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Subúrbio de Milwaukee, em Wisconsin, na região nordeste dos Estados Unidos
No dia 5 de maio de 2011 o New York Times anunciava, sob a manchete
“The Tupperware Party Moves to Social Media”, a decisão da tradicional
marca de vasilhames de explorar as novas redes sociais como estratégia
de marketing e vendas. O anúncio provavelmente teria passado
despercebido, mas o fato de trazer, no mesmo enunciado, dois universos
de convivência tão desconectados no tempo e no espaço me pareceu irônico
e, por isso mesmo, merecedor de uma reflexão. Uma reflexão em torno das
relações de proximidade estabelecidas nessas novas redes sociais
juntamente com um produto ou marca que, a seu tempo, se tornou símbolo
de um modelo de vizinhança paradigmático que teria uma grande influência
na conformação ainda pouco amadurecida das cidades brasileiras: o
subúrbio norte-americano.
Em 1947, Earl Silas Tupper, inventor e químico da DuPont, desenvolveu
um sistema de vedação à prova de ar e água, derramamento e deterioração,
que seria usado para o armazenamento de comida. A sua invenção,
batizada de “Tupper Seal”, passou a ser aplicada a uma linha de
vasilhames de polietileno produzida pela empresa nos anos anteriores. Os
Tupperware, assim batizados, logo viriam a se tornar um símbolo
do american way of life dos anos 50.
O lançamento desse produto no mercado coincidiu com um cenário
pós-guerra, pré-feminista e de afirmação dos subúrbios como um modelo de
vizinhança, aprovado por grande parte da população norte-americana, que
abandonou os centros urbanos em troca da promessa de um ambiente
adequado ao cotidiano da família, livre da indesejada convivência com
grupos ou indivíduos que não se encaixavam no perfil de normalidade
estabelecido pela sociedade.
Os pioneiros Tupperware tiveram uma curta temporada de vendas nos
grandes magazines norte-americanos antes de serem retirados do mercado
para poderem ser adquiridos apenas em encontros organizados entre as
donas de casa de uma mesma comunidade: as Tupperware Parties.
Brownie Wise, uma mãe divorciada vinda do interior e com um estilo de
vida um pouco distante do ideal feminino da mulher norte-americana dos
anos 50, foi a responsável pela criação da estratégia de marketing da
marca, que alcançaria cifras de centenas de milhões de dólares por ano.
Tudo começou com um telefonema à fábrica, no qual a senhora Wise – que
costumava vender eletrodomésticos, panelas e vassouras em casa –,
irritada com o atraso na entrega de suas encomendas, insistiu em
conversar pessoalmente com o Sr. Tupper, presidente da marca. Ao
perceber que a insolente reclamante era uma revendedora autônoma que,
sozinha, tinha alcançado vendas maiores do que qualquer um dos grandes
magazines, o senhor Tupper decidiu contratá-la para uma transformação no
modelo de comercialização dos seus produtos.
Ms. Wise iniciou então o seu projeto de recrutamento de colaboradoras. A
oportunidade de se ter renda própria, trabalhando em casa e com um
horário flexível que não prejudicasse as funções de mãe e esposa foi
suficientemente atrativa para conquistar adeptas de todo país. Em pouco
tempo, Ms. Wise liderou um crescente exército de vendedoras sustentado
por uma rede de cooperação e vizinhança, distinta do competitivo e
agressivo marketing associado ao tradicional modelo masculino de
negócios. Logo, as Tupperware Parties tomam conta dos subúrbios. Nas
animadas tardes só para mulheres, entre receitas, drinks e dicas de como
armazenar melhor o jantar do marido, muitas encontraram uma boa
remuneração, fato que configurou, segundo estudiosos, o princípio de uma
autonomia feminina no mercado de trabalho.
Alguns anos mais tarde, esse mesmo projeto não ofereceu entusiasmo ao
movimento feminista, então latente. Muitas mulheres entenderam que tal
modelo de trabalho reforçava estereótipos femininos suburbanos, por
representar uma espécie de desvio do propósito que buscava igualar as
condições e oportunidades do trabalho feminino às dos homens. Além
disso, as feministas argumentaram que a exploração econômica das redes
de vizinhança e família era extremamente destrutiva, uma vez que se
sustentam pela comercialização das relações afetivas.
Mas o incremento das vendas a níveis que escapavam à compreensão dos
executivos formados nas business schools fez com que o sucesso alcançado
pela Srta. Wise confrontasse a precária situação feminina no mundo dos
negócios na época. Em 1954, ela se tornou a primeira mulher a aparecer
na capa da Business Week Magazine. Com seu Cadilac pink e os seus
característicos vestidos de renda, Wise era a personificação do sonho de
liberdade de grande parte das mulheres norte-americanas.
Ela foi demitida do cargo em 1958, aparentemente devido à puritana
desaprovação do Sr. Tupper ao seu estilo de vida independente. Mas a
estrutura operacional criada por ela já tinha autonomia e começava a se
espalhar para outros continentes.
As Tupperware Parties tornaram-se bastante populares no mundo todo,
assim como o modelo de expansão dos subúrbios, ambiente que parece ter
sido perfeito para a organização dessas festas. Em 1963, a empresa
chegou à Europa, Japão e Austrália. No Brasil, as primeirasTupperware
Parties datam dos anos 70, época em que também apareceram por aqui os
primeiros condomínios horizontais fechados. O AlphaVille Residencial,
ícone pioneiro dessa tipologia, foi lançado em 1975.
Os subúrbios norte-americanos surgiram nos anos do pós-guerra,
alavancados por um movimento de revisão dos valores e da família e por
um déficit habitacional que, a princípio, foi associado às novas
famílias formadas pelos jovens veteranos da guerra. A partir de então, a
população norte-americana testemunhou uma mudança significativa no
conceito de moradia e vizinhança. A crescente demanda por moradia,
juntamente com as políticas públicas de incentivo ao mercado imobiliário
suburbano, aceleraram a indústria da pré-fabricação e impulsionaram a
rápida expansão e afirmação dos subúrbios. A produção em série de
subúrbios como Levittown e Park Forest redefiniram os antigos modelos de
espaço público com a nova estética da pré-fabricação e da propriedade
privada inserida num espaço coletivo contínuo. Em Lewittown, as taxas de
produção alcançaram 30 casas por dia em julho de 1948.
Como um modelo de moradia e convivência sem precedentes na história das
cidades, o empreendimento suburbano encontrou suporte numa ideologia
política e estética associada a conceitos de eficiência e assepsia, não
somente no planejamento espacial, como também no plano social. Os
subúrbios parecem ter sido especialmente desenhados para a típica
família branca de classe média norte-americana. Grupos sociais fora
desse perfil não encontrariam as mesmas facilidades ou qualquer tipo de
identificação. Os modelos das casas propostos pelo Federal Housing
Administration apresentavam uma tipologia única e segregadora, de
arquitetura exclusivamente voltada para as famílias nucleares, razão
pela qual eram excluídos grupos sociais como os solteiros, casais sem
filhos e idosos. Já os mecanismos de controle étnico dos subúrbios eram
menos discretos. Em Levittown, uma cláusula contratual restritiva
estipulava que as casas somente poderiam ser vendidas ou alugadas para
“membros da raça caucasiana”.
Entre os equipamentos que compunham o convidativo conjunto dos
subúrbios estavam as novas escolas públicas aclamadas nacionalmente, a
facilidade de conexão com a cidade por um eficiente sistema de trens e
railways, os modernos centros comerciais, os playgrounds, igrejas e
sinagogas, dispostas sobre os intermináveis jardins coletivos.
Somados à sedução dos baixos impostos, esses fatores configuravam um
cenário atrativo o suficiente para justificar a adesão de milhões de
famílias norte-americanas nos anos 1950. No entanto, por trás dessa
aparente liberdade de escolha, os baixos juros cobrados no financiamento
das casas suburbanas e as hipotecas garantidas pelo governo atestavam
que o sucesso da empreitada era patrocinado por um projeto político que
almejava a liberação das cidades para a implementação dos projetos
federais de renovação urbana.
No Brasil, o modelo de expansão periférica das cidades que mais se
aproxima dos subúrbios norte-americanos são os já citados condomínios
horizontais fechados. Mas, nesse contexto de transposição, há que se
considerar o frágil equilíbrio das nossas cidades, assoladas por um
conflito social muito mais dramático do que o das cidades
norte-americanas.
O conflito vivenciado no Brasil faz com que as palavras violência e
segurança funcionem como passe de mágica na construção das arquiteturas
mais contraditórias de que se tem notícia. Em essência, os nossos
condomínios fechados, “enclaves fortificados”, definem relações de
vizinhança bastante diversas do seu modelo de inspiração. Os moradores
dos subúrbios norte-americanos compartilham um sentimento coletivo de
pertencimento a um grupo social coeso e aparentemente bem integrado,
sentimento este que justifica críticas: a aparente monotonia dos padrões
e comportamentos dos seus integrantes.
No caso brasileiro, a migração das classes média e alta para os
condomínios fechados, em porcentagens muito inferiores, foi motivada
principalmente pela busca da segurança prometida pelos muros
fortificados. Muitos desses condomínios trazem também a proposta de um
isolamento campestre, que garante, no seu projeto de urbanização
paisagística, o equivalente aos metros quadrados de jardim coletivo
suburbano sob a forma de coeficiente em área de preservação da vegetação
nativa.
Mas a lógica do isolamento fortificado não se limitou apenas aos
condomínios periféricos. Podemos verificar, com lamentável frequência, o
mesmo princípio de segregação aplicado aos edifícios particulares que
inevitavelmente colaboram com a conformação do espaço público das nossas
cidades. Dessa maneira, estabelecem-se os princípios de convivência
contraditórios que caracterizam as cidades brasileiras e que têm como
principal consequência a deterioração qualitativa do espaço das cidades
como local de convivência e trocas.
E é nessa esfera das convivências e trocas que o deslocamento
dasTupperware Parties para as redes sociais inspira uma reflexão sobre o
novo ambiente de vizinhança surgido quase meio século depois da
exportação endêmica do modelo suburbano. As redes de convivência no
facebook se consolidam sob o argumento promissor de uma cartografia que
eliminaria as limitações espaciais e reconfiguraria o território virtual
segundo critérios democráticos de afinidades que poderiam ser
confortavelmente operados pelo usuário, construtor do seu espaço
público. Trata-se, obviamente, de uma categoria bastante particular de
espaço público, cuja grande conquista parece ter sido a exclusão do
corpo físico e de todas as limitações a ele associadas. Essa exclusão
permite estabelecer os novos parâmetros de proximidade e vizinhança.
Diante da metáfora do espaço público aplicada ao espaço virtual seria
possível dizer, também metaforicamente, que aos usuários das redes
sociais cabe o papel de articuladores de seu próprio espaço público. As
ferramentas disponibilizadas pelo sistema permitem selecionar o perfil
dos frequentadores do seu círculo de amizades, bem como erradicar da sua
porção particular de espaço público qualquer manifestação que não
esteja de acordo com os padrões estabelecidos pelo administrador. Esse
movimento constante de construção e manutenção do espaço de convivência
em seu estado ideal reproduz, ainda que remotamente, as ações dos
urbanistas ortodoxos dos subúrbios e dos enclaves condominiais em seu
esforço de ordenação asséptica do território.
Nem os subúrbios e condomínios, nem as inovadoras redes sociais se
aproximam do que há de mais instigante no modelo de vizinhança
aparentemente caótico das cidades reais: o privilégio do encontro com o
outro. Um outro que é em essência diferente de mim, e que me confronta
regularmente com uma demanda de reposicionamento, adaptação e afirmação
diante do coletivo. Nos dias de hoje, com todos os avanços das
telecomunicações, que permitem modos de vida, trabalho e relacionamento
desvinculados da condição de proximidade física, viver na cidade deveria
ser uma escolha. E, como em toda escolha, há que se entender o que está
em jogo antes de realizá-la. Viver na cidade significa conviver com o
outro, com a diversidade – e é sob esse paradigma que seus habitantes
deveriam optar ou não pelo modelo de moradia e vizinhança urbana.
Condomínios e facebook em coexistência com a metrópole contemporânea
poderiam configurar alternativas de vizinhanças diversas, possíveis
escapes para a intensidade da convivência urbana, e não o contrário. Não
se pode esperar da metrópole a garantia Tupperware de vedação contra
vizinhos incovenientes, e nem o acondicionamento perfeito dos seus
habitantes em recipientes separados e rotulados numa logística de
reconhecimento e identificação que vai um bocado além da cartela de
cores disponibilizada à clientela das Tupperware Parties.
Artigo originalmente publicado na Piseagrama, parceira editorial de Outras Palavras.
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