alçar voos maiores. Estamos completamente estacionados”, avalia o membro do coletivo Intervozes.

TV Cultura: a importância de um conselho curador democrático
A imagem da TV pública deve manter uma distância segura e uma autonomia de opinião necessária em relação ao governo federal. Este é justamente o papel do conselho curador: deve ser um órgão de participação da sociedade civil, cujo papel é definir uma linha editorial independente, autônoma em relação a governos e interesses privados, e plural, considerando a diversidade de opiniões, culturas e visões de mundo presentes na sociedade. Um bom exemplo de como não fazer isso é a TV Cultura, de São Paulo. Com um conselho curador absolutamente fechado, mantém uma patota de alinhados à posição hegemônica elitista, muito forte no estado. Primeira candidata ao Conselho Curador da TV Cultura vinda dos movimentos sociais na historiado estado, Renata Mielli fala sobre o impacto de um conselho engessado e quase aristocrático: “neste momento, não há instrumentos de diálogo entre este Conselho e a sociedade. O conselho hoje se autonomeia e renova, sem critérios republicanos de participação e transparência. Sem espaços de diálogo, ele se afasta da realidade do povo paulista e, com isso, perde o poder de auscultar as críticas e contribuições da sociedade para o projeto fundamental e necessário de um instrumento público de comunicação para São Paulo”, avalia Renata, que é diretora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Com a preocupação de disputar audiência com as TVs comerciais, a TV Cultura encontrou uma solução “brilhante” para tornar sua programação mais plural: passou a veicular um programa da TV Folha, produzido pelo grupo Folha de S. Paulo. Tal decisão parte de uma premissa equivocada, como define Renata Mielli: “acho importante falar do equívoco que é fazer uma TV pública buscando competir com as comerciais pela ‘audiência’. E nos referirmos aos equívocos que esta linha tem trazido para a TV Cultura, com a inclusão da TV Folha na programação e como a ausência de um conselho transparente e eleito democraticamente com participação da sociedade”. O principal consenso entre os defensores e promotores da comunicação pública é que, ainda que os canais sejam permeados de produções independentes, o que não pode ser terceirizado em nenhuma hipótese é justamente o jornalismo, visto que é o principal veio de expressão da linha editorial do veículo, que deve ser debatida e definida por um conselho curador plural e democrático, assim, a “grande sacada” de veicular a TV Folha já contradiz uma premissa fundamental dos canais públicos. Isso é importante inclusive porque os interesses que devem motivar o jornalismo dos canais públicos não podem se atrelar aos interesses privados que em geral influenciam a linha editorial dos meios comerciais – esses também deveriam seguir critérios que atendessem ao interesse público, mas isso é assunto para um outro longo debate, que é a regulação da comunicação comercial.

Veicular um programa de um veículo impresso de grande circulação sem se ter aberto edital público ou qualquer outro instrumento para a escolha do programa representa uma audiência de transparência, que se torna ainda mais suspeita se considerado que a Folha de S. Paulo paga pelo espaço com permuta: por meio de anúncios da TV cultura em suas edições impressas – cabe ressaltar que ao final de cada programa o TV Folha convida os telespectadores a acompanharem a edição impressa do dia seguinte, promovendo uma marca privada dentro do canal público, sem qualquer critério de como tal programa seria selecionado ou qual marca se encaixaria melhor no projeto da TV.

Financiamento e outros entraves
Mas nem só de permutas com a Folha de S. Paulo vivem as TVs públicas estaduais. Se é verdade que a TV Brasil e mesmo a Agência Nacional do Cinema (Ancine) tem publicado muitos editais voltados para a radiodifusão pública – embora haja dificuldades orçamentárias imensas na EBC –, falta uma regulamentação das TVs públicas no Brasil. Essa é a opinião do presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), Pedro Osório. Segundo Pedro, que é também presidente da Televisão Educativa estadual TVE-RS, “as diferenças jurídicas e institucionais são extraordinárias de uma emissora para a outra. Em alguns estados o poder do procurador, por exemplo, é determinante no cotidiano da TV, é uma dificuldade enorme para autorizar uma viagem ou licitar um equipamento”.

Grade de programação e produção independente
O presidente da Abepec explica que a própria criação de uma TV pública nacional foi demandada pela rede de TVs públicas, conforme sinalizaram os fóruns de TVs públicas. Embora Pedro considere “decisivas” as parcerias da TV Brasil com as TVs públicas regionais, ele avalia que a emissora nacional “é um pouco distante das emissoras locais. A TV Brasil deveria ter mais ciência do que ocorre, ter mais contato com o que é feito Brasil afora em termos de produção audiovisual, jornalismo, etc.A TVE-RS, por exemplo, é a segunda maior TV aberta do estado. Percebemos que há um legado dos municípios que pode ser contado, e nós jamais faremos isso com produção própria, é preciso dar espaço também à produção independente, que é inclusive uma maneira de movimentar um mercado para a realização de projetos”.

Pedro Osório considera importante que haja produção própria, mas que também haja produção independente, mas faz uma ressalva: exceto no caso do jornalismo, que deve ser produzido pela própria emissora pública, pelo papel que cumpre na expressão da linha editorial do canal. Em contraponto ao jornalismo das emissoras comerciais, que ele classifica de “neoliberal” pelo seu conteúdo, o presidente da Abepec opina que “uma TV pública precisa ter uma linha editorial aprovada em conselho deliberativo, de maneira que é possível praticar um jornalismo diferente à medida que a visão de mundo é ampliada”.

Na mesma linha, Diogo Moysés argumenta que “o atributo número um do jornalismo público, pelo menos em tese, é a total independência em relação a qualquer interesse privado e a busca exclusiva pela informação de interesse público. No jornalismo dos meios privados, além da ideologia do proprietário - geralmente das elites nacionais ou locais -  o jornalismo estará sempre subordinado aos departamentos comerciais das emissoras, mesmo que isso muitas vezes não seja explícito”.
Em relação a este papel de promover debates, em termos de conteúdo nacional a TV Brasil efetivamente apresenta uma linha diferente das TVs comerciais, promovendo debates que valorizam a qualidade da informação, como pode ser conferido no programa Brasilianas: O Brasil como fornecedor mundial de tecnologias de bem estar - Brasilianas.org

Entretanto, a programação não tem unicidade em termos de qualidade e mesmo linha editorial, de maneira que as notícias de cunho internacional, por exemplo, são muitas vezes “à direita do próprio Itamaraty”, como avalia Beto Almeida.

Um projeto de comunicação pública para o país
Mesmo com todas as insuficiências e contradições presentes em um projeto ainda muito recente como é a TV Brasil, trata-se, este canal, de uma experiência importante para afirmar a possibilidade concreta de construção de uma comunicação de massas cuja linha editorial não seja definida pelas elites que a sustentam ou pelos departamentos comerciais da empresa privada que o dirige, mas antes, o canal se apresenta como a menina dos olhos de um projeto de consolidação de um campo público da comunicação no país. Tal projeto foi apresentado e é sustentado pelo Poder Executivo Federal e foi ratificado pelo Congresso Nacional, mas encontra resistências poderosas dos setores privados e das forças políticas conservadoras. Beto Almeida avalia, considerando o contexto de eleições, que “se o Estado vier a ser capturado pela direita, a tendência é que a TV Brasil tenha um destino similar ao da TV Cultura de São Paulo, que está sendo diluída, debilitada, cheia de restrições”.

Diogo Moysés acredita que é preciso profissionalismo para disputar espaço com as emissoras privadas: “o único caminho para o desenvolvimento do sistema público, no caso da televisão, é transformar-se em uma grande programadora de conteúdos, competindo inclusive no mercado de TV por assinatura, com diversos canais, generalistas e segmentados”.

Pedro Osório reforça a importância da autonomia e da participação social, afirmando que “a TV Pública não pode ficar diretamente ligada ao governo, precisa ter participação da sociedade muito forte, por meio do conselho deliberativo, que deve estabelecer as linhas gerais de atuação e essas linhas gerais tem que ser cumpridas”.

Em resistência à pressão dos setores conservadores e em consonância com as perspectivas daqueles que batalham pelo fortalecimento da comunicação pública, os setores democráticos buscam fortalecer os instrumentos existentes e apresentam um Projeto de Lei de Inciativa Popular que prevê a reserva de 33% do espectro para canais públicos, sendo ao menos metade desses para “os serviços prestados por entes de caráter associativo-comunitário”. O mesmo projeto prevê a criação de um Fundo Nacional de Comunicação Pública, a ser constituído de recursos públicos, assim como da contribuição sobre publicidade e do pagamento pelas outorgas por parte das emissoras privadas.
Este caminho é defendido pela curadora da TV Brasil Rita Freire: “uma plataforma fundamentalpara a mídia pública consiste em assegurar aquele um terço que lhe cabe no espectro e também nos investimentos, regulamentando o artigo 223 da Constituição Federal, que fixa a complementaridade dos sistemas privado, estatal e público. É preciso não restringir a participação da sociedade ao que existe hoje e constituir de fato um Conselho Nacional de Comunicação. Na EBC, é preciso separar a mídia governamental dos  canais públicos, apoia-la na construção de um modelo de maior autonomia,  levar o sinal da TV Brasil a todo país,  fomentar atividades de produção regional, apoiar o jornalismo internacional da TV como estratégico para o país, promover debate e formação sobre comunicação pública junto às universidades, entender que as mídias públicas de comunicação têm a responsabilidade de debater o cenário da comunicação em que ela se insere”.

*Entre 5 de agosto e 5 de outubro, data marcada para as eleições de 2014, o Barão de Itararé publicará, às terças e quintas-feiras, reportagens especiais abordando temas ligados à comunicação que, geralmente, são excluídos do debate eleitoral. A reprodução é livre, desde que citada a fonte. Saiba mais sobre a iniciativa aqui.

domingo, 2 de junho de 2013

Comunicação, publicidade e mídia

O esquema Globo de publicidade


Comuns no mercado, Bonificações por Volume direcionam anunciantes aos maiores grupos de mídia; especialistas criticam prática criada pela Rede Globo

29/05/2013

Patrícia Benvenuti

Mais de 16 milhões de comerciais por ano e um relacionamento com 6 mil agências. Esse é um resumo do desempenho da Rede Globo junto ao mercado publicitário brasileiro, orgulhosamente exibido na página de internet da emissora.

Líder na arrecadação de verbas publicitárias entre todos os meios de comunicação, a Globo também mostra sua força em cifrões. Somente em 2012, os canais de TV (abertos e por assinatura) das Organizações Globo arrecadaram R$ 20,8 bilhões de reais em anúncios, segundo informe divulgado pela corporação.

Por trás dos números, porém, se esconde uma prática que os grandes grupos de mídia preferem ocultar: o pagamento das Bonificações por Volume (BV), apontado por especialistas como um dos responsáveis pelo monopólio da mídia no país.

Monopólio
Desconhecidas pela grande maioria da população, as Bonificações por Volume são comissões repassadas pelos veículos de comunicação às agências de publicidade, que variam conforme o volume de propaganda negociado entre eles.

A prática existe no Brasil desde o início da década de 1960. Criada pela Rede Globo, seu objetivo seria oferecer um “incentivo” para o aperfeiçoamento das agências. Com o tempo, outros veículos aderiram ao mecanismo, que hoje é utilizado por todos os conglomerados midiáticos no Brasil.
O pagamento dos bônus, no entanto, é alvo de críticas de militantes do direito à comunicação, que argumentam que a prática impede a concorrência entre os meios de comunicação na busca por anunciantes. Isso porque, quanto mais clientes a agência direcionar a um mesmo veículo, maior será o seu faturamento em BVs.

Para o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Venício Artur de Lima, a prática fortalece os grandes grupos, já que leva anunciantes aos meios que recebem publicidade. “Exatamente por terem um volume alto de publicidade é que eles [meios] podem oferecer vantagens de preço”, explica.

O resultado desse processo, segundo o professor, é a dificuldade de sobrevivência dos veículos de menor capacidade econômica, que não têm recursos para as bonificações. “Você compara um blog ou um portal pequeno com um portal da UOL, por exemplo. Não tem jeito de comparar, são coisas desiguais”, afirma.

Antes restrita às mídias tradicionais, as bonificações vão ganhando novos nichos. De acordo com agências de publicidade e com o presidente do Internet Advertising Bureau (IAB), Rafael Davini, atualmente o Google também utiliza BVs. Segundo informações do mercado, o Google seria hoje o segundo grupo em publicidade no Brasil, ficando apenas atrás da Rede Globo.

Líder em BVs
O exemplo mais forte da relação entre bônus e concentração, para o jornalista e presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Altamiro Borges, é o caso da televisão. “Todos os canais fazem isso, é uma forma de manter a fidelidade da agência de publicidade com o veículo. Só que, como a Globo é muito poderosa, a propina é muito maior”, diz.

De acordo com dados do Projeto Inter-Meios, da publicação Meio & Mensagem, a publicidade destinada à TV aberta em 2012 foi de R$ 19,51 bilhões. Cerca de dois terços desse valor ficaram com a Globo.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom) e editor da Revista Fórum, Renato Rovai, outro procedimento adotado pela emissora é o repasse antecipado dos bônus. “A Globo estabelece uma bonificação por volume de publicidade colocada e antecipa o recurso. Aí a empresa fica presa a cumprir esse objetivo. É assim que fazem o processo de concentração”, ressalta.

Borges critica ainda o silêncio midiático em torno do assunto. “É um tema-tabu, nenhum veículo fala. Como todo mundo utiliza, ninguém pode reclamar. Fica todo mundo meio cúmplice”, dispara.

Regulamentação
Em 2008, as bonificações foram reconhecidas e regulamentadas pelo Conselho Executivo das Normas Padrão (CNPE), entidade criada pelo mercado publicitário para zelar as normas da atividade. O CNPE classifica os bônus como “planos de incentivo” para as agências.

Dois anos depois, as bonificações foram reconhecidas também por lei. Elas estão previstas na Lei nº 12.232, que regulamenta as licitações e contratos para a escolha de agências de publicidade em todas as esferas do poder público. Segundo o texto, “é facultativa a concessão de planos de incentivo por veículo de divulgação e sua aceitação por agência de propaganda, e os frutos deles resultantes constituem, para todos os fins de direito, receita própria da agência”.

Para Renato Rovai, a aprovação do texto agravou o problema. “É uma corrupção legalizada. Nenhum lobby é legalizado no Brasil, mas o BV é”, critica o presidente da Altercom.

A Lei nº 12.232 também foi objeto de polêmicas durante o julgamento da ação penal 470, no caso que ficou conhecido como “mensalão”. Isso porque o texto original da lei permitia que as agências ficassem com o bônus, mas só para contratos futuros. Entretanto, uma mudança feita na Comissão de Trabalho em 2008 estendeu a regra a contratos já finalizados. O fato gerou discordância entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ayres Britto chegou a afirmar que as alterações foram feitas para beneficiar os réus do “mensalão”, acusados de peculato referente a desvios de Bvs.

Mudanças
Mudar a legislação, na avaliação do presidente da Altercom, é um passo fundamental para acabar com a prática das bonificações por volume. No entanto, são necessárias mais medidas para reverter o quadro atual da mídia no país. “É preciso mudar a regulamentação e criar um novo marco legal, incluindo as agências”, defende Rovai. Uma das propostas para isso é o Projeto de Lei de Iniciativa Popular para as Comunicações. Criado por organizações populares, o PL visa, dentre outros objetivos, combater o monopólio no setor e garantir mais pluralidade nos conteúdos.

Em seu artigo 18, o projeto propõe que “os órgãos reguladores devem monitorar permanentemente a existência de práticas anticompetitivas ou de abuso de poder de mercado em todos os serviços de comunicação social eletrônica”, citando “práticas comerciais das emissoras e programadoras com agências e anunciantes”. Para se transformar em um projeto de lei, a proposta precisa de um 1,3 milhão de assinaturas.
 
 
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