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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

As humanidades entram no debate ambiental


http://agencia.fapesp.br/recursos_digitais_conectam_ciencias_sociais_humanas_e_naturais_em_questoes_ambientai/21860/

Recursos digitais conectam ciências sociais, humanas e naturais em questões ambientais

11 de setembro de 2015

 

Diego Freire | Agência FAPESP – No terceiro workshop da série de encontros promovidos em 2015 pela Plataforma Transatlântica para Ciências Sociais e Humanas (T-AP, na sigla em inglês), formada pela FAPESP e outras 11 agências de fomento das Américas e da Europa, especialistas de diferentes disciplinas científicas discutiram estratégias de integração de estudos envolvendo questões ambientais.

Em torno do tema Transformative Research – Interactions between Social Sciences, Humanities and Environmental Science, as discussões ocorreram de 1º a 3 de setembro, na sede da FAPESP, em São Paulo (SP), e sucederam os workshops Diversity, (In)equality and Differences, realizado em julho, na Inglaterra, e Digital scholarship, em janeiro, nos Estados Unidos. Está programado ainda um último encontro, em dezembro, na Alemanha, com o tema Building Resilient and Innovative Societies.

“A ideia (do workshop) é pensar estratégias conjuntas para as grandes questões ambientais, que têm esse caráter interdisciplinar e global e que podem aproximar pesquisadores de diferentes procedências geográficas e científicas”, explicou Claudia Bauzer Medeiros, professora no Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenadora adjunta de Programas Especiais da FAPESP e representante da Fundação na iniciativa.

A pesquisa desenvolvida no Estado de São Paulo, ela acrescentou, tem grande potencial de interação com a comunidade científica internacional tanto pela sua abrangência como pela sua qualidade. “Mas, para isso, é preciso que mais canais de diálogo sejam abertos.”

A primeira parte do workshop, aberta ao público, teve o objetivo de, dentro da ideia central da T-AP e com a participação de pesquisadores de São Paulo, levantar quais seriam as oportunidades e os desafios de cooperação transatlântica nos temas do workshop, de forma a resolver problemas de relevância científica, social, econômica e cultural. Várias apresentações destacaram o papel da pesquisa em ciências sociais e humanas na solução de problemas ambientais.

Para as discussões, foram reunidos pesquisadores das ciências sociais, humanas e ambientais envolvidos em projetos relacionados a questões do meio ambiente para discutir os desafios metodológicos da integração de disciplinas nessas áreas – entre eles, Carlos Joly, professor da Unicamp e coordenador do Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA).

“O workshop trata de quais as metodologias de ciências sociais e ambientais que podem ser combinadas para desenvolver pesquisa em meio ambiente com foco nas comunidades, com impacto social, uma das preocupações do BIOTA. O meio ambiente não é uma preocupação restrita a um grupo específico de pesquisadores – envolve também esforços de múltiplas disciplinas, em especial das ciências sociais e humanas em geral”, disse Joly.

Presente na abertura do evento, Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, destacou ainda outros programas da Fundação com grande potencial de interação entre disciplinas em questões ambientais.

“É importante que o Estado de São Paulo estimule e apoie pesquisas em todos os campos que podem trazer respostas a questões prioritárias para sua população, e esse tem sido um esforço grande da FAPESP especialmente na última década, como nos trabalhos desenvolvidos pelo BIOTA e pelos programas FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e de Pesquisa em eScience”, disse.

Para Maria Carmen Lemos, cientista política, professora e vice-diretora para Pesquisa da School of Natural Resources and Environment da Michigan University, em Ann Arbor, nos Estados Unidos, as agências de financiamento têm papel fundamental na promoção da interdisciplinaridade no tratamento das questões ambientais.

“As ciências naturais tenderam a liderar a agenda, mas é preciso reintegrar os sistemas sociais, incluídos os sistemas políticos, econômicos, culturais. A tradição de financiamento também precisa ser repensada, equilibrando a distribuição de recursos. Há poucas experiências de integração entre times de diferentes áreas em torno das questões ambientais e o processo de mudança desse paradigma tem sido muito lento – enquanto os desafios ambientais são urgentes. As agências podem acelerar esse processo de construção de uma comunidade interdisciplinar.”

Cibercartografia
No contexto das interações metodológicas propostas pelo workshop, Fraser Taylor, da Carleton University, no Canadá, apresentou a cibercartografia, ou cartografia cibernética, que utiliza recursos de mapeamento em plataformas digitais para organizar e apresentar informações e análises de diferentes naturezas em uma única plataforma e com linguagens convergentes.

“Para contemplar toda a complexidade das interações entre áreas distintas, mas com objetivos comuns, diferentes ontologias ou narrativas sobre o mesmo tema devem ser apresentadas de uma forma que as pessoas possam compreender facilmente, sem privilegiar um em detrimento de outro. A cibercartografia é capaz disso”, disse Taylor.

Para o pesquisador, o caráter transdisciplinar das novas mídias, como a Web, proporciona um espaço de grande potencial para a interação entre diferentes áreas da ciência.

“As ciências sociais e humanas em geral têm muito a contribuir a respeito das grandes mudanças pelas quais o meio ambiente tem passado, mas um grande problema é a forma como esse conhecimento pode ser integrado tanto entre as duas áreas como com outras, como as ciências físicas. Novas formas de comunicação digital oferecem novas oportunidades de conectar conhecimentos diferentes em torno de propósitos comuns, e esse é o caso da cibercartografia”, disse.

A apresentação de Taylor teve foco nas dimensões sociais e humanas dos mapas e do processo de mapeamento do conhecimento, contemplando os aspectos multimídia da cibercartografia.

“A cartografia no ambiente digital utiliza os recursos de diversas plataformas de mídia, como a Web 2.0, é altamente interativa, com o usuário podendo também ser criador. Não é um produto autônomo, como o mapa tradicional, mas parte de um pacote de informações e análises, incluindo dados qualitativos e quantitativos, e, além de multimídia, pode ser multissensorial, utilizando-se da visão, da audição, do tato e, eventualmente, até mesmo do cheiro e do sabor, porque as pessoas usam todos os sentidos no processo de aprendizagem e a tecnologia oferece recursos para acioná-los.”

O jornalista e historiador Jon Christensen, da University of California em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos, apresentou projetos que puseram em prática recursos de cibercartografia conjugados a outras ferramentas de interação e visualização conjuntas de dados envolvendo questões ambientais – entre eles, um trabalho multidisciplinar que utilizou pesquisas em história para mapear a paisagem do Delta da Califórnia.

“Após mais de 200 anos de transformações promovidas pelo homem, com a drenagem de zonas úmidas para a colocação de diques e a instalação de uma vasta rede de barragens e gasodutos que abastecem de água o estado, a paisagem do delta foi refeita e seu ecossistema está em crise e a Califórnia estuda medidas para reverter o declínio das espécies ameaçadas. Mas ainda se sabe muito pouco sobre a complexidade desse ecossistema”, contou.

Cientistas do San Francisco Estuary Institute empreenderam um esforço interdisciplinar financiado pelo Departamento de Caça e Pesca da Califórnia para reconstruir toda a paisagem do delta por meio de pesquisas de ecologia histórica.

“Foram reunidas mais de 3 mil fontes históricas a partir de 40 arquivos de diferentes instituições, incluindo gráficos originais de navegação, pesquisas de terras do governo, desenhos, fotografias e revistas de diferentes épocas. Esses materiais foram criados para muitos propósitos, mas todos contêm pistas sobre com o que o delta uma vez pareceu”, contou Christensen.

Organizando em diferentes camadas toda essa informação histórica, os pesquisadores criaram um mapa detalhado dos tipos de terra, cursos de água e comunidades de plantas de 200 anos atrás, entre outros elementos da paisagem. A cartografia revelou um ecossistema interligado de grande complexidade à disposição de pesquisadores de diferentes áreas por meio de recursos multimídia.
“O mapa não fornece um modelo literal do que foi o delta, mas ajuda a compreender os processos físicos e biológicos que uma vez fizeram florescer aquele ecossistema, podendo contribuir para melhorar dramaticamente os esforços de restauração do habitat. Conhecer a paisagem como era também poderia ajudar a restabelecer um ecossistema adaptável.”

Christensen trabalha na Stemen Design, um estúdio de visualização de dados, em outros projetos de organização e visualização de dados públicos – entre eles, em parceria com a organização norte-americana sem fins lucrativos Climate Central, a avaliação do impacto da subida do nível do mar sobre comunidades costeiras em todo o país, explorando a qualidade da água, riscos e oportunidades.
“A visualização de dados, o mapeamento digital e o storytelling interativo estão se tornando cada vez mais importantes em diversas áreas. Juntas, essas ferramentas proporcionam diálogos para que sejam identificadas possíveis soluções para os desafios que os nossos recursos naturais e culturais mais importantes enfrentam”, destacou.

Para Karen Pittel, da Ludwig-Maximilians University, na Alemanha, a experiência no Delta da Califórnia evidencia que muitas das respostas para as questões ambientais podem vir das ciências humanas.

“Eventos naturais históricos, desenvolvimentos socioeconômicos e os valores culturais conduzem a importantes percepções e preparam melhor as pesquisas para os desafios ambientais que elas enfrentam”, afirmou.

Mas Pittel destacou que, além das barreiras entre diferentes áreas, pesquisadores precisam ampliar o diálogo “intradisciplinar”.

“Trata-se de um problema complexo porque não há desafios metodológicos apenas entre as ciências humanas e naturais, mas também dentro de cada uma delas, muitas vezes tão grandes quanto aqueles existentes entre áreas distintas. É preciso que se adote uma abordagem holística para as questões tão complexas e plurais quanto as ambientais, que só podem ser entendidas como um todo.”

Das discussões realizadas entre os participantes nos dias 2 e 3 de setembro, durante a programação fechada no workshop, sairá um relatório com propostas de múltiplas abordagens para as questões ambientais, identificando oportunidades de cooperação entre pesquisadores dos continentes com representações na T-AP e novas direções para projetos multilaterais.

Mais informações em www.fapesp.br/9611.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Pesquisar a contemporaneidade, isto é, a aceleração, a globalização e o individualismo

O papel das Ciências Sociais em um mundo em mudança acelerada

12/08/2014
Agência Fapesp
Por José Tadeu Arantes
Craig Calhoun, diretor da London School of Economics, fala sobre a responsabilidade da área como instrumento para a compreensão crítica da realidade e intervenção na esfera pública (foto: Leandro Negro/Ag. FAPESP)
Agência FAPESP – Que traços melhor caracterizam o mundo contemporâneo? Entre as grandes mudanças ocorridas no cenário global quais são aquelas que de maneira mais completa definem o tempo presente? Como transitar da perplexidade que essas mudanças inspiram para sua inteligibilidade em grandes quadros interpretativos? Essas foram, resumidamente, as principais indagações que o sociólogo Craig Calhoun procurou responder em palestra realizada em julho na sede da FAPESP, em São Paulo.

Nascido em 1952, o norte-americano Calhoun tornou-se diretor da prestigiosa London School of Economics and Political Science (LSE) em setembro de 2012. Antes disso, dentre várias atividades, desempenhou, nos Estados Unidos, as funções de professor de Ciências Sociais na New York University e de presidente do Social Science Research Council (SSRC), organização independente dedicada ao avanço da pesquisa em Ciências Sociais e áreas afins.

A despeito de ter nascido e se graduado nos Estados Unidos, Calhoun tem conexões antigas com o Reino Unido, pois fez mestrado em Antropologia Social na University of Manchester e doutorado em Sociologia e História Econômica e Social Moderna na University of Oxford. Igualmente determinantes em sua trajetória intelectual foram os trabalhos que realizou em outros países, notadamente na conturbada região do Chifre da África.

Mesmo com o importante cargo que ocupa atualmente, Calhoun faz questão de manter um posicionamento intelectual crítico e um trato pessoal informal e acessível (confira seu blog em http://blogs.lse.ac.uk/craig-calhoun/).

A palestra que proferiu na FAPESP foi pautada por um texto que produziu recentemente em parceria com o sociólogo Michel Wieviorka, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, intitulado Manifesto pelas Ciências Sociais (a versão integral pode ser lida em francês em http://socio.hypotheses.org/147).

A pergunta feita no início desta apresentação foi assim respondida por Calhoun e Wieviorka em seu manifesto: “Dentre as mudanças que obrigam as Ciências Sociais a transformar seus modos de aproximação, as mais espetaculares podem ser resumidas a duas expressões: a globalização e o individualismo. São duas lógicas que, em conjunto, balizam o espaço no interior do qual a pesquisa cada vez mais é chamada a se mover.”

A palavra ‘globalização’, em sentido amplo, inclui dimensões econômicas, mas também culturais, religiosas, jurídicas etc. Hoje, numerosos fenômenos abordados pelas Ciências Sociais são ‘globais’, ou suscetíveis de serem observados sob esse ângulo”, prossegue o texto mais à frente.

Quanto ao individualismo, o manifesto o caracteriza como “um segundo fenômeno, não menor, porém mais difuso”. E afirma: “Seu impulso traduziu-se desde cedo na pesquisa por um interesse sustentado pelas teorias da escolha racional, mas também, e principalmente, em tempos mais recentes, pela consideração, cada vez mais frequente, da subjetividade dos indivíduos.”

Depois de sua palestra, Calhoun concedeu a seguinte entrevista à Agência FAPESP:

Agência FAPESPA nova realidade global é muito diferente daquelas nas quais surgiram e se desenvolveram as teorias sociais clássicas, nos séculos XIX e XX, fato enfatizado em sua conferência. Quais são as diferenças mais significativas?

Craig Calhoun – Algumas das principais diferenças entre o período histórico atual e os anteriores incluem a intensificação da globalização e, nessa intensificação, o maior papel desempenhado pelas finanças. Trata-se não apenas de uma nova configuração do capitalismo em geral, mas, especificamente, do capitalismo financeiro. Outro item é o retorno da geopolítica. Vemos nos conflitos mundiais uma mistura de questões geográficas, políticas, culturais e civilizacionais, que apresentam padrões diferentes daqueles que caracterizavam o período da Guerra Fria. A Guerra Fria, de certa maneira, bloqueava esse tipo de geopolítica, que vemos hoje nas crises da Síria, do Iraque, da Ucrânia e tantas outras.

Outra diferença é a emergência de um capitalismo informal em larga escala. Quando pensamos no setor informal, geralmente pensamos em pequenas unidades produtivas, localizadas em residências, favelas etc. Mas, hoje, a economia informal atingiu uma escala gigantesca, incomparavelmente maior do que aquela que havia antes. Existe, nesse segmento, o narcotráfico e o tráfico humano, mas não apenas isso. Há muitas outras atividades, movimentando grandes somas de dinheiro.

O mundo contemporâneo também é moldado por questões ambientais, em um grau que jamais vimos: as mudanças climáticas globais, a questão dos recursos hídricos e de outros recursos, a poluição e a degradação das periferias das grandes cidades, questões relacionadas com justiça ambiental, quem ganha e quem perde em relação ao meio ambiente.

Finalmente, sublinharia a questão do déficit institucional. Muitas instituições que ajudavam as pessoas a manejar riscos em sua vida ordinária foram corroídas ou perderam financiamento ou enfrentam problemas. Construir e fortalecer instituições que ajudem as pessoas a resolver os problemas em suas vidas são grandes questões em todo o mundo.

Agência FAPESPA respeito das questões ambientais, o senhor estudou a influência do contexto social no agravamento dos danos causados por desastres naturais. É bastante conhecido seu estudo dessa contextualização no caso do furacão Katrina, de 2005. Eventos extremos como esse tendem a ocorrer com frequência cada vez maior devido às mudanças climáticas globais. Que lições seu estudo do Katrina oferece para o enfrentamento de novas ocorrências?

Calhoun – De fato, sabemos que as mudanças climáticas tendem a provocar mais eventos extremos, com furacões e outros desastres. Há uma geografia desses eventos que mostra que as áreas costeiras e outras regiões específicas são particularmente vulneráveis. Um importante aspecto dessa geografia diz respeito ao planejamento urbano. Na grande maioria dos casos, não construímos cidades levando em conta como elas poderiam enfrentar eventos desse tipo.

Depois do Katrina, tivemos, em 2012, o furacão Sandy, que impactou fortemente a costa de Nova York. Isso fez com que as pessoas percebessem que o desenvolvimento futuro da cidade de Nova York precisa incluir preparações para eventos desse tipo. Algumas providências, como a instalação de geradores alternativos para produzir eletricidade, não dizem respeito diretamente às Ciências Sociais. Mas outras, como a criação de sistemas de evacuação ou sistemas de atendimento a pessoas desabrigadas, são questões de Ciências Sociais.

Trabalhos como os realizados por agências humanitárias em várias partes do mundo, dando assistência a refugiados por causa de guerras ou desastres naturais, tendem a se tornar cada vez mais importantes, inclusive em países ricos.

Aprendemos com esses eventos que a pobreza e a desigualdade são fatores definidores dos impactos de furacões ou outros desastres. Quando existe água por todos os lados, quem vive nas áreas mais baixas e alagadiças? Os pobres. Quando existe vento por todos os lados, quem vive em construções mais vulneráveis e sujeitas a desabar? Os pobres. A importância das desigualdades foi claramente evidenciada em New Orleans por ocasião do Katrina.

Temos outra importante questão social, que diz respeito às pessoas que vivem sozinhas. Na sociedade contemporânea, há mais pessoas vivendo sozinhas do que em qualquer época anterior. E essas pessoas são especialmente vulneráveis no contexto de desastres.

Agência FAPESPO senhor trabalhou no Chifre da África, no nordeste do continente. Em que medida essa experiência influenciou suas concepções acerca das mudanças que propõe para as Ciências Sociais?
Calhoun – Minhas concepções realmente se baseiam em várias experiências internacionais. No caso do Chifre da África, a experiência direta me ensinou o que eu não havia aprendido em livros. Por exemplo, quando estive pela primeira vez no Sudão, no início dos anos 1980, uma das lições que aprendi foi a importância da infraestrutura física. As Ciências Sociais normalmente não prestavam muita atenção à infraestrutura física, como estradas e eletricidade. Mas isso muda a vida social, determina a interconexão entre diferentes partes do país, define a maneira como as pessoas podem trabalhar ou não. Nessa época, o Sudão tinha apenas uma única estrada intermunicipal pavimentada.
Também entendi a relatividade de dados estatísticos, como o Produto Interno Bruto (PIB). No início dos anos 1980, o Sudão tinha um PIB muito próximo ao da Malásia e o Egito possuía um PIB quase igual ao da China. O PIB é um número grosseiramente enganoso. Mesmo naquela época, o Egito não estava em uma posição confortável comparativamente à China. Isso se deve em parte ao fato de que o PIB não computa as heranças históricas, como o fato de que a China possuía uma rede de trabalhadores em todo o país, de que o nível de educação era melhor na China, de que o nível de saúde era melhor na China. Entendi que os indicadores superficiais, como “baixa renda” ou “média renda”, são altamente enganosos. O nível de renda não informa sobre a verdadeira riqueza de um país.

O último ponto que gostaria de ressaltar sobre o Chifre da África, especialmente sobre o Sudão e a Eritreia, é a importância de comunidades e sociedades sob o nível do Estado nacional e através do Estado nacional. Toda a região é um complexo de inter-relações, em que cada país é, em parte, determinado pelos seus vizinhos, em que refugiados e incursões militares atravessam as fronteiras nacionais e abalam fortemente a situação, em que grupos tribais e comunidades originais e linguísticas são muito fortes, e em que não fica muito claro como as pessoas se identificam.

Dou um exemplo do Sudão. Uma comissão constitucional propôs que deveria haver várias línguas nacionais que reconhecessem todas as principais nacionalidades existentes no país. E houve um protesto do povo saho contra a inclusão de sua língua no sistema educacional. Isso era estranho. Por quê? A resposta foi que, se suas crianças fossem educadas em saho, suas oportunidades seriam muito bloqueadas, o que os manteria sempre em estado de subdesenvolvimento. Então, eles pediam educação em árabe. É apenas um exemplo, mas permite perceber quão complicada é a relação entre diferentes identidades, em diferentes escalas.

Agência FAPESPIsso vem ao encontro de um dos importantes subtemas abordados em sua palestra: a relação entre sociedade e sociedades. Sociedades, com suas características próprias, incluídas na sociedade maior, supostamente representada pelo Estado nacional. Qual o peso desse tipo de relação no atual conflito do Oriente Médio?
Calhoun – Temo que esse conflito se torne cada vez pior. Há muitas coisas diferentes convergindo nele. Parte da questão são os conflitos religiosos. E lembremos que não são apenas conflitos envolvendo islamismo, cristianismo e judaísmo, mas também conflitos envolvendo xiitas e sunitas e grupos ainda mais específicos no interior do islã. É por isso que o Ocidente não entende muito claramente o que está acontecendo.

Há também uma questão de Estados. Consideramos, por exemplo, o caso do Irã. Existem interesses próprios, não pelo fato de o Irã ser xiita, mas por ser um Estado específico. Há também interesses de povos que não têm um Estado, como os curdos. Um dos poucos vencedores na atual situação são os curdos, que, pela primeira vez, talvez possam formar seu Estado, no norte do Iraque.

Existe a vulnerabilidade das populações minoritárias. Os Estados nacionais são muitas vezes acusados de genocídio, de tentar impor a supremacia da população majoritária. Apesar disso, às vezes, são capazes de proteger minorias e alcançar uma paz relativa. Intervir, como os Estados Unidos fizeram, por meio da Guerra do Iraque, desestabilizando o Estado, também coloca as minorias em risco. E não devemos achar que os Estados nacionais sejam a única fonte de genocidas. A desestabilização em situações em que existem muitos povos diferentes tentando viver em paz uns com os outros também é um fator de genocídios.

A guerra do Iraque foi um desastre não mitigável para a região. Talvez algumas pessoas tenham tido boas intenções, mas foi um desastre, que colocou em movimento uma série de eventos. Esses eventos também têm outras causas, mas, agora, foi criada uma situação muito difícil de pacificar e estabilizar. E uma situação na qual é impossível ver justiça. Se apenas conseguirmos a paz já será um grande passo adiante. Mas não haverá justiça para a maioria dos refugiados, que foram forçados a abandonar suas casas.

Agência FAPESPEm sua palestra, o senhor criticou o conceito, hoje bastante difundido, de “Tina” (acrônimo para “There is no alternative” – “Não há alternativa”). A situação atual do capitalismo é apresentada como algo tão natural que nos iludimos pensando que ela jamais poderá ser mudada.
Calhoun – Do meu ponto de vista, uma das primeiras condições para as Ciências Sociais, especialmente para as Ciências Sociais críticas, que eu acredito serem as ciências reais no caso, é reconhecer que “Tina” não é verdade. Quase sempre há alternativas, algumas melhores, outras piores. Se acreditarmos que aquilo que existe atualmente é natural, necessário, inevitável, seremos incapazes de entendê-lo. Não apenas não entenderemos os futuros possíveis, mas também não entenderemos a realidade corrente, porque não entenderemos por que esse conjunto específico de condições existe e não outros. Eu acho que este ponto de vista crítico não é propriedade de nenhuma corrente de pensamento específica. Mas precisamos reconhecer que aquilo que existe é apenas parte do possível, se quisermos entender tanto a realidade corrente como as realidades futuras.

Em vídeo [em inglês]