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domingo, 1 de novembro de 2015

Refugiados, mídia brasileira, povo brasileiro

Imagem de Brasil hospitaleiro 'não passa de um mito', diz pesquisador




Gustavo Barreto analisou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração nos últimos 200 anos e avalia que racismo contra estrangeiros é constante no país

Mesmo em meio a uma crise política e econômica, o Brasil já deu abrigo a mais de 2.000 refugiados sírios desde o começo da guerra no país. O número, divulgado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), revela que a abertura brasileira é maior do que a dos Estados Unidos (1.243) e até da Grécia (1.275), uma das portas de entrada na Europa, vinculando no mundo a imagem de um país hospitaleiro, onde todos os estrangeiros e imigrantes são bem-vindos.

"Isso não passa de um mito", assegura o pesquisador Gustavo Barreto, que defendeu recentemente uma tese sobre a percepção do estrangeiro pela imprensa brasileira. Após mergulhar em mais de 11 mil edições de jornais e revistas entre 1808 e 2015, ele concluiu que o racismo contra imigrantes, refugiados e estrangeiros é constante na imprensa brasileira, que emplaca a ideia de uma aceitação seletiva.

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Sérgio Vale / Secom

Acre é uma das principais portas de entrada para haitianos que desejam reconstruir a vida no Brasil



Os imigrantes não viram notícia da mesma maneira. “Se for um imigrante ‘aceitável’, como os europeus, ele vai aparecer em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for ‘aceitável’, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam. Uma leva de haitianos é considerada uma ‘invasão’ e a mesma leva de espanhóis é considerada um ‘movimento migratório’”, explica Barreto.

Na tese “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015”, Barreto analisou a cobertura do tema em jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Correio da Manhã, O País e Gazeta do Rio de Janeiro desde a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro até hoje. Algumas matérias encontradas por Barreto e a introdução da tese estão disponíveis no site Mídia Cidadã.



Opera Mundi: Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4 milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se devendo aos imigrantes. O Brasil é uma terra de imigração?

Gustavo Barreto: Eu diria que o país está em um meio termo. Terra de imigração são os Estados Unidos, a França, o Canadá, a Argentina. Nesses países, mesmo que se observe em alguns casos um direcionamento racial muito claro, a participação do imigrante na formação da sociedade é de duas a cinco vezes maior. Mas o Brasil é certamente um caso interessante, com diferentes povos interagindo quase que por acidente, diante da incoerência entre as políticas ao longo do tempo e dentro do país.

OM: “O Brasil está de braços abertos” para os refugiados, disse a presidente Dilma Rousseff em pronunciamento no último dia 7 de setembro. Qual é historicamente a visão do refugiado no Brasil? Com esta asserção do governo, você diria que existe uma inflexão importante?

GB: No Brasil, historicamente, o refugiado e o imigrante fugindo da guerra e da fome – caso de muitos europeus durante todo o século 19 e início do século 20 – são vistos como trabalhadores, recursos úteis para a economia. No entanto, somos responsáveis por algumas das políticas mais xenófobas e racistas já adotadas em qualquer país. Já no início da República, os governantes proibiram a entrada de “pretos” e “amarelos”, o que era mais ou menos um consenso no regime anterior. Depois, os gestores de Vargas deixavam claro que os negros “de fora” não deveriam se misturar com os negros brasileiros, o que se confirmava não só pelas declarações na imprensa como pela política adotada. Esse cenário nunca mudou totalmente nestes 200 anos que cobrem minha pesquisa. Existe uma política discricionária em relação à imigração, com algumas tentativas do governo federal, nos últimos 20 anos, de humanizar a questão do refúgio, por exemplo. Mas a lei voltada para os estrangeiros continua sendo uma lei aprovada durante a ditadura militar.
A visão do “Brasil de braços abertos” não me parece a mais adequada. Apesar de o governo federal adotar uma posição notoriamente divergente em relação a muitos países do mundo – e isso produz uma enorme diferença no cotidiano dos refugiados do Brasil, sem dúvida –, e certamente distinta em relação a outros tempos históricos de xenofobia aberta, o refugiado hoje sequer é recebido pelas instituições sociais federais ou regionais. No aeroporto, ainda é a Polícia Federal [que o recebe]. Ao entrar – quando consegue –, ele é recebido pela Igreja Católica ou por ONGs. Na prática, o governo empurra uma enorme responsabilidade para instituições que pouco podem diante de uma crise deste tamanho. Basta ver a situação das instituições receptoras de refugiados e de outros imigrantes em São Paulo. Apesar de o governo federal, em parceria com a ONU, dar algum apoio, a resposta ainda fica muito aquém do que deveria. E isso em um país que possui atualmente pouco mais de 8 mil refugiados, segundo os dados oficiais. Oito mil é o número aproximado de refugiados que entram pela Grécia [na Europa] todos os dias. É menos do que entra na Alemanha em algumas horas. Não temos condição de comparar, ainda.

Arquivo pessoal

O pesquisador Gustavo Barreto (esq.) estudou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração
Eu trocaria a imagem dos “braços abertos” pela imagem de alguém abrindo uma porta, de braços fechados, e permitindo a entrada dos refugiados. É uma ação humanitária louvável, mas está longe de serem os “braços abertos” anunciados.

OM: Como o imigrante vira notícia?

GB: Se for um imigrante “aceitável” – como os europeus ou alguns outros tidos como “brancos” (e a “branquitude” é social em alguns casos) –, [aparece na imprensa] em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for “aceitável”, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam ou de dois em dois mil – ou seja, reúna dois mil haitianos no mesmo lugar e eles viram, talvez, notícia. Dentro deste mecanismo, não é difícil entender porque uma leva de haitianos é considerada uma “invasão” e a mesma leva de espanhóis é considerada um “movimento migratório”.
Recentemente, uma prova de vestibular de uma importante universidade privada questionou seus candidatos sobre qual é o imigrante “de que o Brasil precisa”. O gabarito trará provavelmente a ideia de que imigrantes são bons para a economia, como descreveu Sayad, enquanto outros não são necessários, não se “precisa” deles. O mais lamentável, a meu ver, é a ideia de que o imigrante ainda leva consigo, mesmo passados 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o carimbo de trabalhador, de necessário ou desnecessário. Mesmo que a História nos ensine que migrar é uma necessidade tão básica quanto comer.


OM: Hoje, como está percebida a chegada dos sírios e dos haitianos, dois povos empurrados de seus países em um contexto de emergência?

GB: A reação é totalmente diferente, e isso não é nenhuma novidade. Como o número de haitianos é grande desde 2010, eu pude observar na minha tese o racismo aberto e amplo contra os haitianos, quase todos negros. Até mesmo o medo do ebola atingiu os haitianos, que sequer passam pela África na rota mais comum para o Brasil.
Com os sírios – e ao longo da história tem sido assim, segundo pude observar na tese –, o cenário muda um pouco. Agora mesmo, podemos observar dezenas de matérias na imprensa de solidariedade com o povo sírio. A guerra não é a única explicação, do contrário a simpatia se estenderia aos refugiados da República Democrática do Congo, de Angola ou do Mali, por exemplo. E o que observamos é uma cobertura notoriamente negativa, quando haviam apenas angolanos e liberianos para mostrar. A cobertura sobre os angolanos nos anos 1990 os destacava como traficantes ou pequenos contraventores, marginalizados que estavam em bairros e favelas da periferia do Rio como o Complexo da Maré.
O que mudou, então? Os sírios, a meu ver, são mais palatáveis. E nos anos 1930, durante uma crise parecida no Oriente Médio, a mídia foi decisiva para eleger quais árabes eram aceitáveis e quais não eram. Em 1934, os assírios passaram em poucos meses de campanha midiática de “árabes cristãos” a “refugiados muçulmanos”. Depende da forma como você constrói. E a visibilidade positiva que você, enquanto editor, decide dar a cada povo. E isso está acontecendo hoje tal como há 200 anos vem acontecendo.


OM: Houve uma preocupação com o embranquecimento da sociedade brasileira?

GB: O tempo todo. Esta é uma dinâmica que corta toda a sociedade brasileira até os dias de hoje. O desejo de se europeizar permanece no discurso público, mesclado agora com a hegemonia norte-americana. Isso era claro durante todo o século 19 por meio de políticas públicas e discursos abertos; mais ou menos evidente durante a Primeira República; envergonhado, porém fortemente persistente durante o período Vargas; e envergonhado e persistente durante o pós-Segunda Guerra Mundial. Conforme destaquei anteriormente, a cobertura de imprensa ainda nos dá pistas concretas acerca da ideologia do embranquecimento. Mas é preciso, agora, avaliar o dito pelo não dito – certamente uma nova forma de perpetuar o racismo, mas ainda muito presente e ainda muito eficaz.

Reprodução Facebook

Refugiados durante
curso de adaptação gratuito oferecido pela USP com aulas gratuitas de geografia do Brasil


OM: Como é vista a imigração “natural”, a dos vizinhos?

GB: Igualmente problemática, porém mais antiga e, portanto, mais acomodada. A boa relação com os países do Mercosul ajuda bastante, mas há casos em que os estigmas que estão escondidos no cotidiano do brasileiro ressurgem a partir de matérias sensacionalistas da imprensa. Casos de crimes cometidos por estrangeiros, por exemplo, costumam ser ressaltados de modo que um país – e seus respectivos nacionais, portanto – passa a ser “condenável” na imprensa. Pelo menos por um período, enquanto durar a repercussão de um caso.

OM: Do ponto de vista do vocabulário, qual é, na imprensa, a diferença no uso dos termos imigrante, estrangeiro e refugiado?

GB: Isso pode variar, claro, mas eu observei na minha tese que há gradações de aceitação. O refugiado é o menos aceito, historicamente, por carregar o peso das guerras. Um dos principais autores que eu consultei, Abdelmalek Sayad, constata por exemplo que muitos dos imigrantes são obrigados a carregar o seu país nas costas. E com a evidência de uma guerra ou um conflito civil, o refugiado é o mais “pesado”.
O imigrante, por outro lado, é a incógnita. A questão acaba sendo essa: ao ser tornado uma incógnita, ele não é nem um cidadão de seu país, nem um cidadão nacional. Deixá-lo nesse limbo permite, por exemplo, que muitos governos expulsem imigrantes assim que estes se tornem não mais “desejáveis”, e a aceitação dele pode variar de acordo com fatores culturais ou econômicos.
O estrangeiro, por outro lado, é o “turista” do qual fala Zygmunt Bauman. A sua principal característica é a mobilidade. Ao contrário do imigrante, que é obrigado a se enraizar em um único lugar devido às dificuldades financeiras e políticas, o estrangeiro transita pelo mundo sem se preocupar com sua raiz. Ele pode se deslocar quando bem entender, e isso o diferencia inclusive do próprio nacional que nunca terá condições de se desterritorializar.

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Assistir a filmes com histórias tocantes ajuda a gerar compaixão no mundo real, dizem pesquisadores

ONU: Mais de meio milhão de refugiados e imigrantes chegou à Grécia pelo mar em 2015

USP oferece curso de adaptação com aulas gratuitas de geografia do Brasil para refugiados

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OM: Esses “papéis” podem ser trocados?

GB: Claro, o refugiado pode ser visto, arrisco, como um “coitado” que deve ser acolhido, enquanto o imigrante pode tomar o lugar do “aproveitador”, que quer apenas enriquecer e roubar os recursos do país. Estes são discursos bastante comuns durante toda a história do Brasil e foram feitos contra os judeus e alguns grupos de árabes, por exemplo, durante todo o início do século 20. O que todos estes discursos e conceitos promoveram, ao longo desse período? A desumanização daquela pessoa que está por trás do imigrante, do refugiado, do estrangeiro. Era uma forma de dizer claramente, seja para qual efeito fosse: você é o outro. Não somos iguais. Não é à toa que, conforme descrevo na tese, pelo menos 12 campos de concentração de estrangeiros foram identificados durante os anos 1930 e 1940. Não eram, certamente, os mesmos que se viam na Europa naquele momento. Mas a gênese e, inclusive, os grupos, eram os mesmos.

Luiz Carlos Erbes/ Câmara Municipal de Caxias do Sul

Ganenses que vieram para a Copa do Mundo em 2014 e pediram refúgio ao Brasil recebem orientação



OM: Como é percebido o estatuto do escravo, que foi um imigrante forçado?

GB: O escravo nunca foi reconhecido oficialmente como tal até o início da década de 2000. Até mesmo as Nações Unidas demoraram em reconhecer a escravidão como um crime contra a Humanidade, o que exige um processo de reparação e conciliação. Para que não se tenha dúvida de que o negro era nocivo ao futuro do Brasil, os republicanos do fim do século 19 legislaram para que fosse proibido subsidiar a entrada de imigrantes negros. A tese conta um caso curioso de um projeto de lei que tentou trazer negros livres para o Brasil na década de 1850, com recursos públicos. Não passou, evidentemente, mas isso demonstra um pouco a força que tem a figura do imigrante como trabalhador – o imigrante trabalhador é praticamente um pleonasmo na História da imprensa brasileira que pesquisei. E o negro era um “bom” trabalhador, desde que fosse colocado em seu lugar, de subalternidade.
A luta do negro para se tornar cidadão é tão atrasada que, eu arrisco, ainda está longe de chegar a um patamar aceitável de inclusão. As profissões similares ocupadas por escravos durante o século 19, como amas de leite e carregador, ainda são ocupadas por uma imensa maioria de negros. E isso tem a ver com o status do negro – e aí incluímos os haitianos, os malineses, os congoleses, etc – de subalternidade que é imposto na imprensa brasileira ao longo desses anos. Isso mudou? Não sei. Pela minha área de atuação, que é restrita aos imigrantes na imprensa, não muito.


OM: Diferentes comunidades costumam ser percebidas de maneiras diferentes: "os japoneses são trabalhadores", por exemplo. Existem muitos estereótipos?

GB: Os estereótipos são percebidos em toda a história da imigração relatada pela imprensa. Há dezenas de exemplos na tese e no site da tese. Eles mudam, é claro, de acordo com os ventos políticos. Há diversas entradas possíveis: ideológicas, sociais, culturais, religiosas. Depende dos objetivos de cada grupo político. Houve, como afirmei, quem defendesse o negro como trabalhador em plena década de 1850, enquanto outros trabalhadores – como os judeus e os árabes em alguns momentos no início do século 20 – foram tidos como “aproveitadores” por basearem toda a sua renda no comércio, que supostamente não “produzia” efetivamente nada. No fundo, os estereótipos cumprem uma função política. Uma vez alcançados os objetivos políticos, muitos dos estereótipos eram deixados de lado, substituídos pelo “humanismo” da “hospitalidade” brasileira – outro recurso usado na esmagadora maioria das vezes apenas com um propósito político. Incluindo o de expulsar algumas etnias.


OM: Houve épocas em que o imigrante era mais bem visto ou, ao contrário, mais rechaçado? Já houve a tentação de fechar as fronteiras?

GB: Não há nenhum período político brasileiro em que não houvesse a tentativa – muitas vezes bem-sucedida – de “fechar as fronteiras”. Todos – inclusive o atual. Essa tentação dá o tom do “diálogo” em torno da imigração. Mais recentemente, por exemplo, quando a imprensa relatou uma suspeita de ebola de um guineense no sul do país, milhares de comentários pelo fechamento das fronteiras foram repetidos nos portais de informação e pelas redes sociais, mesmo que a Organização Mundial da Saúde alertasse que este não era um caminho razoável ou aceitável. E isso tem a ver não apenas com a ideologia das pessoas, mas com a forma como a imprensa coloca o tema – conforme mostrei na tese. O sensacionalismo é um dos métodos para assustar as pessoas.
Em outros momentos, o imigrante por vezes era mais bem visto – o branco, católico, trabalhador – enquanto esse jogo poderia virar na geração seguinte – caso dos italianos “subersivos”, ou quando a Itália estava do “lado errado” da guerra. Há grupos, no entanto, que nunca tiveram uma aceitação ampla e irrestrita por parte da imprensa. É caso dos muçulmanos abertamente praticantes. E esse é um problema estrutural que persiste. Há, evidentemente, outros casos, como o dos paraguaios, dos bolivianos ou dos chineses. O estigma pesa muito mais do que em relação aos espanhóis ou os sírios, por exemplo.


OM: Qual é o impacto de eventos como o 11 de setembro ou ações do Estado Islâmico sobre a percepção do público brasileiro sobre árabes e muçulmanos?

GB: A imprensa passa a ideia, atualmente, que os atentados dos EI pesam sobretudo contra os cristãos, quando são os muçulmanos – qualquer um que se coloque contra o fundamentalismo e, portanto, uma imensa maioria de muçulmanos – as maiores vítimas. Não são os grandes eventos que formulam esse tipo de orientação, e sim a imprensa que, pouco a pouco, vai idealizando um cenário em que há atores facilmente identificáveis em um roteiro pré-moldado. Ao tentar “explicar” os acontecimentos de modo “simples”, a imprensa ainda continua ressuscitando velhos fantasmas de modo eletivo. É por isso que os rebeldes de maioria cristã da República Centro-Africana, que promovem atrocidades parecidas com as do Boko Haram, são muito menos conhecidos. Ou, em outro exemplo, é isso que faz com que os budistas sejam vistos no país como sinônimo de povo pacífico, mesmo que haja fundamentalistas extremamente violentos no sul da Ásia. Esses relatos não cabem na historinha contada na grande imprensa.

Lamia Oualalou / Opera Mundi

Salam é um dos refugiados que vive em ocupação de grupo de sem-teto no centro de São Paulo



OM: Existe um complexo de vira-lata em relação a alguns estrangeiros?

GB: Sem dúvida. Isso, no caso da tese, é percebido na forma elogiosa, quase que divina, que são relatadas algumas culturas europeias aqui estabelecidas. Isso nada tem a ver com a realidade, mas esse mecanismo tem a ver com a noção de que alguns povos são superiores a outros, o que tem sido combatido desde marcos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A minha real expectativa é de que essa diferenciação – pelo menos tal como se dava nos séculos anteriores – tende a enfraquecer.


OM: Como explicar a dificuldade encontrada para mudar o estatuto do estrangeiro, que data da época da ditadura?

GB: Trata-se de um misto de descaso com conservadorismo. Ainda impera, inclusive no discurso de esquerda – o que impressiona, pois trata-se evidentemente de um discurso da direita –, um nacionalismo que teima em segregar os nacionais e os estrangeiros, relegando os estrangeiros a eternos “outros”. Esse discurso não encontra base na realidade, mas persiste, de alguma forma. O descaso é coerente com a atenção que o tema recebe do público em geral. A questão imigrante parece um capítulo relegado ao esquecimento, uma nota de rodapé na história do Brasil. O assunto sempre retorna, mas como um detalhe, um apêndice.
A tese que prevaleceu é a tese conservadora do “caldeirão cultural”. Uma vez jogados todos num caldeirão, sairia uma raça melhorada, mistura da força do negro (ou sem o negro, de preferência) com a inteligência do europeu. Daí nasceria o brasileiro, o “diverso”, que é outra coisa, única. A ideia de que várias culturas poderiam conviver é pouco aceita, na prática: a diversidade tipicamente brasileira tem a ver com o fato de que todas as culturas deveriam sumir, produzindo o brasileiro miscigenado (porém brasileiro).
Dessa forma, mudar o estatuto de uma peça de segurança pública, como é atualmente, para uma legislação humanista e aberta à diversidade não encontra ampla aceitação na sociedade. Essa aceitação pode ser moldada e, novamente, os estereótipos certamente serão convidados a atuar politicamente em prol dos projetos em disputa. Essa é uma longa batalha e meu palpite é que, caso venha à tona, pode se tornar um grande debate nacional – o que, no cenário de ultraconservadorismo atual, pode ser um desastre. Analiso a cobertura da aprovação do estatuto em vigor, no início da década de 1980, e não me parece algo distante do que vivemos hoje.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Imaginário: objetos técnicos, objetos artísticos


Estética ou nostalgia? Formatos 'obsoletos' são suporte para obras de artistas e designers contemporâneos




Filmes Super-8, consoles de 8 bits, fitas cassete e VHS, câmeras Polaroid, celulares sem conexão com a internet e até televisores de tubo: formatos analógicos são material e linguagem, não um suporte acidental por coincidência no tempo
Jonathan Rubio / Flickr CC

Todos amam fitas cassete: até as caixinhas de plástico são suporte para a criatividade de músicos e designers saudosistas


Entre os fanzines, os livros e as ilustrações, o festival Gutterfest de edição independente, realizado em Barcelona no último mês de maio, guardava uma surpresa para os visitantes: em várias mesas, jovens que beiravam os vinte anos de idade vendiam fitas cassete de música. Havia capas desenhadas à mão, e a caixa de plástico estava camuflada sob uma sobrecapa de cartolina com um nó de fios de ráfia. Tecnologia obsoleta decorada com pré-tecnologia, artesanato da era pós-industrial. Sessões musicais confeccionadas escutando as canções com o dedo no botão de pausa: um acervo da era dos formatos abandonados.

“As limitações de uma geração convertem-se na estética da geração seguinte”, comenta Ed Halter, crítico e curador de arte eletrônica, no documentário “8-bit”. Na era do VHS, nossos programas gravados brilhavam em textura saturada e ondulada porque não havia outro jeito. Hoje a estética VHS se falseia voluntariamente com filtros de pós-produção que acrescentam ruído analógico e deformam a quadratura do pixel. Hoje a textura é uma opção e, portanto, uma declaração de intenções, uma afirmação sobre uma normalidade muito mais fiel e de melhor resolução. As limitações do passado formuladas no presente são uma estética disposta a enunciar, apropriar e ostentar. Um patrimônio, uma antologia, uma coleção dos restos do progresso tecnológico e da obsolescência programada – ruínas de civilizações desconhecidas que rebobinavam.

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“O emprego de tecnologias obsoletas ajuda a compreender melhor a distância entre a imagem e seu significado”, afirmou o artista Javier Arbizu, durante um debate sobre suas obras realizadas em filme fotográfico de 16 mm. A frase pode ser aplicada à lista de formatos que estão sendo recuperados: filmes de Super-8, fitas de 8 canais, consoles de 8 bits, fitas de VHS, câmeras Polaroid, celulares sem conexão com a internet, televisores de tubo. A criação de novas obras com formatos analógicos obsoletos estabelece o formato como material e como linguagem. Como um fator que se escolhe, não um suporte acidental por coincidência no tempo.
Julien Knez

O artista francês Julien Knez criou capas para fitas VHS de séries e filmes contemporâneos


Outro aspecto diferente tem a reformulação de elementos modernos sobre formatos do passado, que faz um salto temporal em que se misturam opções estéticas e o sentimento nostálgico. O fotógrafo Julien Knez criou uma página no Tumblr com versões de capas de VHS de filmes e séries contemporâneas, dando à novidade uma pátina de caminho trilhado. O projeto “8 bit map maker”, de Jay Bulgin, pega qualquer região no Google Maps e o converte em um cenário de videogame de 8 bits, pronto para colocar o personagem Super Mario nas calçadas do bairro.

Os jovens não têm nostalgia pelas inovações que já conheceram superadas e por isso suas desventuras com os aparelhos velhos revelam os fatores que continuam vigentes. A série do YouTube “Kids react!” [“A reação das crianças!”, em tradução livre] coloca adolescentes e pré-adolescentes diante de aparelhos cujo funcionamento deve  ser feito de forma intuitiva. Na frente de um telefone fixo, eles se assombram diante das dificuldades do disco giratório. Ao se depararem com um walkman, levam uma eternidade para imaginar que ele tem de ser aberto e descobrem horrorizados que as músicas vêm em fita cassete que têm de ser inseridas e que não é possível pular imediatamente para a próxima música. A canção é uma fita cassete física, o filme está numa fita tangível, fica um rastro físico das horas investidas. Cada experiência está associada a um objeto – o extremo oposto da volatilidade da era dos aparelhos sem fio.

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A virtualidade dos arquivos armazenados na nuvem, que permite o consumo sem rastros físicos, não eliminou a paixão pelo objeto. Na minha casa, por exemplo, de todos os aparelhos antigos que possuo, o único que chama a atenção das visitas é a máquina de fliperama. Todos os jogos que aparecem na tela gigante podem ser emulados nos aparelhos de bolso. Jogar com saltos e golpes, porém, constitui um ritual ancestral, uma recriação de tempos mais brutos com aventuras mais simples, uma dança que conecta gerações de videojogadores.

Obsolescência futurística
A fascinação digital por formatos analógicos também aponta em direção aos possíveis componentes obsoletos que formariam a estética do futuro. O artista britânico James Bridle está há cinco anos compilando os indícios em sua página no Tumblr New Aesthetics [Novas Estéticas, em tradução livre], onde surgem diálogos no Whatsapp, filtros do Instagram, os Captchas que nos identificam como humanos, as nuvens pixeladas de erros quando falha o sinal da rede – limitações de hoje que amanhã serão identidade.

“Tudo o que você jogou fora está na moda”, resumia um jornal mexicano sobre a recuperação de formatos analógicos na era digital. Alguns transcenderam até se converterem em puro signo: crianças de hoje que digitam com o celular perguntam aos pais que desenho é esse que aparece no botão de gravar. O ícone tecnológico do disquete de 3,5 polegadas ultrapassou o objeto e hoje se fantasia de forma imaterial, como um remanescente de outro tempo, assim como alguns médicos de hoje, muitos sem saber disso, incluem o olho de Horus nas receitas médicas como uma tradição milenar.
A recuperação analógica na era digital tem nostalgia dos contextos perdidos, mas também é uma afirmação da diferença. As boas ideias são para todos, porém as abandonadas são apenas nossas.

Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Imaginários são condicionados e condicionam

Medida de redução da velocidade em SP atinge "zeitgeist" do carro e das marginais

Há algo além do ódio político-partidário no verdadeiro “freak out” dos motoristas paulistanos e grande mídia contra a medida de redução a velocidades das marginais Tietê e Pinheiros em São Paulo. Parece que a Prefeitura atingiu o coração ideológico e imaginário das verdadeiras “pièce de résistance” do enclave conservador em que se tornou a cidade: o automóvel e as marginais. No automóvel, a representação da velocidade como o último símbolo de distinção e poder; e nas marginais, os tristes portais de entrada na cidade que representam uma modernidade fracassada na qual ainda os paulistanos nostalgicamente se agarram.

FREAK OUT!!! Talvez essa expressão em inglês  (alguma coisa entre “surtar”, “baratinar” ou “perder o bom senso”) seja a que melhor sintetize a reação de motoristas paulistanos com a determinação da prefeitura da cidade de São Paulo em reduzir a velocidade máxima nas vias expressas, centrais e locais das marginas dos rios Tietê e Pinheiros – de 90 km/h para 70km/h ou até 50 km/h dependendo do local.

Reações indignadas nas redes sociais postam vídeos com ciclistas ultrapassando automóveis nas marginais: “quando bicicletas terão placas e restrição de velocidade?”, protestam. Nas viciadas enquetes dos telejornais da grande mídia, selecionam comentários como “vai travar o trânsito”, “vai piorar o trânsito”, “vou perder tempo” e assim por diante – como se diariamente as principais vias da cidade já não estivessem costumeiramente travadas, obrigando motoristas a andarem a menos de 20 km/h.


E como determina o modus operandi atual do neoconservadorismo, exige-se o “retorno da ordem” por meio de ações judiciais: a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), seccional de São Paulo, entrou na Justiça contra a Prefeitura com uma petição com argumentos tão subjetivos como na ação contra a construção das ciclovias na cidade: “direito de transporte prejudicado”, “medida não proporcional” (?) ou “uma via que foi concebida para ser expressa não pode deixar de ser expressa”.

Se em todas as metrópoles do mundo civilizado é adotada o princípio de “acalmar o trânsito” como filosofia de engenharia de tráfego (redução de velocidade, estreitamento das vias, cobrança por pedágios para entrar nas regiões centrais como medidas para desestimular o transporte motorizado individual),  em São Paulo, ao contrário, essas medidas são tomadas como uma afronta (bolivariana?) ao inalienável direito individual.



Há algo nessa reação dos paulistanos que vai além do simples ódio político-partidário. Parece que a medida adotada pela Prefeitura diante do crescente número de acidentes e mortes nas pistas das marginais atinge o coração da ideologia e do imaginário da classe média paulistana: o automóvel, a pièce de résistance do verdadeiro enclave conservador em que se tornou a cidade.

O neodesenvolvimentismo dos governos petistas dos últimos dez anos já estava irritando o suficiente as classes médias, com o crescimento do crédito e incentivos fiscais resultando em aeroportos lotados, shoppings ameaçados por “rolezinhos” e a facilidade de aquisição de carros novos em concessionárias outrora somente frequentadas por pessoas “de posse”.

Mas, no caso da cidade de São Paulo, tudo ultrapassou os limites com essa medida de engenharia de tráfego: atingiu o próprio cerne do imaginário automobilístico, para além da propriedade – a velocidade, o fetiche de modernidade das classes médias. E também maculou as marginais Tietê e Pinheiros, verdadeiros símbolos de uma modernização fracassada, mas na qual ainda os paulistanos se agarram nostalgicamente.

O “zeitgeist” do automóvel


Um carro sedan com linhas arrojadas passa rápido por um rua vazia pelo Centro de São Paulo. O asfalto está molhado, refletindo e destacando ainda mais o brilho da aerodinâmica do veículo. Um motorista confiante e orgulhoso com rosto quadrado e másculo aprecia o prazer de guiar em ruas vazias. As imagens do carro transmitem estabilidade, segurança, rapidez e potencia.

Quantos comerciais de TV de lançamento de automóvel de uma marca qualquer, com um argumento parecido, o leitor já deve ter visto? Esse é a narrativa proto-arquetípica que promove não apenas o automóvel, mas o seu “zeitgeist”: a velocidade.



Mas não a velocidade tradicional – aquela que diminui a distância entre todos os pontos de partida e chegada. Mas a velocidade “dromológica”, o imperativo psicológico de consumir a velocidade apenas como um signo, já que no mundo real as vias estão congestionadas e as estradas monitoradas por radares.

O urbanista e pensador francês Paul Virilio chama esse tipo de velocidade de “dromológica” - um novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. O conceito vem do grego “dromo” (corrida), mas para Virilio é um tipo de velocidade paradoxalmente inercial porque é tomada como um fim em si mesma, como moralmente boa, significante do desejo, capacidade, superioridade, performance, inteligência e energia libidinal. Não é mais um meio para se chegar a algum fim, mas gozo em si mesma.

Com o colapso dos sistemas viários, o carro é consumido em sua virtualidade e potencialidade – símbolo fálico de potencia, virilidade e distinção. Potencialidade nunca realizada (onde acelerar de zero a cem em “x” segundos?), mas consumida como o grande AGORA! – desejo de urgência, imediatismo, ansiedade como algo moralmente bom.

Redução da velocidade como medida de uma política pública somente poderá ser percebida como uma afronta a um princípio sagrado numa sociedade de consumo onde se consome cada vez menos produtos e muito mais ideias e valores: não se trata mais de distinção de classe da propriedade do carro, mas da sobrevivência do mito da velocidade – sem isso, o carro reduz-se a sua materialidade e, por fim, a sua inutilidade.

A modernidade fracassada das marginais


Mas além do carro e o seu zeitgeist, há outro símbolo em jogo: as marginais Tietê e Pinheiros.

A retificação do rio Tietê na década de 1930 e o Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia e o rodoviarismo de uma cidade pensada em ser urbanizada a partir de perimetrais, radiais e marginais, transformam as vias expressas Tietê e Pinheiros nos símbolos de uma modernidade jamais realizada.

Play Center na Marginal Tietê nos anos 1970 - a nossa Disneylândia no símbolo da modernidade fracassada

Não é à toa que são os verdadeiros tristes portais de entrada para a cidade, desde uma época onde nas suas laterais começaram a surgir os primeiros hipermercados (ícones do american way of life), a inauguração do Playcenter (emulando uma Disneylândia para a nova classe média que nascia com o "milagre econômico" da ditadura militar) e toda uma infraestrutura para carros (motéis, modernos postos de gasolina, drive-throughs, drive-ins etc.).

Até o final do século passado, esse imaginário ainda persistia em setores das classes médias, visível com a promoção de festas de casamento em churrascarias à beira das marginais.

Rachas nas madrugadas com carros tunados na marginais com filhos dessa mesma classe média são ainda um dos ícones do simbolismo dessas chamadas “vias expressas” no imaginário social.

A inauguração com pompa e circunstância da ponte Otávio Frias (a chamada “Ponte Estaiada, verdadeira bomba sincromística – sobre isso clique aqui) ligando as margens do Rio Pinheiros e a sua transformação, juntamente com a Marginal Pinheiros, em cenário para o estúdio dos telejornais locais da TV Globo, demonstram o quanto ainda as marginais significam, mais de 50 anos depois do prefeito Prestes Maia. Isso sem falar que nas marginais também estão os prédios do jornal O Estado de São Paulo e da Editora Abril.

Marginal Pinheiros e Ponte Estaiada - a modernidade televisiva como farsa
Mas se no passado as modernidades das marginais foram uma tragédia (problemas ambientais da ocupação das várzeas e retificação de um rio de planície como o Tietê, poluição e deterioração urbana) hoje é vivido como farsa – chamar ainda de “via expressa” pistas saturadas e ainda, em nome disso, tentar reverter uma tendência global de renovação urbana.

Tudo isso talvez explique o verdadeiro freak out de muitos paulistanos: enquanto no Exterior medidas como essas da redução de velocidade são saudadas como civilizatórias, aqui são interpretadas como atos de regimes totalitários.
Se não, como ficariam os comerciais de TV de lançamentos de carros que patrocinam telejornais da TV Globo que figuram como cenário a Marginal Pinheiros com filas de carros parados ao vivo?

sábado, 23 de maio de 2015

Um imaginário regional como força identitária


Eles trabalham e admiram a 9ª Bienal do Mercosul Mateus Bruxel/Agencia RBS

A segurança Alessandra Rodrigues ao lado da obra Coisas em Pausa, da artista Tania Perez Cordova, na 9a. Bienal do Mercosul, POA, 2013. Foto: Mateus Bruxel / Agencia RBS, no Diário Gaúcho.

22/05/2015 - Copyleft

Cuidar do Mercosul é cuidar do Brasil e de seus parceiros regionais

O Mercosul vem ampliando uma agenda que transcende a dimensão econômica, envolvendo direitos humanos, institucionalidade democrática, educação e cultura.


Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) Mercosul
Com alarmante frequência têm surgido na mídia, no Congresso, em âmbitos empresariais e, mais recentemente, na voz de algumas autoridades governamentais opiniões favoráveis à “flexibilização” do Mercosul de modo a transformá-lo em mera área de livre comércio. Há ainda alguns que desejam a própria extinção do bloco.

Argumenta-se que o Mercosul é um “fracasso” e que a sua união aduaneira, ao exigir a formação de um consenso prévio na negociação conjunta de acordos comerciais extrabloco, impede maior participação dos Estados Partes nas cadeias produtivas globais e nos grandes fluxos comerciais internacionais. Segundo essa visão cética em relação ao Mercosul a “solução” seria o abandono da união aduaneira, para permitir que os países do bloco possam negociar livre e separadamente acordos de livre comércio com os EUA, a União Europeia, a China e outros global players.

Na opinião do GR-RI, tal visão é inteiramente equivocada e resulta de um crasso desconhecimento da dinâmica do Mercosul, das complexidades inerentes às negociações comerciais e da nova geoeconomia que vem se conformando em nível global.

O Mercosul não é um fracasso. Ao contrário, esse bloco, mesmo com suas conhecidas insuficiências e incompletudes, é claro êxito. O comércio intrabloco cresceu, nos últimos 15 anos, bem acima do crescimento do comércio mundial. Mais importante ainda, o comércio extra-bloco do Mercosul também aumentou acima do crescimento do comércio global, no mesmo período considerado. Portanto, a hipótese de que o Mercosul seria um fracasso e estaria impedindo maior participação dos Estados Partes nas cadeias produtivas globais simplesmente não tem base empírica.

Ressalte-se que o Mercosul, ao contrário do que afirmam seus críticos, não é um bloco autárquico. Na realidade o Mercosul, conforme determina o artigo 20 do Tratado de Assunção, é um bloco aberto à adesão de qualquer país da Associação Latino-americana de Integração (ALADI). O Mercosul já tem comércio com toda a América do Sul e, no campo extrarregional, negocia a intensificação de seus fluxos de comércio em condições justas para nossas economias. No caso da negociação com a União Europeia, por exemplo, os avanços emperram na sua Política Agrícola Comum (PAC) que obstaculiza a entrada dos produtos mais competitivos do Mercosul no mercado europeu.

A atuação do bloco em negociações de comércio é cercada, contudo, das cautelas e salvaguardas necessárias para evitar danos irreversíveis aos setores econômicos dos Estados Partes, particularmente as suas indústrias, já afetadas, em alguns casos, por um processo de desnacionalização que limita a capacidade de inovação tecnológica e de indução do desenvolvimento ao longo das cadeias produtivas.

Para o Brasil, em particular, o Mercosul e a integração regional propiciam, mesmo na atual crise, um mercado fundamental para nossa combalida indústria de transformação.

Além disso, o Mercosul vem ampliando uma agenda que transcende a dimensão econômico-comercial, envolvendo direitos humanos, institucionalidade democrática, educação e cultura. Vem fazendo lentos mas significativos progressos no que tange ao imprescindível enfrentamento das assimetrias regionais, à livre circulação de trabalhadores, à instituição de órgãos supranacionais e à construção de uma cidadania comum na região, objetivo maior do processo de integração. O Mercosul tem uma clara dimensão política que ultrapassa suas conquistas comerciais e econômicas para os países membros.

Para o Brasil e os demais Estados Partes, o Mercosul confere fundamental vantagem estratégica. A construção de sinergias econômicas e comerciais, baseada na união aduaneira, permite aos Membros do bloco negociar, em condições mais vantajosas das que seriam possíveis obter de forma isolada, sua inserção na globalização assimétrica. Tal vantagem estratégica é ainda mais acentuada, em contexto de crise econômica mundial, de ameaças ao regime multilateral de comércio e de acirramento dos embates comerciais.

Nesse contexto, o abandono da união aduaneira e a celebração célere e isolada de acordos de livre comércio com grandes potências econômicas, como querem os detratores do Mercosul, seria trágico erro. Lembre-se que, além das grandes assimetrias entre as partes, tais acordos contêm cláusulas relativas à propriedade intelectual, às compras governamentais e ao regime jurídico dos investimentos, que podem comprometer, em definitivo, o espaço para a construção de políticas industriais e de desenvolvimento tecnológico.

Assim, a extinção da união aduaneira e a celebração isolada e açodada de tratados de livre comércio poderia até agradar, no curto prazo, a alguns grupos econômicos internacionalizados, ou aqueles setores locais que desistiram de uma inserção mais qualificada na economia global, mas significaria golpe mortal para o desenvolvimento econômico futuro dos Estados Partes.

No entendimento do GR-RI, a solução para o Mercosul e seus Membros, nesse contexto de crise mundial e regional, não é menos integração, mas sim mais integração. Portanto, o processo de integração deve ser intensificado e acelerado, mediante a constituição de amplas cadeias produtivas regionais, o combate intenso às assimetrias entre os Estados Partes, o enfrentamento decidido dos problemas sociais do bloco e avanços definitivos e irreversíveis na construção da cidadania comum do Mercosul, sem prejuízo de negociações comerciais extrabloco que preservem, em seus resultados, a capacidade dos Membros de promover políticas de desenvolvimento, industriais e de inovação tecnológica.

Nesse sentido, o GR-RI apela a todas as forças progressistas dos Membros do Mercosul a que se oponham a essa tentativa de desintegração do bloco que é, em última instância, a desintegração de um futuro de desenvolvimento e de justiça social para as populações mercosulinas. E, neste momento, o Brasil tem uma responsabilidade especial por ocupar a Presidência Pro-Tempore do bloco.

Por último, o GR-RI demanda ao Ministério das Relações Exteriores a constituição urgente do prometido Conselho Nacional de Política Externa, de modo a que a sociedade civil brasileira possa participar ativamente do debate sobre o futuro do Mercosul e outros temas igualmente relevantes das relações internacionais do Brasil.

Brasil, 20 de maio de 2015.
brasilnomundo-logoGrupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)
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domingo, 19 de abril de 2015

História: o que é? quem faz?

Sobre as Missões, o que se sabe?
O que nos chegou pelos livros, pelas parcas notícias, pelos estereótipos...?

Este documentário, "Terra sem Males" [Yvy marã e'ỹ] , é simples, bonito, esclarecedor.
Sem pretensão de ser documento definitivo, mostra três viajantes de diferentes culturas em uma aventura de volta ao passado: pelas ruínas das Missões, palco de guerra - mas também de muita construção - entre índios e europeus, eles vão descobrindo não só uma certa história, mas também do que se faz a História.

Trailer:




Making off:



Para assistir à versão integral na TV Escola:

http://tvescola.mec.gov.br/tve/videoteca/videoteca/videoteca/videoteca/videoteca/videoteca/videoteca/video/chamada-terra-sem-males

domingo, 7 de dezembro de 2014

Imaginário, ethos discursivo e comunicação: como se constroi a "validade" de um voto?

A Conspiração dos Injustos

O voto de todos os cidadãos tem peso igual na urna; nela, nenhum eleitor é superior ao outro. Por que alguns candidatos agridem quem não votou neles?


Walquiria Domingues Leão Rego
Fonte: boletim Carta Maior 
 
reprodução
O título deste artigo foi emprestado do quadro do pintor argentino Antonio Berni, em exposição no Malba, o Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires

A força dessa pintura inspira pensar o Brasil dos dias que correm.

Em qualquer país considerado democrático, em que as instituições de controle do Estado de Direito Democrático funcionam, o respeito às regras eleitorais é um fator constitutivo e rotineiro da vida política e social.

Por suposto, resultados eleitorais assim escrutinados são democraticamente entendidos como manifestação da soberania popular.

As expectativas consensuais em torno desse axioma alicerçam um dos pilares fundamentais da democracia.  À negação desse princípio dá-se o nome de fraude, prática típica de toda a sorte de regime arbitrário, autocrático.

Se a diferença numérica dos votos entre eleitos e derrotados for grande ou pequena servirá apenas à reflexão da sociedade na tentativa -- sempre necessária -- de compreender seus sentimentos mais profundos, que interessam a todos os protagonistas de um certame político.

Não consta na prática de nenhuma democracia conferir aos vencidos, porque foram vencidos, o direito de insultar e agredir a cidadania que neles não votou, ou insistir, de forma recorrente, na desqualificação da escolha majoritária da sociedade.

Por que razão isto se impõe em uma democracia?

Por uma razão muito forte.

Porque a forma democrática e republicana sustenta a sua configuração fundamental em uma exigência mínima que pode ser assim resumida:  o voto de todos os cidadãos tem peso igual na urna; nela, nenhum eleitor é superior ao outro. 

A igualdade política básica, que afronta a desigualdade muitas vezes extremada na esfera econômica, sempre incomodou aos privilegiados. Os injustos, para recorrer a Berni, aqueles acostumados a não ter limites na presunção arrogante de sua superioridade, os mais informados, os mais dinâmicos, avocam-se os donos naturais da nação.

Essa suposta supremacia sente-se agredida diante da urna isonômica e, não raro, adversa.

O que temos assistido nos dias subsequentes às eleições presidenciais de outubro é a reiteração dessa anomalia. Repete-se o velho hábito em que as elites e a sua poderosa aliada, a mídia, repetem mais uma vez o velho hábito de agredir o voto que não lhes foi conferido.

São os “votos dos marmiteiros” , disse, sem peias, certa vez, um candidato a presidente da república.

Na urna presidencial de 2014, a parte majoritária do eleitorado, aquela formada por 54,5 milhões de brasileiros e brasileiras (51,64% do eleitorado) reelegeu Dilma Rousseff, contra os 48,36% que optaram por Aécio Neves. A escolha majoritária tem sido alvo da desqualificação ressentida dos derrotados e de seus fiéis emissários em tela e papel.

O conjunto dispensa ao voto da maioria a desconcertante sentença de  um subvoto, o voto dos desinformados, dos menos "dinâmicos" e, para que não haja dúvida de sua má procedência, o voto dos corruptos!

Uma presidenta recém-eleita por esse colégio carece de legitimidade, insinua-se ardilosamente.

Esse é o ponto a que chegamos. Ele convoca a sociedade a discernir o que é, afinal, a legitimidade em uma democracia, sob risco de se consumar a regressão da gramática política à algaravia esgrimida ad nauseam pelos golpistas grotescos e sombrios de 1948, por exemplo. A exemplo do que se insinua hoje, eles conseguiram cassar o direito de pertencer ao sistema democrático ao então muito popular partido comunista brasileiro, bem como ao partido socialista. "Ilegítimos."

Florestan Fernandes, em um dos textos mais agudos da sociologia política brasileira, de 1954, demonstrou o resultado dramático da operação levada a efeito, então.

As forças conservadoras irmanadas no seu tradicional consórcio de privilégios, sendo o econômico o mais evidente, magnificado, porém, pelo controle de todos os recursos de poder, em especial o comando da mídia e de parcelas do judiciário, usurparam à soberania popular a prerrogativa de modelar o acesso à vida política, reduzindo-o a mais um de seus privilégios.

O texto de Florestan Fernandes ressoa angustiante atualidade: foram cevados nesta operação, alerta, e vicejaram por anos a fio na vida brasileira, o descrédito na política e nos partidos e seu correspondente corrosivo, a indiferença e a apatia cívica.

O que quer a engrenagem em curso nos dias que correm? Mais uma vez retirar da cena pública partidos e eleitores inconvenientes? Desvertebrar a sociedade democrática em nome da democracia?

Constitutiva e emblemática dessa atmosfera carregada, a acusação recente do candidato derrotado, em entrevista à não menos funcional TV Globo, explicita aquilo que até então vinha dissimulado.

A linguagem, mais uma vez, é a do insulto, debocha-se dos eleitores.  O sotaque é o descompromisso com as regras da política democrática. Sem nenhum pejo, o candidato assegura que não perdeu a eleição para um partido, ou um projeto, mas, sim, para uma associação criminosa! Portanto, não houve derrota legítima. E se não houve, a vitória foi usurpada!

Onde estamos? Na fronteira do vale -udo.

Com que base de Direito um homem público se pronuncia nestes termos a respeito de um partido político que possui milhões de eleitores, tendo sido por quatro vezes sucessivas alçado democraticamente ao comanda da Nação? 

Na linguagem virulenta, preconcebida para o espaço reservado à manchete garrafal, está a resposta. O jogral afinado reflete uma concepção autocrática da política, a certeza do poder agir sem limites, do fazer e falar o que bem entende, protegido por fortes poderes que modulam e credenciam esse lançar mão impunemente do idioma do golpismo cínico e vulgar.

Criminaliza-se sem nenhum pudor. Sem a observância mínima da prudência e da cautela que qualquer homem público deve ter diante de processos em estágio de apuração, como o da Petrobrás.

O atropelo de uma cautela básica do pacto fundador de Estado de Direito emite uma advertência à sociedade.

Norberto Bobbio alertava que os violadores da justiça e da democracia gostam de falar em nome delas. São suas deusas preferidas, sua principal referência retórica.  Assim o fazem, dizia o filósofo italiano, para melhor golpeá-las.  A presunção é a mesma que motiva a escalada em curso no país. Os derrotados arvoram-se em detentores de uma delegação transcendente que os autorizaria a expropriar a prerrogativa da urna, monopolizando a atividade política para torna-la mais uma exclusividade da elite.

A roleta russa contra o coração do Estado de Direito precisa ser desarmada. Nunca o será pela última vez. Recordemos a potente lucidez de Raymundo Faoro, que vaticinou ser o Brasil um país cujo processo histórico estaria destinado a repetir uma sucessão de tempos e formas que não passam de recondicionamentos de outros tempos. Ontem como hoje ,a interdição da vida democrática sempre foi o repto do conservadorismo derrotado nas urnas. Ontem como hoje é preciso desautorizá-lo. Essa é uma tarefa intransferível dos partidos políticos comprometidos com a justiça social e a democracia. Cabe-lhes ampliar e reforçar a barragem contra a maleita golpista, avivando o discernimento histórico e a organização política indispensáveis a uma sociedade que reconhece no escrutínio democrático a bússola do seu destino.     

Créditos da foto: reprodução

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cultura, imaginários, discursivizações: aonde vai indo a mídia?

As polarizações não dão conta das mudanças de imaginário. Entrevista especial com Ivana Bentes

Fonte: IHU Online

“A primeira coisa que chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política”, afirma a pesquisadora.

Foto: www.brasilescola.com
Os discursos de que o Brasil está dividido pós-eleições presidenciais, por conta da diferença de 3% entre a presidente reeleita e o candidato de oposição, não explica a eleição de 2014, avalia Ivana Bentes em entrevista à IHU On-Line. “Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos”, enfatiza. Segundo ela, “a partição binária não serve a ninguém. É mais um ‘meme’ e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o ‘muro’ que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB”. Apesar de a leitura de um país dividido ser equivocada na opinião da pesquisadora, ela frisa que a polarização e a “narrativa do embate não desapareceu”, tampouco “os conflitos de classe”. Embora a divisão apareça em alguns pontos, “essa dualidade não dá conta, em termos simbólicos, das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos”, enfatiza.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ivana Bentes responde algumas das perguntas da IHU On-Line, com ênfase em uma análise do discurso tanto da mídia, que ela denomina de “Mídia-Estado”, quanto das redes sociais. “Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância”, pontua.

Para ela, “é fato que o estilo Veja e o ‘ódiojornalismo’ acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador)”. Contudo, pontua a professora de Jornalismo, as redes, diferente de veículos como a Veja, “antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-la ou diminuir seu estrago”.

Ivana explica o apoio dos movimentos sociais à reeleição de Dilma ao “reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, à crise da representação, à democratização da mídia, à centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política”. A presença do ex-presidente Lula nas eleições, “de forma pragmática e simbólica”, também contribuiu para a reeleição da presidente Dilma e “recolocou o lulismo na linha de frente desta guinada à esquerda da campanha de Dilma”.

Pós-eleições, com a reeleição de Dilma, Ivana frisa que “é preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está ‘tudo dominado’. É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica ‘mudança’ que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos”.

Ivana Bentes é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É doutora em Comunicação pela UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ.
Foto: arquivo pessoal
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?

Ivana Bentes - A primeira coisa que chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política, associada com arcaísmos e anacronismos de um pensamento conservador que atravessa os mais diferentes grupos e classes sociais. O resultado das eleições e os discursos de ódio que afloraram não se explicam simplesmente “partindo” o Brasil entre ricos e pobres ou muito menos entre regiões. É hora de entender a porosidade e penetrabilidade desses discursos duais de demonização do outro, minando um amplo campo social, e perceber novos imaginários emergentes.

Chegamos ao clímax de uma campanha eleitoral que reflete uma cultura de criminalização que produz uma ativa rejeição da política, apresentada cotidianamente em narrativas midiáticas que ficcionalizam as notícias e novelizam a política, com reiteradas associações da política e dos políticos com corrupção, ilegalidade, traições, intrigas. Uma memética negativa que afasta e despolitiza os muitos do que realmente está em jogo: interesses econômicos, especulação contra a vida, a privatização das riquezas, o moralismo e conservadorismo em que assujeitam minorias e diferenças.

A fábrica de fatos e a produção da opinião pública

Essa cultura do “ódiojornalismo” e o estilo Veja também aparecem na retórica dos articulistas e colunistas de diferentes jornais e veículos de mídia que formam hoje uma espécie de “tropa de choque” ultraconservadora (Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Demétrio Magnoli, Ricardo Noblat, Rodrigo Constantini, são muitos), que alimentam uma fábrica de memes de uma ultradireita que se instalou e trabalha para minar projetos, propostas, seja de programas sociais, seja de ampliação dos processos de participação da sociedade nas políticas públicas, seja de processos de democratização da mídia e todo o imaginário dos movimentos sociais.

Essa demonização da política tornada cultura do ódio se expressa por clichês e por uma retórica de anunciação de uma catástrofe iminente a cada semana nas colunas dos jornais e que retroalimentam, com medo, insegurança, ressentimento, uma subjetividade francamente conservadora de leitores e telespectadores.

Se lermos os comentários das notícias e colunas nos jornais (repercutidos também nas redes sociais), vamos nos deparar com um altíssimo grau de discursos demonizantes, raivosos e de intolerância, à direita e agora também à esquerda. Trata-se de uma redução do pensamento aos clichês, memes e fascismo, extremamente empobrecedora, mas incrivelmente eficaz.

Essa pedagogia para os microfascismos e a educação para a intolerância podem ser resumidos na retórica que desqualifica e aniquila o outro como sujeito de pensamento e sujeito político, o que fica explícito na fala de alguns colunistas.

“As eleições têm um componente simbólico e de ‘narrativa’ que ultrapassa em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral”

Um exemplo muito claro, inclusive no seu cinismo, é este trecho de uma coluna do Arnaldo Jabor de 28/10/2014, pós-eleições. Com uma argumentação pueril e assujeitante que coloca eleitores, nordestinos e nortistas, pobres como “absolutamente ignorantes sobre os reais problemas brasileiros”, em um cenário pós-eleições em que “nosso futuro será pautado pelos burros espertos, manipulando os pobres ignorantes. Nosso futuro está sendo determinado pelos burros da elite intelectual numa fervorosa aliança com os analfabetos”.

Numa coluna anterior, de 14/10/2014, podemos ver como funciona essa pedagogia calcada na construção de memes e clichês, a obsessão anacrônica por Cuba e agora pelo “bolivarianismo” e o caráter ameaçador que se dá a qualquer política pública contemporânea e modernizante que tenha como horizonte a participação social:

“— Qual é o projeto do PT? — Fundar uma espécie de bolivarianismo tropical e obrigar o povo a obedecer ao Estado dominado por eles. — Que é bolivarianismo? — É um tipo de governo na Venezuela que controla tudo, que controla até o papel higiênico e carimba o braço dos fregueses nos supermercados para que eles só comprem uma vez e não voltem, porque há muito pouca mercadoria.”
Trata-se de metáforas primárias, mas capazes de se difundir velozmente em um “semiocapitalismo” para usar a expressão do ativista e pensador italiano Franco Beraldi, inspirada em Félix Guattari, que tem como base signos, imagens, enunciados que giram velozmente, viralizam, comovem. Essa é a base tanto do ativismo, da publicidade social, quanto do pensamento conservador. A questão é como desconstruir esses clichês e trabalhar para que essas mudanças em curso se massifiquem a ponto de se tornarem um novo comum.

De certa forma foi o que vimos em relação aos programas sociais. Não será possível desmontá-los e desqualificá-los como se imaginava, pois o acesso aos programas tem dois vieses: a entrada da chamada classe C ao mundo do consumo, como consumidores simplesmente, mas ao mesmo tempo uma politização do cotidiano, com a percepção de si como sujeito de direitos e com uma interface com o Estado que não se reduz ao negativo, carência e insuficiência de serviços.

A próxima desconstrução massiva da mídia se dará em torno das noções de “participação popular”, “liberdade de expressão” e “controle social”, buscando construir uma valoração negativa e associá-las a um projeto autoritário de “menos democracia” e de restrição de direitos, quando se trata justamente de redistribuir poder simbólico e capital midiático pelos muitos. Uma operação que está em curso e que busca articular: políticas de regulação da mídia com “censura” de conteúdos.

IHU On-Line – Como avalia as discussões políticas via redes sociais?

Ivana Bentes - Os discursos de ódio que assolam o país (uma construção em curso desde 2002 e alimentada midiaticamente no caso do antipetismo) contaminaram também parte da militância governista e de forma difusa contaminaram as redes e as ruas em embates reais e simbólicos. Sem dúvida, trata-se do resultado de um processo em curso que passa pela judicialização da política, mas que inclui muitas outras indignações, inclusive as das Jornadas de Junho de 2013 contra os partidos e os processos verticais de governos e Estados. Um discurso represado contra a corrupção, que foi explorado à exaustão pela mídia e que desde as Jornadas de Junho surge no que tem de libertador, mas também de hipócrita e moralista, um discurso de viés conservador.
A Mídia-Estado produz e gerencia subjetividades, excitando e medindo forças com a sociedade, com as redes, com muitos conectados e desconectados e teve, nessa eleição, um caráter, eu diria que até épico, uma inflexão e temperatura que intensificou a percepção dos muitos do que podemos chamar de midiocracia, o governo das mídias.
O jornalismo padrão Veja como paradigma
Se analisarmos nessa eleição o grau de ingerência das mídias e o que chamei, na falta de uma palavra melhor, de “ódiojornalismo”, galvanizando microfascismos e comportamentos antidemocráticos, podemos entender os mecanismos de produção de crise. Foi o caso da intervenção da Veja, nessas eleições, entre outros acontecimentos que precisam de algum tempo para serem avaliados. Como pudemos acompanhar no projeto Manchetômetro, que mede o número e destaque de matérias negativas para os diferentes candidatos e o número de escândalos e seu tempo de exposição na mídia.

Nas análises da campanha presidencial de 2014, o site "Manchetômetro" chama atenção para o devir-Veja do noticiário brasileiro, com destaque para a Folha de São Paulo, para o que chamou de “Folha padrão Veja”, em que “Dilma foi campeã de chamadas e manchetes negativas por quase todo período de campanha”.
Na ecologia das mídias que se retroalimentam, a Folha chegou a publicar um material noticiando a ausência de repercussão da capa da Veja sobre as acusações do doleiro a Lula e Dilma. “Jornal Nacional não menciona reportagem”, de 25/10/2014.

“Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo ‘o PT fora do poder’, mas também os que defendem a todo custo o governo”

Sabemos que uma revista como a Veja é motivo de piada em todos os Cursos de Comunicação do país, não apenas pelo nível de distorção e editorialização de suas capas, mas como exemplo de um singular negócio. A moeda da Veja e de parte da mídia nunca foi o jornalismo, mas a "produção de crise" e sua capacidade de produzir instabilidade política e destruir reputações. Essa é sua única moeda: a ameaça de produção de crise e o restabelecimento da "estabilidade".

Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão, as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância.

É fato que o estilo Veja e o “ódiojornalismo” acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador). Vemos hoje o leitor típico de Veja multiplicado e repetindo ou produzindo esse jornalismo de ódio, numa subjetividade denuncista/fascista. Ao mesmo tempo, para além da desconstrução da retórica "fait divers" da Veja e desconstrução do denuncismo como "negócio", as redes antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-las ou diminuir seu estrago.

Foi o que vimos nas capas antecipadas nas redes parodiando a capa denúncia da Veja contra Dilma e Lula, na sexta-feira dia 24 de outubro. Utilizaram o humor como anticorpos para uma denúncia bomba produzida para desestabilizar as eleições. Trata-se da expressão da inteligência coletiva, que neutraliza o truque conhecido e aguardado derretendo a suposta "bala de prata" dessas eleições antes mesmo de ela ser disparada.

A chegada nos Trending Topics - TTs da hashtag ‪#‎deseperodaVeja‬‬‬‬‬ denunciando e desconstruindo a denúncia do doleiro contra Dilma e Lula teve um efeito impactante e de amortecimento do golpe midiático. A resposta de Dilma Rousseff no seu programa eleitoral denunciando a manobra, o direito de resposta no próprio site da Veja, obtido junto ao TSE, a não repercussão da capa da Veja no Jornal Nacional da sexta-feira formaram uma onda de repúdio e descrédito em torno da operação golpista, notícia que não deixou de ser superexplorada pelos adversários de Dilma Rousseff.

Ainda no campo da análise dos discursos, é preciso dizer que todo o poder de fogo de Veja se concentra na capa, peça over editorializada e peça em que investem todo o impacto emocional, estético (anunciam previamente nas redações e contam com a cumplicidade do restante da mídia para repercuti-la mimeticamente). No episódio dessas eleições, a capa se resume a uma frase de um doleiro pinçada de um processo.
Ação e Reação. O escracho contra a sede da Abril
Dentro da revista, o conteúdo da capa é pífio sempre. Tudo se resume a três linhas: “O Planalto sabia de tudo — disse Youssef. — Mas quem no Planalto? — perguntou o delegado. — Lula e Dilma — respondeu o doleiro. (....) O doleiro não apresentou — e nem lhe foram pedidas — provas do que disse”, conclui a “reportagem”, explicitando o próprio blefe. Aposta-se em uma capa editorializada e em uma frase não comprovada para tentar desestabilizar uma eleição. A maioria das pessoas também só lê as manchetes das primeiras páginas, a disputa se dá aí, pois atuam formando os memes negativos, associando pessoas, partidos e ações a crimes, ilegalidade, insegurança. A estratégia se repete a ponto de não mais surtir o efeito esperado.
Ainda na sequência do golpe malsucedido de Veja, vimos da reação com uma ação de “escracho” da União da Juventude Socialista – UJS, com pichação e lixo jogado na fachada da Editora Abril. Uma ação que poderia ter custado a eleição de Dilma, por confrontar diretamente a mídia e criar uma solidariedade com a Veja. O fato de o TSE ter dado direito de resposta à Dilma neutralizou parte do impacto negativo do golpe e contragolpe. Acho legítimas as ações de escracho, revolta e indignação que produzem danos simbólicos, um grande debate nas Jornadas de Junho de 2013 que envolveu as ações Black Blocs e que vemos que vieram para ficar na linguagem das ruas. Mas a ação do escracho na porta da Abril, legítima, foi no limite do “timing” e poderia ter selado uma reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não aconteceu.
O Jornal Nacional da Globo fez a crônica da Veja, da UJS e do TSE de forma razoavelmente equilibrada no dia 25/10, véspera das eleições, para quem esperava o “apocalipse” (mais um golpe de mídia) e um alinhamento automático da Globo com a Veja nesse episódio. Dilma manteve a vantagem na pesquisa do Ibope e ganhou as eleições por uma diferença apertada de pouco mais de três milhões de votos. Mas não antes de enfrentar um último boato nas redes: que o doleiro delator, que passou mal em meio a tantas reviravoltas, tinha sido envenenado pelo PT e agonizava em um hospital! Chegamos num nível bem alto de novelização dos fatos, um tipo de narrativa com vilões, mocinhos, vítimas e algozes que tem enorme penetração no imaginário e nas redes, que funcionam como veneno e antídoto, desconstruindo e produzindo memes e clichês.

Esse tipo de acirramento na disputa política introduz uma lógica dual e de confronto violento, pessoal, engajado e mobilizador, pois a “épica” e narrativa criada traz um componente de despolitização, que desloca a argumentação, o embate de ideias, para um confronto meramente afetivo/emocional, como nos jogos de futebol e comportamento das torcidas organizadas; o que aproxima ainda mais a política da ficção, do teleshow da realidade e da lógica melodramática das narrativas novelescas, populares no Brasil. Como politizar a comoção e os afetos? Esse me parece um desafio para o ativismo e para a formação política.

O debate em torno da democratização dos meios de comunicação chegou a um limite no Brasil. Temos a Lei de Meios na Argentina, avanços no debate no Uruguai, no México. No Brasil, a Reforma da Lei Geral de Comunicações segue obstruída mesmo sendo uma demanda e reivindicação de todos os movimentos sociais e culturais. Com a massificação das redes sociais, o midiativismo, a proliferação de pontos de mídia e de uma miríade de contradiscursos, o enxameamento da mídia-multidão começamos a experimentar uma outra deriva, mas insuficiente se não se auto-organizar e se constituir como uma outra cultura de redes, capaz de reagir e neutralizar os microfascismos cotidianos.
IHU On-Line – A reeleição apertada de Dilma demonstra um país dividido? 
Ivana Bentes - O embate agônico entre “torcidas” partidárias resultou ao final dessas eleições em um recorrente discurso da partição, do muro, do dualismo, do binarismo, de um país conflagrado. Esse discurso do Brasil “partido” pós-eleições não explica essa eleição de 2014. Vimos pessoas que migraram do ativismo e das mobilizações de Junho de 2013 ao voto em Aécio Neves (inclusive intelectuais de renome que apoiaram Marina Silva no primeiro turno e seguiram a candidata apoiando Aécio), mas particularmente os que estavam nas ruas por uma indignação difusa contra o sistema representativo e os partidos e que conectaram o sentimental de “mudança” com o marketing da mudança do candidato do PSDB. Uma associação que Marina Silva capitalizou no primeiro turno, com a mesma ambivalência.
Vimos uma população que criticou as ruas por produzirem crise votar em Dilma, por medo e receio de que as manifestações de Junho fossem um complô da direita para desestabilizar o governo. Uma leitura equivocada da radicalidade e insurgência dos desejos. Vimos a oposição (em geral fratricida) formar um campo de esquerda solidário sustentando as encostas para evitar a enxurrada conservadora que desce destruindo o construído. Destacamos aqui o apoio de lideranças do PSOL, como Marcelo Freixo, eleito com uma votação histórica de 350.408 votos e Jean Wyllys, que reivindicou um compromisso da candidata Dilma com as questões LGBT e com as minorias e populações indígenas.
Vimos uma real politização da disputada Classe C (a classe dos “batalhadores” sem partido, ou desorganizados) se posicionando claramente em defesa das suas conquistas, refletidas no dia a dia. Vimos essa mesma classe C identificada com os valores conservadores do racismo, preconceito, moralismo.
Vimos a expressão assustadora de uma classe média raivosa e anacrônica, repetidora dos clichês mais primários construídos pela Mídia-Estado. Um “ódio ao PT” identificado como ódio aos pobres, nordestinos, etc. Vimos a defesa da elite dos seus privilégios e uma esquerda perguntando “onde erramos”? Vimos os que se abstiveram, anularam e se retiraram taticamente do jogo, por exaustão, recusa, repúdio das regras do jogo.
Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos. O trabalho, depois de um intenso embate, é potencializar e politizar, organizar e construir movimentos, coletivos, organizações, bases menos maniqueístas e dualistas. Redistribuir riquezas e não aprofundar o fosso.
A partição binária não serve a ninguém. É mais um "meme" e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o "muro" que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB. A narrativa do embate entre “ricos e pobres” não desapareceu, e nem os conflitos de classe, mas essa dualidade não dá conta em termos simbólicos das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos.
Discursos

Sobre a retórica presente nos discursos de Aécio Neves, destacamos além da captura (mesmo que marqueteira e superficial) do legítimo desejo de mudança e uma equiparação entre “mudança” e “alternância de poder”, e ainda mudança e futuro. Mas o batido chavão do candidato que olha para o “futuro” e se apresenta como seu fiador não convenceu uma parte do eleitorado que votou com base na sua percepção do presente e sem fantasiar ou imaginar futuros alternativos radicais em relação aos programas e experiências bem-sucedidas.

Qual o lastro de "mudança" e "futuro" nas propostas e projetos apresentados por Dilma? Esses 12 anos fizeram história e tem um presente urgente e um horizonte, um projeto em disputa. O futuro, na campanha de Dilma, surge como um presente estendido e turbinado, melhorado. Enquanto os eleitores de Aécio Neves votaram em programas que desaprovam e combatem ativamente (Bolsa Família, Prouni, cotas), a partir de argumentos insustentáveis (bolsa-esmola, meritocracia, etc.) e que Aécio Neves afirmava que iria "continuar" para agradar aos demais eleitores, sem nenhuma outra proposta alternativa aos programas. Com o agravante de o PSDB ter tentado desqualificar todos os projetos sociais do governo. Estranha equação!

IHU On-Line – Que avaliação faz dos movimentos sociais nessas eleições, inclusive daqueles que criticaram o governo e acabaram por apoiar a reeleição de Dilma?

Ivana Bentes - O que vejo de mais positivo nesta eleição foi o retorno dos movimentos sociais e culturais na disputa do projeto do governo, com uma multidão que, mesmo insatisfeita, foi para as ruas. A pressão para uma guinada à esquerda e a retomada de políticas interrompidas resultou na entrada de Juca Ferreira na coordenação do Programa de Cultura de Dilma. Em torno dele formou-se uma rede que colocou a presidente em diálogo (em atos, comícios, cartas, declarações e posicionamentos) com a pauta trazida por jovens das periferias, do hip hop, do funk, do passinho, com projetos sociais e culturais vindos das favelas; que recolocou na cena o debate em torno dos Pontos de Cultura, da banda larga, da cultura digital, da criminalização da homofobia, da Reforma Política.

O reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, a crise da representação, a democratização da mídia, a centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política, me parecem que efetivamente impactaram de forma decisiva para o engajamento e a ida de militantes, ativistas, participantes de uma frente de esquerda (PT, PSOL, PCdoB, etc.) que chegaram não apenas com um “voto crítico”, mas com apoio e capital simbólico e de credibilidade (MTST, MST, Reitores de Universidades públicas, professores, cineastas, Pontos de Culturas, médicos, cotistas, etc. que se expressaram em centenas de manifestos).

De forma pragmática e simbólica, a presença do ex-presidente Lula nessas eleições, subindo em palanques e atos, recolocou o lulismo na linha de frente dessa guinada à esquerda da campanha de Dilma. Lula, mais do que ninguém sabe que só nos resta a virada de imaginário e reconhecer que sem uma reaproximação com as ruas, sem as bases e o diálogo com os movimentos sociais e culturais, não tem PT e não tem mística que segure os retrocessos com um Congresso tão conservador que reelegeu Bolsonaro e Feliciano e uma eleição que deu ao PMDB o governo de sete estados, contra cinco do PT e cinco do PMDB.

Lula apontou nas suas falas o que vimos a presidente reeleita expressar no seu discurso: “Dilma precisa sair do isolamento nos próximos quatro anos e se reaproximar dos políticos, dos empresários e dos movimentos sociais". Cabe ainda destacar a carta divulgada pela presidenta Dilma aos indígenas na sua campanha: "Carta aos Povos Indígenas do Brasil", em resposta à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB, se comprometendo com pautas e questões trazidas por lideranças indígenas. Trata-se de um dos pontos mais críticos do seu governo e que envolvem embates com as forças mais retrógradas deste país: "Hoje, todos sabemos, existem desafios na esfera jurídica para podermos avançar na demarcação das terras indígenas no país, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Sul e Nordeste. Temos que enfrentar e superar estes desafios, respeitando a nossa Constituição".

Os canais ficaram obstruídos nos últimos anos, os estragos e erros foram grandes em alguns campos, como o da questão indígena e o debate ambiental. É um enorme desafio dos movimentos e do governo, que depende de articulação e pressão.

A questão da Cultura é decisiva porque no “semiocapitalismo”, o capitalismo cognitivo, capitalismo que tem como valor a informação, a comunicação, os afetos, o modo da produção cultural (a precariedade, a informalidade, a autonomia) são as próprias formas do trabalho contemporâneo, as formas gerais do trabalho. Nesse sentido, a cultura hoje é um processo transversal que impacta nas formas de produção de valor em todos os demais campos.
Podemos, partindo da cultura e do MinC, por exemplo, repensar questões decisivas como a valorização, apoio, sustentabilidade dos Pontos de Cultura, Pontos de Cultura Indígenas, ações de formação dos movimentos urbanos, novas redes de produção audiovisual, de mídia, dos povos tradicionais, cultura digital, etc. É um erro o governo não olhar para esse campo como estratégico, como lugar de desenvolvimento, produção de valor e radicalização da democracia. Cultura não é mais um “setor”, é um processo transversal e decisivo.

“A ação do escracho na porta da Abril, legítima, foi no limite do ‘timing’ e poderia ter selado uma reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não aconteceu”

IHU On-Line - Recentemente a senhora postou um texto que iniciava com a seguinte declaração: “Eu voto porque somos ingovernáveis”. O que subentende nessa afirmação?
Ivana Bentes - Não vejo contradição nem oposição aos processos que levam das ruas às urnas e vice-versa, são complementares. Por isso temos que votar e lutar. Somos ingovernáveis, no sentido de que o processo representativo, as eleições, não podem ser o objetivo e nem o ápice do processo participativo. As redes são velozes e instituíram uma outra temporalidade e polifonia na política. Precisamos saber navegar e tomar decisões com base na ruidocracia. Os muitos tornaram-se visíveis e querem participar da vida política.

Essa participação pode ser pelas urnas, mas pode ser pelas ruas e redes também, de forma autonomista, por que não? Caminhamos nas redes e movimentos para a organização autogestionada, a organização de ação direta. Nesse sentido, a experiência de intensa participação nas redes sociais massifica, dissemina, difunde, prepara para a democracia direta, plebiscitária, em tempo real, que amplia o poder de decisão e intervenção dos muitos. Trata-se de uma mudança intensiva, de intensidade na participação, que a meu ver não tem volta.

O pânico da participação, de um Congresso e Parlamento em grande parte anacrônico e conservador, é sintoma da crise dos intermediários que assolou diferentes campos. Crise da intermediação, quando milhares de pessoas passam a exercitar a governança nas redes, da mesma forma que buscam processos desintermediados na produção cultural (crise das gravadoras, editoras, disputa nas redes com as mídias corporativas fordistas) e ascensão de uma cultura de redes que tem como horizonte a autonomia e a liberdade (“faça você mesmo”), a conectividade e o coletivo como valor.

Fica claro nessas eleições a crise da passagem entre modelos distintos. A cultura política baseada na democracia representativa (que não se esgotou totalmente, mas emerge na sua insuficiência) e a cultura de redes. O sintoma do anacronismo na política passa pela tentativa de criar estados de exceção, como o insistente golpismo da direita, pedindo "impeachment" de Dilma, antes mesmo de a eleição acabar e um estado permanente de crise, “amanhã será pior!” A antecipação continuada de crises produz medo e incertezas, constrange e despotencializa.

Temos exemplos concretos de práticas midiáticas de antecipação e produção de crise e instabilidade como controle. Lembro dos seres sensitivos que antecipam crimes no filme Minority Report. No Brasil foram desbancados pelos seres que antecipam golpes. Antes mesmo da reeleição da presidente Dilma, Merval Pereira, na sua coluna de O Globo de 24/10/2014, já pedia o seu "impeachment" por possíveis crimes futuros! Merval trabalha e cava para achar as "condições para incluir a atual e o ex-presidente em um processo criminal". E ameaça, "nesse caso, o impeachment da presidente será inevitável". Como disse sobre a Veja e serve para O Globo, a moeda da mídia é a ameaça, a chantagem, a produção de instabilidade e a produção de crise. Jornalismo é apenas o nome do genérico que embala o real negócio.

Mas as bordas conectadas balançam as redes e desestabilizam os velhos centros de poder. Os pré-cogs, os sensitivos da democracia, também visualizam futuros alternativos e algumas tags inspiradoras que neutralizam os videntes golpistas: Lei de meios, Lei Geral de Comunicações, Direito de Resposta, Regulação da Mídia, Pontos de Mídia Livre, Cultura de Redes e a Democratização das verbas publicitárias do próprio governo, dinheiro público investido nas grandes corporações de mídia e que poderia fortalecer a nova ecologia midiática das redes.

Estamos falando de um Estado-Rede, aberto aos movimentos e às críticas; é hora de se pensar em grandes frentes parlamentares de defesa de pautas e projetos, independente de partidos ou de eleição, o que importa é organizar e fortalecer os movimentos e conseguir vitórias públicas para os muitos. Os que foram às ruas para eleger a presidenta Dilma podem voltar às ruas para exigir essa virada de imaginário e participação.

Vimos nesse processo eleitoral a explosão dos discursos de ódio e entre eles o racismo, que, como mostra Foucault, é a condição sob a qual podemos exercer o direito de matar, de humilhar, de assujeitar, expondo ao risco determinados tipos de sujeitos e comportamentos, impondo a morte política, a expulsão dos territórios, a rejeição. Estamos vendo o crescimento desses discursos de ódio, com pedidos até de “intervenção militar” dos que perderam as eleições, numa tentativa de enfraquecer a democracia. O que é paradoxal e inédito pós-ditadura militar. Esses discursos de ódio, de racismo, não são, portanto, uma regressão e nem a sobrevivência de um passado arcaico, mas o produto de uma Mídia-Estado e de processos contemporâneos de biopoder e de gestão da vida.

IHU On-Line - Como avalia o discurso de uma nova política nas campanhas políticas?

Ivana Bentes - O debate e o discurso em torno de uma “nova cultura política” me parece decisivo, e Marina Silva soube capitalizar esse sentimento no primeiro turno, mas não o sustentou nem na teoria e nem na prática. Por isso sua explosão nas urnas nos remete a um tipo especial de "viral" que é o termômetro das comoções e afetos. Digo viral e mesmo um "meme" eleitoral pensando que as eleições têm um componente simbólico e de "narrativa" que ultrapassa em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral. Marina tinha a melhor narrativa, da seringueira da floresta alfabetizada aos 17 anos que por um golpe do destino teve a candidatura à presidência jogada no seu colo. Mas não sustentou a candidatura e nem o debate para além da comoção memética, pois revelou ter os piores defeitos e incoerências de Dilma Rousseff em relação aos temas comportamentais como o aborto, as drogas, o casamento gay. Como poderia ser uma alternativa aos sem voto ou aos que foram para as ruas em junho de 2013 com esse perfil conservador no campo do comportamento?

A questão ambientalista que Marina trouxe também é decisiva e desejável para uma mudança de mentalidade política. Mas o seu projeto ambientalista não se definiu nem como antidesenvolvimentista. Suas pautas acabaram soando como simples remediação dentro de um "capitalismo verde", sem força e/ou desejo de nomear e fazer o embate com o agronegócio, por exemplo.

Obviamente que o governo Dilma foi pífio em relação às questões ambientais e indígenas. Mas a questão se estende aos demais partidos e projetos: Que tipo de governabilidade um partido como o PSB e mesmo o PSDB teria que negociar, já que a eleição presidencial não muda a configuração over conservadora do Congresso?

Marina acabou se revelando a expressão de uma elite empresarial e de certo "capitalismo verde", da "responsabilidade social", o equivalente aos ecobags, o consumidor verde que acha que já faz muito por não usar saco plástico descartável no supermercado ou por comprar a cenoura orgânica do Marcos Palmeira (também acho ótimo, mas insuficiente e paliativo), sem encarar a questão dos transgênicos, por exemplo, e do agronegócio.

Potências e limites do atual governo Dilma

O desenvolvimentismo fordista de Dilma e a sustentabilidade “flex” da economia verde dos aliados de Marina são igualmente insuficientes e insustentáveis. Um é a remediação e complemento paliativo do outro. A palavra "sustentabilidade" aponta para mudanças de modelo mais radicais e profundas que não apareceram em nenhum dos programas.

Ao mesmo tempo, a presidenta Dilma, mesmo atuando dentro da “velha política”, tem um legado e capital simbólico de mudança e ruptura agindo, um projeto inacabado e em curso. O que Lula/Dilma fizeram (contra toda uma elite midiática e conservadora, contra uma parte da classe média preconceituosa e voltada para seu umbigo) com o Bolsa Família, a expansão das universidades públicas, as cotas, teria de ser feito para neutralizar os ruralistas, para mudar o sistema de segurança e de mídia. Ou seja, intervir e mudar as velhas forças conservadoras, o que vem ao encontro do desejo de governança e participação.

O PT e o governo não souberam polinizar e espraiar o que de radicalmente novo trouxeram com essa participação e rede de movimentos em torno do projeto popular. Temos que entender que “nova política” não é uma palavra mágica, é lutar contra as forças mais pernósticas deste país: ruralistas, mídia corporativa e agentes da (in)segurança pública. O Estado brasileiro não vai desbaratar essas forças sozinho e nem "de dentro". Ou bem essas forças arcaicas de especulação contra a vida se tornam intoleráveis socialmente, ou não tem governo, partido ou candidato que as vença. Mas sem dúvida temos mais chances de fazer essa mudança a partir do campo da esquerda do que reafirmando os valores retrógrados de uma elite conservadora.

A “nova política” passa por essa indignação que marcou as Jornadas de Junho de 2013, passa pela crise da democracia representativa, mas não prescinde dela, passa pela demanda de participação e cogestão do Estado, mas também o fortalecimento de processos autonomistas, de autonomia e liberdade, de fabulação de mundos e de virada de imaginário.

O que entendo como “nova política” no Brasil não é só olhar para frente, mas instaurar processos de reparação, o que inclui também o que o governo Lula/Dilma teve coragem de fazer: aumentar o salário mínimo no Brasil (que a direita dizia que ia quebrar o país), fazer a PEC das empregadas domésticas, afrontando a Casa Grande na sua mentalidade escravocrata, dando existência política aos remanescentes dos quilombos, com o reconhecimento das terras quilombolas, aprovando a Lei Cultura Viva para os Pontos de Cultura e o Marco Civil para a Internet, entre tantas viradas políticas decisivas. Mas claro que isso não basta e é preciso construir futuros alternativos aos que temos hoje, diante da crise ambiental, indígena, crise de paradigmas e modelos.

A polêmica da participação social

A polêmica (induzida pela Mídia e pelos derrotados nas eleições presidenciais) criada em torno do decreto da Participação Social proposto pelo governo indica como os conservadores criam memes e clichês de neutralização dos avanços, colocando as mudanças necessárias dentro da configuração fantasiosa de um “bolivarianismo tropical” ou “golpe comunista”.

Tornar lei "participação" é o embrião para um Estado-rede aberto à cogestão da sociedade. Não podemos esquecer que no auge das manifestações e da crise de 2013, a presidente Dilma acenou com uma Constituinte para fazer a Reforma Política, e a mídia corporativa veio em peso acusar o governo de “venezuelização”, golpe, mudança das regras do jogo, e o governo recuou. Agora que reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real diálogo com os movimentos sociais. Os parlamentares que votaram contra o Decreto da participação são anacrônicos, entendem participação como “reserva de mercado” para os poucos representantes no Congresso.
É preciso ampliar a participação, mas enquanto a direita diz que estamos entrando na era do "bolivarianismo tropical" com Dilma reeleita, certa esquerda coloca todo e qualquer retrocesso na conta do governo, de forma igualmente redutora. A direita acreditando que representação é um "cheque em branco" que você assina nas eleições e lava as mãos. Certa esquerda fazendo o discurso da sacralização das ruas, como se, sozinhas, as ruas e movimentos pudessem derrotar as forças obscurantistas mais arraigadas que especulam contra a vida. A real é que não se trata de escolher entre as ruas ou as urnas, mas ruas e urnas e mais centenas de ações, práticas e movimentos autonomistas e autogestionados contra o retrocesso. São muitas as formas de participação. O Plano Nacional de Participação Social apenas consolida o que já estava previsto em parte na própria Constituição, como os conselhos populares.

“Agora que reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real diálogo com os movimentos sociais”

É preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está "tudo dominado". É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica “mudança” que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos.
O imaginário em torno da palavra mudança
Temos que nos apropriar e ressignificar o imaginário e desejo em torno das mudanças que tanto Marina Silva e depois Aécio Neves tentaram capturar, criando uma “nuvem” fluida e frouxa em torno dessa tag ou conectando mudança com um projeto político que é a vanguarda do atraso.
O que precisamos reafirmar é que as brechas e contradições existem dentro do próprio governo Dilma e devemos explorá-las. Não vejo como Dilma pode "continuar" sem mudar. Pois também ela se valeu do discurso da mudança.
O PT ainda é a mais completa tradução da bipolaridade esquizofrênica na política brasileira e que por isso mesmo está aberto às pressões, de todos os lados.
Quando Vladimir Safatle definiu Marina como uma "Margareth Thatcher da Floresta", achei exagero, mas é esse personagem político que Marina assumiu. A nova política de Marina acabou com seu apoio a Aécio Neves, ao meu ver, dilapidou parte do seu capital simbólico rápido demais. Mas as questões trazidas por sua candidatura não podem ser abandonadas, são reais e importantes.

Ao apoiar Aécio Neves, candidato derrotado nessas eleições, Marina cruzou uma fronteira delicada. Desagradou e de certa forma “traiu” parte dos que foram para as ruas em 2013 pedindo mudanças. Aécio Neves tentou capitalizar o sentimento e desejo de mudanças da forma mais conservadora, com um sentimento raivoso antipetista, pouco generoso, binário e redutor em relação ao passado. Nesse sentido, o “Muda Mais” de Dilma também ainda é apenas uma carta de intenções, mas se explicitou no discurso de vitória e logo depois, ao propor a Reforma Política, a criminalização da homofobia e a regulação da Mídia.

PT e PSDB

PT e PSDB têm projetos distintos, mas são dois projetos que incorrem em um erro comum e de boa parte da direita e da esquerda atual, a crença em um progresso infinito, aceleracionista e de esgotamento dos recursos naturais em nome do “desenvolvimento”, produzindo crises estruturantes: consumismo, crise ambiental, destruição de culturas e modos de existência que resistem a esses processos de assujeitamento da vida.

Ou seja, o desenvolvimentismo selvagem não é um problema da Dilma, é o "estado da arte" de parte da sociedade brasileira e global: consumismo desenfreado, especulação contra a vida, margem de lucros exorbitantes que passa por cima de culturas e direitos. Só uma forte pressão dos movimentos sociais quebra esse modelo. Só uma mudança de mentalidade vai expurgar essas forças de morte e desmandos arcaicos do país.

As questões continuam e não têm respostas fáceis. Temos que lutar para que o atual sistema partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é o compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário.

Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo "o PT fora do poder", mas também os que defendem a todo custo o governo. Os governistas são um atraso para discutirmos, criticarmos e pressionarmos governos "de dentro" deles. Criticar e exigir mudanças não como inimigos, mas como aliados.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito na possibilidade de tensionar seu governo por fora e por dentro. Quem precisa de políticas públicas não pôde se dar o luxo de arriscar mais retrocessos. Quem precisa de políticas públicas nos transportes, na saúde, banda larga, políticas para a juventude e para as minorias, votou na continuidade de um projeto que em 12 anos teve resultados concretos, como tirar o Brasil do mapa da fome — é muito e é muito pouco!

Aclasse C quer mais direitos e mais políticas públicas que potencializam a vida, potencializem a sua cultura e jeito de estar no mundo, não apenas ser consumidora, por isso a classe dos “batalhadores” (linda expressão que foi decisiva nessa eleição). A Marina falou para uma classe média e para uma elite liberal com pautas que Dilma subestimou. Aécio Neves despertou os microfascismos de toda sorte, numa reorganização do campo conservador no Brasil: ódio aos nordestinos, ódio e desqualificação da política, ódio aos petistas, ódio ao processo eleitoral. O legítimo desejo de mudança deve ser capturado para aprofundar os processos democráticos, e não interrompê-los, neutralizá-los.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito que as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a financeirização da vida, seja de onde for, e vejo que partindo da cultura pode-se reinventar o Brasil, transformando precariedade em potência. Não é fácil, dentro de um ambiente político hostil e cenário econômico difícil, mas o que nos move são as dinâmicas dessa própria luta que ressignificam o presente urgente e inventam futuros alternativos.