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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sentenças e arrazoados: quem condena o quê

Vestígios de civilização

A fundamentação do juiz que inocentou um usuário de maconha vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.


Marcio Sotelo Felippe *
Boletim Carta Maior  Maj. Will Cox/ Georgia Army National Guard

Em "Futuros Amantes", Chico Buarque imagina que daqui a milênios, quando o Rio for uma cidade submersa, escafandristas virão explorar os segredos da sua amante, sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma. E que sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização.
 
Imaginemos que sábios, daqui a milênios, encontrem, entre vestígios de antiga civilização, a sentença de Rubens Casara, da 43ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro. Casara absolveu um homem, preso em flagrante, que mantia em sua casa plantio da erva da qual se extrai a maconha.
 
Outros milênios a partir daí correrão para que os sábios do futuro expliquem esse fragmento de estranha civilização. Porque descobrirão que havia duas drogas muito populares.
 
Uma era depressora do Sistema Nervoso Central, agindo ainda sobre fígado, coração, vasos e parede do estômago. Com o aumento da concentração da droga no organismo a pessoa apresentava diminuição da resposta aos estímulos, fala pastosa, dificuldade para andar. Em concentrações mais altas o indivíduo entrava em coma e podia morrer. Dependendo da quantidade ingerida, os efeitos em geral eram diminuição da capacidade de discernimento, entorpecimento fisiológico, redução da capacidade de tomar decisões racionais, ansiedade, depressão, parada respiratória e morte. Entre os consumidores dessa droga, cerca de 11% se tornavam dependentes. Estava claramente associada a doenças graves, como câncer, cirrose hepática, etc.
 
Outra provocava euforia, sonolência, perda de noção do tempo e espaço, perda de coordenação motora, de equilíbrio, taquicardia, perda temporária de inteligência. Tal como a outra, provocava dependência em aproximadamente 11% dos usuários e estava associada a doenças graves, câncer, problemas respiratórios, etc.
 
A primeira droga era lícita, estimulada pelo meio social, propagandeada nos órgãos de comunicação, tinha experts com grande prestígio internacional, admirados pela técnica e refinamento de seus saberes.
 
A segunda era ilícita. Quem usava ou comercializava podia ter sua vida, ou parte dela, destruída pelo Estado, que sobre eles fazia desabar toda a sua feroz capacidade repressiva. Em todo o mundo, milhares de pessoas eram presas pelo seu uso ou comercialização. O comércio ilegal gerava uma rede de delinquência, e por vezes organizações poderosas, praticamente subestados, nas quais tudo se podia, toda sorte de violências, assassinatos, torturas. Recursos imensos eram desperdiçados pelos Estados para combater essa droga, drenando riqueza que poderia ser usada para melhorar a condição de vida das pessoas que, lembrarão os sábios do futuro, viviam em estruturas sociais iníquas, em que pouquíssimos concentravam praticamente toda riqueza e bilhões viviam as agruras da fome e de uma vida miserável e sem esperança.
 
Competirá em vão aos sábios do futuro explicar essa loucura social. Muitas torpezas e muita estupidez histórica podem ter uma lógica interna, absolutamente insustentável do ponto de vista moral, mas uma explicação. Pode ser deslindada, por exemplo, a estupidez de queimar mulheres como bruxas na Idade Média como manutenção e reprodução da estrutura de poder da Igreja Católica. Podem ser deslindados os motivos asquerosos pelos quais judeus foram massacrados ao longo da História.  Mas no caso das duas drogas cujos efeitos descrevi, a primeira o álcool, a segunda a maconha, os sábios do futuro poderão concluir que os vestígios desta estranha civilização indicavam que foi o tempo da mera esquizofrenia social, ou seja, ausência de racionalidade que decorre da dissociação com o real.
 
A sentença do juiz Rubens Casara é antológica porque em poucas palavras, com uma clareza solar, de um lado faz emergir todos os problemas filosóficos, sociais, morais e jurídicos que dizem respeito à questão das drogas, e de outro o respeito a garantias e direitos fundamentais.
 
A droga é uma questão de saúde pública, não de polícia. Punir um adicto ou impor qualquer sanção ou restrição de direito a ele é o mesmo que punir quem sofre de, digamos, enxaqueca. A adição é doença. E quem consegue usar recreativamente maconha ou qualquer outra droga sem se tornar adicto deve ser tratado como   todos nós outros que ingerimos álcool social e recreativamente.
 
O uso é uma decisão do indivíduo. Sendo uma decisão do indivíduo, a licitude de sua obtenção deve ser, por inexorável decorrência lógica, admitida, com o que milhares de pessoas deixarão de ter suas vidas destruídas pelo envolvimento com a proibição indevidamente decretada pelo Estado. E estas pessoas são, quase sempre, os pequenos, homens e mulheres pobres sem qualquer esperança de uma vida melhor que, por isso, se arriscam a perder parte de suas vidas em cadeias ou, às vezes, a própria vida.
 
Afora esses aspectos mais gerais, filosóficos, a sentença do juiz Casara demole práticas perversas da persecução penal às drogas. Por exemplo, a associação automática, a priori, entre quantidade e tráfico. A decisão faz prevalecer a presunção de inocência, que inexiste em regra na prática policial e judiciária nesses casos. Examinando as provas com lógica implacável, conclui que as mudas, não obstante a quantidade, somente poderiam ser para uso próprio. Na esmagadora maioria dos casos policiais, promotores e juízes agem como se houvesse um software em suas mentes. Quantidade x, enter, condenação por tráfico. No julgamento em curso no STF um ministro chegou a propor a exata quantidade de droga que seria suficiente para caracterizar o tráfico. Sim, isto facilitaria muito. Juízes não precisariam mais usar a faculdade de raciocinar e colher provas e também dispensar esse chato princípio da presunção de inocência.
 
Ressalto, por fim, a parte final da fundamentação do juiz Casara porque vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.   Tudo que precisa ser dito sobre esse aspecto nela está: “ ... viola o princípio da proporcionalidade punir com pena privativa de liberdade um indivíduo que, para fugir dos riscos gerados tanto pela ‘indústria da ilegalidade’ quanto pela opção política que aposta no modelo bélico de enfrentamento de um problema que é, na realidade, de saúde pública, opta por cultivar a substância que pretende usar”.
 
Os sábios do futuro ficarão perplexos com esta civilização ensandecida, mas uma coisa não poderão deixar de dizer:  investigando os vestígios de uma estranha civilização, havia numa cidade chamada Rio de Janeiro um juiz.

*Marcio Sotelo Felippe é advogado e jurista. Exerceu o cargo de procurador geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Imaginários em tela, discursos em circulação

Que horas ela volta?: Com medo de Jéssica

Há quem ache Jéssica arrogante e há quem ache maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.


Léa Maria Aarão Reis
Boletim Carta Maior
 
reprodução
O filme de Anna Muylaert mobiliza e provoca furor. Até a semana passada, 250 mil espectadores assistiram a saga da doméstica Val e da sua filha Jéssica.  Oitenta mil deles apenas num fim de semana. Isto faz Que Horas Ela Volta?  aprumar-se para chegar perto da bilheteria dos blockbusters americanos feitos de boçalidade e de músculos. Escolhido para representar o Brasil na competição de Oscar de melhor filme estrangeiro da edição de 2016, sua carreira reafirma o trabalho da cineasta paulista como autora de bons filmes: o premiado Durval Discos, É proibido fumar, Chamada a cobrar e, sobretudo, como corroteirista do excelente O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer.

Qual a explicação para o sucesso, para a explosão do filme da Anna – nos festivais estrangeiros e nas principais cidades do país -, além da narrativa relatada com talento, e de contar com a experiente atriz Regina Casé fazendo com brilho e garra a empregada doméstica nordestina que trabalha para a alta classe média paulistana? Uma personagem emblemática, mas tão ‘banal’ e pouco original?

Simples: com habilidade, Anna toca num nervo infeccionado, até então camuflado, da classe média brasileira. Seu filme expõe e escancara a hierarquização feroz das classes no Brasil dentro da intimidade dos grupos familiares. Uma situação inspirada na sua própria experiência, quando, em certa época, ela precisou contratar uma babá para ajudá-la a cuidar dos filhos então pequenos. Sem esse suporte não poderia continuar trabalhando por um bom tempo. Esta é a origem do roteiro que criou.

Da figura da babá, resquício da escravatura, à empregada doméstica modelo nacional, um outro entulho largado no caminho pela escravidão no país, foi um pequeno passo para expandir o argumento. Sem o trabalho das outras milhares  de  Vals existentes neste país, sejam elas babás, diaristas ou moradoras em um quarto infecto, na casa dos patrões, a família burguesa brasileira emperra e não funciona. A dependência dos patrões é absoluta - até para o mínimo gesto de levantar da cadeira e ir à geladeira para se servir de um copo de água. É isto que Anna mostra serenamente, com simplicidade. E a dependência estampada no espelho que é a telona deixa a plateia burguesa nervosa.

Não surpreende que algumas mulheres, nas sessões de cinemas de zonas ditas nobres das grandes cidades, cheguem a se levantar, revoltadas, para ir embora, como já ocorreu, no meio da exibição.

Mas Muylaert vai além e introduz outro elemento definitivamente perturbador na história: a filha Jéssica, que, pequena, foi deixada pela mãe no Nordeste quando Val parte para trabalhar e sobreviver como doméstica em São Paulo. Agora, já mocinha, Jéssica chega para prestar vestibular para a faculdade de Arquitetura (escândalo!) na capital paulista e é hospedada na opulenta casa dos patrões, no quartinho minúsculo e abafado onde vive sua mãe. “Uma casa meio modernista!”, se deslumbra a futura arquiteta quando percorre a mansão. Ao chegar, a menina “subverte todas as regras”, como observa a cineasta.

Acaba instalada no confortável quarto de hóspedes para desespero da patroa, mergulha na piscina na companhia do filho da casa, também ele um vestibulando, e, a transgressão mais grave: come o sorvete da marca fina e cara, mas destinada aos patrões. O sorvete barato é reservado aos empregados.

Camila Márdila, de 26 anos, vinda de Tabatinga, na periferia de Brasília, é a jovem atriz que defende bem o personagem da filha de Val neste que é o seu segundo filme.

Com a a introdução – ou intromissão – no universo burguês, Jéssica desequilibra a ‘harmonia’ da casa, expõe o nervo podre disfarçado e estabelece uma nova equação familiar como ocorre no célebre filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini. “Na cabeça dela,” acrescenta Muylaert, “aquelas regras não significam nada. Mas há quem ache Jéssica arrogante e há quem ache maravilhosa. Dependendo do que você acha da Jéssica fica claro em quem você vota.”

Bingo para Muylaert. Jéssica representa o Brasil novo que começou a ser parido há 12 anos por um governo progressista. Jéssica é a mudança, é o país em que porteiro embarca no avião e senta ao lado da madama no aeroporto. E madama agora é obrigada a cumprir a PEC 72 em vias de entrar em vigor na sua integralidade, e pagar direitos trabalhistas às mulheres que nunca mais serão semiescravas.

Jéssica é o Brasil que, obsessivamente, mesmo sem ainda plena consciência do fato, procura dirimir as diferenças de classe para se tornar um lugar mais igualitário, menos injusto e hipócrita. Mais do que raiva, ódio e menosprezo, os que se encontram instalados no topo da pirâmide sentem é medo de Jéssica. Ela é o ‘anjo’ do Teorema, de Pasolini, que vem anunciar os tempos e os arranjos novos. Um alerta para o início do fim da era da submissão.

O recado do Que Horas ela Volta? é singelo e firme apesar do seu final entreaberto: para a frente nada será como antes. Aconteça o que tiver que suceder, convém lembrar-se do clichê que, no caso, aqui cai como uma luva. A pasta de dentes que saiu do tubo nunca mais caberá dentro dele.