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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Produzir conhecimento e difundir conhecimento: o que, afinal, damos a conhecer?


'Barreiras psicológicas' impedem que mais pessoas atuem contra mudanças climáticas, diz pesquisador

Para psicólogo Per Espen Stoknes, medo e culpa ajudam a criar impedimentos emocionais à ação contra fenômeno; é preciso mudar narrativa: 'mudanças climáticas são oportunidade para cooperação global e para criar sociedade mais justa'
Akuppa John Wigham / Flickr CC

Como fazer as pessoas se preocuparem com as mudanças climáticas?


Per Espen Stoknes, um psicólogo e economista norueguês, tem pensado muito sobre uma questão que tem inquietado climatologistas há anos: por que até agora os humanos têm falhado em lidar com a ameaça iminente das mudanças climáticas?

Esta pergunta é o foco de seu mais novo livro, What We Think About When We Try Not To Think About Global Warming [“O que pensamos quando tentamos não pensar sobre o aquecimento global”, em tradução livre], no qual ele analisa o que chama de cinco barreiras psicológicas que têm tornado difícil lidar realisticamente com a crise climática. Entre elas estão: a característica distante do problema (é longe no tempo e muitas vezes em outras partes do globo); os cenários apocalípticos e pessimistas sobre os impactos da mudança climática, o que faz com que as pessoas se sintam impotentes para fazer qualquer coisa; e as defesas psicológicas que as pessoas criam para evitar seu sentimento de culpa sobre sua própria contribuição às emissões de combustíveis fósseis.

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Na entrevista a seguir, Stoknes, que é cofundador de três empresas de energia limpa e ajuda a liderar o BI Centro de Estratégias do Clima da escola de comércio Norwegian Business School, falou sobre essas barreiras e sobre como a discussão sobre as mudanças climáticas precisa ser reformulada. "Precisamos de novos tipos de histórias", diz. "Histórias que nos contem como a natureza é resiliente e pode se recuperar e voltar a um estado mais saudável se lhe dermos uma chance para isso."
Leia a íntegra da entrevista a seguir.

Cientistas e jornalistas têm nos alertado há anos sobre as mudanças climáticas. Mas você diz que a mensagem não está sendo recebida. Por que não?
Meu livro começa com o que chamo de paradoxo psicológico sobre o clima. Pesquisas de longa duração mostram que as pessoas estavam mais preocupadas com as mudanças climáticas nas democracias saudáveis há 25 anos do que estão hoje. Então, quanto mais ciência, quanto mais avaliações do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) temos, quanto mais as evidências se acumulem, menos preocupado o público está. Para uma mente racional, isso é um completo mistério.
 
Você está sugerindo que, na verdade, o impacto inicial das notícias sobre as mudanças climáticas mexeram um pouco o medidor, mas depois do alerta inicial esse medidor voltou à posição inicial, e as pessoas voltaram a não se preocupar?
Com certeza. No fim da década de 1980, isso era um novo temor, não tínhamos ouvido muito sobre isso antes. [O cientista] Jim Hansen realmente deu um furo no noticiário internacional em 1988... Naquele ponto, houve uma onda de conscientização ambiental. A Terra começou a parecer frágil de uma nova forma. Mas com as notícias divulgadas por mais tempo, começamos a nos habituar a elas. E quando começou a ficar claro que o nosso próprio estilo de vida era responsável por essas novas ameaças, então diversas barreiras psicológicas começaram a surgir e a criar um ciclo de negação.
 
Por que você escreveu esse livro? 
Aos poucos, tornou-se claro que chegou a hora em que precisamos mudar nosso discurso sobre o sistema climático para falar sobre a resposta das pessoas às ciências climáticas.  Como é possível que nos comportemos de maneira tão autodestrutiva que, de forma aparentemente inevitável, estamos levando o planeta para além do limite de 2 graus [Celsius] que os cientistas propuseram [para evitar mudanças climáticas perigosas]?

Os climatologistas têm tentado nos educar sobre isso por tanto tempo que estão frustrados e exaustos. Alguns se tornaram cínicos, dizendo que parece que os humanos estão fadados à autodestruição, que talvez nossos genes não sejam bem equipados para lidar com problemas de longo prazo. Parece que preferimos comer o bolo inteiro hoje sem nos importar com as próximas décadas.
 
Há alguma forma de contornar essa inabilidade em pensar em longo prazo?
A pergunta que me impulsiona e que alimenta a minha pesquisa é: será que a humanidade está à altura da tarefa, ou somos inevitavelmente seres que pensam em curto prazo? Ou, para dizer de forma mais construtiva, quais são as condições sob as quais os humanos começarão a pensar e agir levando em consideração o longo prazo em relação ao clima? É possível identificar os mecanismos ou as funções da psique humana que nos permitiria agir em longo prazo? E, se sim, quais são esses e como eles podem ser fortalecidos?
 
A rejeição às ciências climáticas é um fenômeno global?
Precisamos esclarecer que isso é um fenômeno cultural. Porque em países como Tailândia e Filipinas, ou na América Latina e em países do sul da Europa, a preocupação sobre as mudanças climáticas é bem grande. Portanto, é uma questão que envolve, em particular, pessoas de democracias ricas. É muito mais difícil para alguém em Bangladesh, que é fortemente vulnerável, que vive numa região costeira, dizer que a elevação do nível do mar não está acontecendo, porque estão realmente vivendo isso. Se uma seca destrói as plantações de um fazendeiro ou uma monção falha, significa miséria. Mas aqui [nos Estados Unidos e na Europa Ocidental], sempre podemos ir a uma loja e comprar coisas produzidas em algum outro lugar, pois temos o dinheiro para distanciar-nos do impacto imediato das rupturas climáticas.
É muito mais difícil permitir que a psicologia cultural interfira quando você está face a face com uma monção que não veio ou com uma seca e toda a sua lavoura foi perdida.
 
Por que é tão difícil para as pessoas no mundo desenvolvido aceitarem as mudanças climáticas?
Há cinco barreiras psicológicas principais: distância, cenário apocalíptico, dissonância, negação e identidade. O livro é sobre isso. E o motivo pelo qual a comunicação das ciências climáticas é tão complicada é que ela desencadeia essas barreiras uma após a outra.

A primeira barreira é a distância. Se você olhar nos relatórios do IPPC ou de outros grupos, eles estão usando gráficos que mapeiam variáveis diferentes que tipicamente terminam no ano 2100. Então você posiciona os fatos de forma a criar uma distância psicológica, é tão longe no tempo futuro que parece menos importante, e o senso de urgência diminui. Ou seja, quando foi a última vez que você tomou uma decisão para o próximo século?

As pessoas acham que isso é bem longe: não é aqui e agora, também é lá em cima no Ártico ou na Antártida, afeta outras pessoas, não a mim, eu estarei velho antes disso acontecer de verdade, outras pessoas são responsáveis, não eu. Distanciamo-nos disso de tantas formas que os fatos puros não são suficientes para gerar uma sensação de risco corroborada.

Outro fator que desencoraja as pessoas a lidar com as mudanças climáticas é o fato que muitas vezes ela é apresentada como um cenário pessimista e apocalíptico. Estudos mostram que mais de 80% das reportagens relacionadas aos relatórios de avaliação do IPPC abordam inicialmente o retrato catastrófico. Apenas 2% usaram o que chamo de perspectiva de oportunidade.

O que sabemos a partir de estudos na psicologia é que se você usar excessivamente imagens que induzem ao medo, você provocará nas pessoas medo e culpa, e isso faz com que elas se tornem mais passivas, o que contraria o engajamento. Isto também inclui a criatividade. Se você dá às pessoas uma mensagem que induz medo ou culpa e então pede que resolvam um problema que requer pensamento criativo, há uma redução estatisticamente significante na quantidade de criatividade que as pessoas conseguem apresentar para formular as soluções.

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Takver / Flickr CC

'Emergência climática': marcha por ação contra as mudanças climáticas em Melbourne, setembro de 2014

 
Outra barreira que você cita é a dissonância. O que você quer dizer com isso? 
A dissonância é aquele desconforto interno quando me sinto um hipócrita, quando o meu conhecimento sobre a mudança climática não combina com as minhas ações para parar isso. Sabemos que o nosso uso de combustíveis fósseis contribui para o aquecimento global, ainda assim continuamos dirigindo, voando, comendo carne ou usando aquecimento a partir de combustíveis fósseis; então, configura-se dissonância.

Psicólogos descobriram que as pessoas são bem criativas no que se refere a encontrar formas de aliviar essa tensão entre pensamentos e atos. Uma estratégia para lidar com isso pode ser dizer: "Bom, eu não emito muito carbono pessoalmente, são os chineses, as corporações, ou outra pessoa. É o meu vizinho com seu carrão, ou meu amigo que voa mais do que eu". Outra estratégia é duvidar. Então dizemos que realmente não é certo que o dióxido de carbono cause aquecimento global. Ou alguns físicos dizem que é a atividade solar.

Podemos entender porque a indústria dos combustíveis fósseis pode ter um interesse econômico em espalhar essas ideias, mas por que as pessoas querem acreditar nessa informação falsa? Se eu puder acreditar naqueles que duvidam, então minha dissonância some. Eu não preciso me sentir mal comigo mesmo.
 
É aí que entra a negação? 
Sim. O próximo nível é a negação completa, quando negamos, ignoramos ou evitamos conhecer os fatos inquietantes sobre as mudanças climáticas. A palavra "negação" talvez tenha sido usada demasiadamente de forma pejorativa contra o outro lado que é [retratado como] imoral, ou ignorante, ou o inimigo. Mas a negação psicológica é um processo que todos temos e usamos. É uma maneira de nos defender.

Aqueles que rejeitam as mudanças climáticas estão se vingando daqueles que criticam seu estilo de vida e querem dizer como outras pessoas devem viver. Quando [os políticos norte-americanos] Ted Cruz ou Marco Rubio falam sobre mudanças climáticas, eles não são necessariamente estúpidos ou ignorantes ou imorais, mas estão reforçando um contrato social que diz que isso é um problema que não devemos levar a sério.

Isso está conectado ao nosso senso de identidade. Cada pessoa tem um senso de identidade baseado em certos valores: um lado profissional, um político, um nacional. Nós naturalmente procuramos informações que confirmem nossos valores e noções já existentes, e filtramos tudo o que as desafiam.
Psicólogos sabem que se você critica uma pessoa para tentar mudá-la, provavelmente apenas reforçará sua resistência. Isso foi empiricamente demonstrado pelo professor de Direito e Psicologia Dan Kahan em Yale, que descobriu que, quanto mais os ideólogos conservadores conhecem sobre ciência, mais são capazes de errar sobre mudança climática. Usam tudo o que sabem sobre ciência para criticar as ciências climáticas e defender seus valores.

Quais são então as suas recomendações em termos de como reformular a discussão sobre mudanças climáticas para que ela alcance mais pessoas?
Precisamos de novos tipos de histórias, histórias que nos contem como a natureza é resiliente e pode se recuperar e voltar a um estado mais saudável se lhe dermos uma chance para isso. Precisamos de histórias que nos contam que podemos colaborar com a natureza, que podemos, como o Papa Francisco tem incitado, nos tornar guardiões e parceiros do mundo natural ao invés de dominadores dele. Precisamos de histórias sobre um novo tipo de felicidade que não seja baseada no consumo material.

Como temos uma compreensão muito boa dessas barreiras, esse é um bom lugar para começar. Precisamos derrubar as barreiras para que elas se tornem estratégias bem sucedidas. Em vez de algo distante, os comunicadores precisam fazer com que as mudanças climáticas sejam sentidas como algo perto, pessoal e urgente. Em vez do apocalipse inevitável, precisamos enfatizar as oportunidades que a crise nos oferece.

As mudanças climáticas são uma oportunidade para o desenvolvimento econômico; um sistema energético inteiro precisa ser redesenhado a partir do desperdício do século anterior para um modo muito mais inteligente de fazer as coisas. É uma grande oportunidade para melhorar a colaboração global e o compartilhamento de conhecimento e criar uma sociedade mais justa. Portanto, as mudanças climáticas são uma oportunidade fantástica para encorajar o surgimento da nossa humanidade global. Precisamos falar sobre isso.

Tradução: Jessica Grant
Entrevista original publicada no site Yale Environment 360.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Portais, excessos, ajustes

07/08/2015 às 14:35

O modelo dos portais se esgotou?

Escrito por: Luiz Gustavo Pacete
Fonte: Meio e Mensagem 
Aqui, do clipping FNDC

A decisão do Terra de focar em curadoria e conteúdo levanta algumas questões sobre o enfraquecimento de sites com formatos tradicionais

Em sua definição a palavra portal remete à entrada principal, aquilo que dá acesso a um outro ambiente. Com a chegada da internet, os portais eram relevantes e necessários. Ainda em 2009, na era pré-Facebook, dados da comScore mostravam quem liderava a internet no Brasil. Em primeiro lugar vinha o Google, seguido por Microsoft, UOL, Yahoo, Terra e Globo. Naquele período, a principal audiência vinha de casa e do trabalho.
 
A rápida alteração no perfil do usuário e na oferta de plataformas transformou o cenário. Em 2012, o Facebook liderava o ranking dos maiores acessos com 54,99% de preferência, de acordo com dados da Experian Hitwise, ferramenta de inteligência digital da Serasa Experian. Em segundo lugar estava o YouTube. Atualmente, a predominância de acesso está nas redes.
 
A notícia de que o Terra demitiu 80% de sua redação para focar em curadoria e conteúdo, nesta quinta-feira 6, traz alguns questionamentos sobre o êxito dos modelos de portais no Brasil. Ana Brambilla, doutoranda em comunicação digital pela Universidade Austral, de Buenos Aires, destaca alguns motivos que contribuíram para que os portais perdessem força. O primeiro é o distanciamento dos critérios de noticiabilidade com os interesses do público que afastaram a audiência. “Além disso, o modelo generalista voltado a um público que não sabia explorar o que a web oferecia não funciona mais. Internet não é meio de massa, ela é nicho, segmentação e personificação de conteúdo”, ainda de acordo com a especialista, os portais genéricos possuem dificuldade de traçar o perfil de sua audiência.
 
Ainda que, enquanto formato, existam questionamentos sobre a eficiência de um portal, um dado recente divulgado pelo Digital News Report, da Reuters, indica que a relação da audiência é muito mais com a marca e o conteúdo do que com a plataforma. O estudo mostra que o Brasil é o País onde mais se consome notícia via redes sociais. Do montante de usuários da rede, 70% se informam via redes sociais, aproximadamente 47% das notícias são compartilhadas via redes sociais e 44% delas são comentadas nesses ambientes. Na conclusão do relatório, o brasileiro é o que mais consome notícia online, cerca de 72% dos usuários da internet. A principal fonte de notícia no Brasil já é a internet, usada por 44% dos usuários.O estudo também identificou o hábito desses consumidores e constatou que 23% estão dispostos a pagar por noticia online, 23% usam o smartphone como principal forma de se informar, 6% utilizam o tablet e 59% compartilham notícias via redes sociais. A plataforma com maior número de usuários é o Facebook, utilizado por 70% dos usuários, seguida pelo YouTube, com 34%, WhatsApp, 34% e há um empate entre Google+ e Twitter usados por 15% dos usuários. Os sites mais acessados são G1, UOL e R7.
 
Veja como mudou o interesse dos usuários de notícias entre 2005 e 2015:
 
 
Quem liderava a internet no Brasil em 2009*:
 
1- Google 
2 - Microsoft 
3 - UOL 
4 - Yahoo 
5 - Terra  
6 - Globo 
7 - Grupo Brasil Telecom 
8 - Wikimedia  
9 - Mercado Livre 
10 -WordPressFonte: comScore*em número de acessos
 
Quem lidera a internet no Brasil em 2015*:
 
1 – Google
2 - Facebook
3 - YouTube
4 - UOL
5 - Globo.com
6 - Yahoo!
7 - Live.com
8 - MercadoLivre
9 - Wikipedia
10 - TwitterFonte: Digital News Report
 
* em número de acessos
 
Os portais de notícias mais acessados: 
 
 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Pesquisar a contemporaneidade, isto é, a aceleração, a globalização e o individualismo

O papel das Ciências Sociais em um mundo em mudança acelerada

12/08/2014
Agência Fapesp
Por José Tadeu Arantes
Craig Calhoun, diretor da London School of Economics, fala sobre a responsabilidade da área como instrumento para a compreensão crítica da realidade e intervenção na esfera pública (foto: Leandro Negro/Ag. FAPESP)
Agência FAPESP – Que traços melhor caracterizam o mundo contemporâneo? Entre as grandes mudanças ocorridas no cenário global quais são aquelas que de maneira mais completa definem o tempo presente? Como transitar da perplexidade que essas mudanças inspiram para sua inteligibilidade em grandes quadros interpretativos? Essas foram, resumidamente, as principais indagações que o sociólogo Craig Calhoun procurou responder em palestra realizada em julho na sede da FAPESP, em São Paulo.

Nascido em 1952, o norte-americano Calhoun tornou-se diretor da prestigiosa London School of Economics and Political Science (LSE) em setembro de 2012. Antes disso, dentre várias atividades, desempenhou, nos Estados Unidos, as funções de professor de Ciências Sociais na New York University e de presidente do Social Science Research Council (SSRC), organização independente dedicada ao avanço da pesquisa em Ciências Sociais e áreas afins.

A despeito de ter nascido e se graduado nos Estados Unidos, Calhoun tem conexões antigas com o Reino Unido, pois fez mestrado em Antropologia Social na University of Manchester e doutorado em Sociologia e História Econômica e Social Moderna na University of Oxford. Igualmente determinantes em sua trajetória intelectual foram os trabalhos que realizou em outros países, notadamente na conturbada região do Chifre da África.

Mesmo com o importante cargo que ocupa atualmente, Calhoun faz questão de manter um posicionamento intelectual crítico e um trato pessoal informal e acessível (confira seu blog em http://blogs.lse.ac.uk/craig-calhoun/).

A palestra que proferiu na FAPESP foi pautada por um texto que produziu recentemente em parceria com o sociólogo Michel Wieviorka, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, intitulado Manifesto pelas Ciências Sociais (a versão integral pode ser lida em francês em http://socio.hypotheses.org/147).

A pergunta feita no início desta apresentação foi assim respondida por Calhoun e Wieviorka em seu manifesto: “Dentre as mudanças que obrigam as Ciências Sociais a transformar seus modos de aproximação, as mais espetaculares podem ser resumidas a duas expressões: a globalização e o individualismo. São duas lógicas que, em conjunto, balizam o espaço no interior do qual a pesquisa cada vez mais é chamada a se mover.”

A palavra ‘globalização’, em sentido amplo, inclui dimensões econômicas, mas também culturais, religiosas, jurídicas etc. Hoje, numerosos fenômenos abordados pelas Ciências Sociais são ‘globais’, ou suscetíveis de serem observados sob esse ângulo”, prossegue o texto mais à frente.

Quanto ao individualismo, o manifesto o caracteriza como “um segundo fenômeno, não menor, porém mais difuso”. E afirma: “Seu impulso traduziu-se desde cedo na pesquisa por um interesse sustentado pelas teorias da escolha racional, mas também, e principalmente, em tempos mais recentes, pela consideração, cada vez mais frequente, da subjetividade dos indivíduos.”

Depois de sua palestra, Calhoun concedeu a seguinte entrevista à Agência FAPESP:

Agência FAPESPA nova realidade global é muito diferente daquelas nas quais surgiram e se desenvolveram as teorias sociais clássicas, nos séculos XIX e XX, fato enfatizado em sua conferência. Quais são as diferenças mais significativas?

Craig Calhoun – Algumas das principais diferenças entre o período histórico atual e os anteriores incluem a intensificação da globalização e, nessa intensificação, o maior papel desempenhado pelas finanças. Trata-se não apenas de uma nova configuração do capitalismo em geral, mas, especificamente, do capitalismo financeiro. Outro item é o retorno da geopolítica. Vemos nos conflitos mundiais uma mistura de questões geográficas, políticas, culturais e civilizacionais, que apresentam padrões diferentes daqueles que caracterizavam o período da Guerra Fria. A Guerra Fria, de certa maneira, bloqueava esse tipo de geopolítica, que vemos hoje nas crises da Síria, do Iraque, da Ucrânia e tantas outras.

Outra diferença é a emergência de um capitalismo informal em larga escala. Quando pensamos no setor informal, geralmente pensamos em pequenas unidades produtivas, localizadas em residências, favelas etc. Mas, hoje, a economia informal atingiu uma escala gigantesca, incomparavelmente maior do que aquela que havia antes. Existe, nesse segmento, o narcotráfico e o tráfico humano, mas não apenas isso. Há muitas outras atividades, movimentando grandes somas de dinheiro.

O mundo contemporâneo também é moldado por questões ambientais, em um grau que jamais vimos: as mudanças climáticas globais, a questão dos recursos hídricos e de outros recursos, a poluição e a degradação das periferias das grandes cidades, questões relacionadas com justiça ambiental, quem ganha e quem perde em relação ao meio ambiente.

Finalmente, sublinharia a questão do déficit institucional. Muitas instituições que ajudavam as pessoas a manejar riscos em sua vida ordinária foram corroídas ou perderam financiamento ou enfrentam problemas. Construir e fortalecer instituições que ajudem as pessoas a resolver os problemas em suas vidas são grandes questões em todo o mundo.

Agência FAPESPA respeito das questões ambientais, o senhor estudou a influência do contexto social no agravamento dos danos causados por desastres naturais. É bastante conhecido seu estudo dessa contextualização no caso do furacão Katrina, de 2005. Eventos extremos como esse tendem a ocorrer com frequência cada vez maior devido às mudanças climáticas globais. Que lições seu estudo do Katrina oferece para o enfrentamento de novas ocorrências?

Calhoun – De fato, sabemos que as mudanças climáticas tendem a provocar mais eventos extremos, com furacões e outros desastres. Há uma geografia desses eventos que mostra que as áreas costeiras e outras regiões específicas são particularmente vulneráveis. Um importante aspecto dessa geografia diz respeito ao planejamento urbano. Na grande maioria dos casos, não construímos cidades levando em conta como elas poderiam enfrentar eventos desse tipo.

Depois do Katrina, tivemos, em 2012, o furacão Sandy, que impactou fortemente a costa de Nova York. Isso fez com que as pessoas percebessem que o desenvolvimento futuro da cidade de Nova York precisa incluir preparações para eventos desse tipo. Algumas providências, como a instalação de geradores alternativos para produzir eletricidade, não dizem respeito diretamente às Ciências Sociais. Mas outras, como a criação de sistemas de evacuação ou sistemas de atendimento a pessoas desabrigadas, são questões de Ciências Sociais.

Trabalhos como os realizados por agências humanitárias em várias partes do mundo, dando assistência a refugiados por causa de guerras ou desastres naturais, tendem a se tornar cada vez mais importantes, inclusive em países ricos.

Aprendemos com esses eventos que a pobreza e a desigualdade são fatores definidores dos impactos de furacões ou outros desastres. Quando existe água por todos os lados, quem vive nas áreas mais baixas e alagadiças? Os pobres. Quando existe vento por todos os lados, quem vive em construções mais vulneráveis e sujeitas a desabar? Os pobres. A importância das desigualdades foi claramente evidenciada em New Orleans por ocasião do Katrina.

Temos outra importante questão social, que diz respeito às pessoas que vivem sozinhas. Na sociedade contemporânea, há mais pessoas vivendo sozinhas do que em qualquer época anterior. E essas pessoas são especialmente vulneráveis no contexto de desastres.

Agência FAPESPO senhor trabalhou no Chifre da África, no nordeste do continente. Em que medida essa experiência influenciou suas concepções acerca das mudanças que propõe para as Ciências Sociais?
Calhoun – Minhas concepções realmente se baseiam em várias experiências internacionais. No caso do Chifre da África, a experiência direta me ensinou o que eu não havia aprendido em livros. Por exemplo, quando estive pela primeira vez no Sudão, no início dos anos 1980, uma das lições que aprendi foi a importância da infraestrutura física. As Ciências Sociais normalmente não prestavam muita atenção à infraestrutura física, como estradas e eletricidade. Mas isso muda a vida social, determina a interconexão entre diferentes partes do país, define a maneira como as pessoas podem trabalhar ou não. Nessa época, o Sudão tinha apenas uma única estrada intermunicipal pavimentada.
Também entendi a relatividade de dados estatísticos, como o Produto Interno Bruto (PIB). No início dos anos 1980, o Sudão tinha um PIB muito próximo ao da Malásia e o Egito possuía um PIB quase igual ao da China. O PIB é um número grosseiramente enganoso. Mesmo naquela época, o Egito não estava em uma posição confortável comparativamente à China. Isso se deve em parte ao fato de que o PIB não computa as heranças históricas, como o fato de que a China possuía uma rede de trabalhadores em todo o país, de que o nível de educação era melhor na China, de que o nível de saúde era melhor na China. Entendi que os indicadores superficiais, como “baixa renda” ou “média renda”, são altamente enganosos. O nível de renda não informa sobre a verdadeira riqueza de um país.

O último ponto que gostaria de ressaltar sobre o Chifre da África, especialmente sobre o Sudão e a Eritreia, é a importância de comunidades e sociedades sob o nível do Estado nacional e através do Estado nacional. Toda a região é um complexo de inter-relações, em que cada país é, em parte, determinado pelos seus vizinhos, em que refugiados e incursões militares atravessam as fronteiras nacionais e abalam fortemente a situação, em que grupos tribais e comunidades originais e linguísticas são muito fortes, e em que não fica muito claro como as pessoas se identificam.

Dou um exemplo do Sudão. Uma comissão constitucional propôs que deveria haver várias línguas nacionais que reconhecessem todas as principais nacionalidades existentes no país. E houve um protesto do povo saho contra a inclusão de sua língua no sistema educacional. Isso era estranho. Por quê? A resposta foi que, se suas crianças fossem educadas em saho, suas oportunidades seriam muito bloqueadas, o que os manteria sempre em estado de subdesenvolvimento. Então, eles pediam educação em árabe. É apenas um exemplo, mas permite perceber quão complicada é a relação entre diferentes identidades, em diferentes escalas.

Agência FAPESPIsso vem ao encontro de um dos importantes subtemas abordados em sua palestra: a relação entre sociedade e sociedades. Sociedades, com suas características próprias, incluídas na sociedade maior, supostamente representada pelo Estado nacional. Qual o peso desse tipo de relação no atual conflito do Oriente Médio?
Calhoun – Temo que esse conflito se torne cada vez pior. Há muitas coisas diferentes convergindo nele. Parte da questão são os conflitos religiosos. E lembremos que não são apenas conflitos envolvendo islamismo, cristianismo e judaísmo, mas também conflitos envolvendo xiitas e sunitas e grupos ainda mais específicos no interior do islã. É por isso que o Ocidente não entende muito claramente o que está acontecendo.

Há também uma questão de Estados. Consideramos, por exemplo, o caso do Irã. Existem interesses próprios, não pelo fato de o Irã ser xiita, mas por ser um Estado específico. Há também interesses de povos que não têm um Estado, como os curdos. Um dos poucos vencedores na atual situação são os curdos, que, pela primeira vez, talvez possam formar seu Estado, no norte do Iraque.

Existe a vulnerabilidade das populações minoritárias. Os Estados nacionais são muitas vezes acusados de genocídio, de tentar impor a supremacia da população majoritária. Apesar disso, às vezes, são capazes de proteger minorias e alcançar uma paz relativa. Intervir, como os Estados Unidos fizeram, por meio da Guerra do Iraque, desestabilizando o Estado, também coloca as minorias em risco. E não devemos achar que os Estados nacionais sejam a única fonte de genocidas. A desestabilização em situações em que existem muitos povos diferentes tentando viver em paz uns com os outros também é um fator de genocídios.

A guerra do Iraque foi um desastre não mitigável para a região. Talvez algumas pessoas tenham tido boas intenções, mas foi um desastre, que colocou em movimento uma série de eventos. Esses eventos também têm outras causas, mas, agora, foi criada uma situação muito difícil de pacificar e estabilizar. E uma situação na qual é impossível ver justiça. Se apenas conseguirmos a paz já será um grande passo adiante. Mas não haverá justiça para a maioria dos refugiados, que foram forçados a abandonar suas casas.

Agência FAPESPEm sua palestra, o senhor criticou o conceito, hoje bastante difundido, de “Tina” (acrônimo para “There is no alternative” – “Não há alternativa”). A situação atual do capitalismo é apresentada como algo tão natural que nos iludimos pensando que ela jamais poderá ser mudada.
Calhoun – Do meu ponto de vista, uma das primeiras condições para as Ciências Sociais, especialmente para as Ciências Sociais críticas, que eu acredito serem as ciências reais no caso, é reconhecer que “Tina” não é verdade. Quase sempre há alternativas, algumas melhores, outras piores. Se acreditarmos que aquilo que existe atualmente é natural, necessário, inevitável, seremos incapazes de entendê-lo. Não apenas não entenderemos os futuros possíveis, mas também não entenderemos a realidade corrente, porque não entenderemos por que esse conjunto específico de condições existe e não outros. Eu acho que este ponto de vista crítico não é propriedade de nenhuma corrente de pensamento específica. Mas precisamos reconhecer que aquilo que existe é apenas parte do possível, se quisermos entender tanto a realidade corrente como as realidades futuras.

Em vídeo [em inglês]

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Humanidade digital - O que é? Quem faz?

11/11/2013 - Copyleft

A duplicação digital do mundo 

e os seus riscos

Em entrevista à Carta Maior, Eric Sadin fala sobre a capacidade crescente dos dispositivos digitais inteligentes de controlar as nossas vidas.


Eduardo Febbro Divulgação

Paris - Já não estamos sós. Um duplo ou muitos duplos nossos permanecem nos incontáveis Data Center do mundo, nas redes sociais, nas memórias gigantescas do Google ou da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, a NSA. É o que o ensaísta francês Eric Sadin, um dos autores mais proféticos e brilhantes na análise das novas tecnologias, chama de “humanidade paralela”.

 Em cada um de seus livros anteriores, “Surveillance Globale”, “La Société de l’anticipation”, Eric Sadin explorou como poucos as mutações humanas inerentes ao surgimento da hiper-tecnologia em nossas vidas. Longe de se contentar com um anedotário trivial dos instrumentos tecnológicos que surgiram nas últimas três décadas, Sadin os pensa de uma forma inédita. Seu último livro, “L’Humanité Augmentée, L’administration numérique du monde” (A Humanidade aumentada, a administração digital do mundo), explora a capacidade cada vez maior que os dispositivos inteligentes têm para administrar o rumo do mundo.

O livro ganhou na França o Hub Awards 2013, um prêmio que recompensa o melhor ensaio do ano. Para Eric Sadin, Hall 9000, o computador super-potente da nave Discovery no filme “2001, uma Odisseia no Espaço”, deixou há muito de ser uma ficção: Hal 9000 foi inclusive superado pela tendência atual na direção de uma “administração robotizada da existência”. GPS, Iphone, Smartphone, sistemas de gestão centralizados que decidem por si mesmo, rastreabilidade permanente, tudo conflui para a criação do que o autor chama de um “órgão sintético que repele toda dimensão soberana e autônoma”.

Em entrevista à Carta Maior, Eric Sadin analisa esse duplo tecnológico que nos facilita muitas coisas e ao mesmo tempo nos espreita a ponto de transformar nossa humanidade.

Eric Schmidt, o presidente do Google, diz em seu último livro, “The New Digital Age”, que “acabamos de deixar os starting-blocks” da revolução digital. Você, ao contrário, estima que a revolução digital está acabando. Fim ou nova fase?

A década atual assinala o fim do que se chamou de “revolução digital” que começou no princípio dos anos 80 mediante a digitalização cada vez maior do real: a escrita, o som, a imagem fixa e animada. Esse amplo movimento histórico se deu paralelamente ao desenvolvimento das redes de telecomunicação e tornou possível o advento da internet, ou seja, a circulação exponencial dos dados na rede: as condições de acesso à informação, o comércio e a relação com os outros através dos correios eletrônicos e das redes sociais.

Hoje, esta arquitetura que não parou de se desenvolver e se consolidar está solidamente instalada em escala global e permite o que chamo de “a era inteligente da técnica”. Nosso tempo instaura uma relação com a técnica que já não está prioritariamente fundada sobre uma ordem protética, ou seja, como uma potência mecânica superior e mais resistente que a de nosso corpo, mas sim como uma potência cognitiva em parte superior à nossa. Há robôs imateriais “inteligentes” que coletam massas abissais de dados, os interpretam à velocidade da luz ao mesmo tempo em que são capazes de sugerir soluções supostamente mais pertinentes e inclusive de agir em nosso lugar como ocorre com o “trading algorítmico”, por exemplo.

Em seu último ensaio, “A humanidade aumentada, a administração digital do mundo”, você expõe um mundo cartografado de maneira constante pelos sistemas digitais. Você mostra a emergência de uma espécie de humanidade paralela – as máquinas – destinadas a administrar o século XXI. Uma pergunta se impõe: o que fica então de nossa humanidade?

Desde o Renascimento, nosso potencial humano se fundou sobre a primazia humana constituída pela faculdade de julgar, a faculdade de decisão e, por conseguinte, da responsabilidade individual que funda o princípio da Lei. A assistência das existências por sistemas “inteligentes”, além de representar uma evolução cognitiva, redefine de fato a figura do humano como senhor de seu destino em benefício de uma delegação progressiva de nossos atos para outros sistemas. Uma criação humana, as tecnologias digitais, contribui paradoxalmente para debilitar o que é próprio ao ser humano, ou seja, a capacidade de decidir conscientemente sobre todas as coisas. Esta dimensão em curso se amplificará nos próximos anos.

Você se refere ao surgimento de um componente “orgânico-sintético que repele toda dimensão soberana e autônoma”. Em resumo, o mundo, nossas vidas, está sob o comando do que você chama de “a governabilidade algorítmica”. O ser humano deixou de administrar.

Não se trata de que já não administra, mas sim de que o fará cada vez menos em benefício de amplos sistemas supostamente mais eficazes em termos de optimização e de segurança das situações individuais e coletivas. Isso corresponde a uma equação que está no coração da estratégia da IBM. Esta empresa implementa arquiteturas eletrônicas capazes de administrar por si mesmas a regulação dos fluxos de circulação do tráfego nas estradas, ou a distribuição de energia em certas cidades do mundo. Isso é possível graças à coleta e ao tratamento ininterrupto de dados: os estoques de energia disponíveis, as estatísticas de consumo, a análise dos usuários em tempo real.

Estas informações estão conectadas com algoritmos capazes de lançar alertas, de sugerir iniciativas ou assumir o controle decidindo por si mesmo certas ações: aumento da produção, compras automatizadas de energia nos países vizinhos, o corte do fornecimento em certas zonas.

Isso equivale a uma espécie de perda maior de soberania.

A meta consiste em buscar a optimização e a segurança em cada movimento da vida. Por exemplo, fazer que uma pessoa que passa perto de uma loja de calçados possa se beneficiar com a oferta mais adequada ao seu perfil, ou que alguém que passeia em uma zona supostamente perigosa receba um alerta sobre o perigo.

Vemos aqui o poder que se delega à técnica, ou seja, o de orientar cada vez com mais liberdade a curva de nossas existências. Esse é o aspecto mais inquietante e mais problemático da relação que mantemos com as tecnologias contemporâneas.

O escândalo de espionagem que explodiu com o caso Prism, o dispositivo mediante o qual a NSA espiona todo o planeta, expôs algo terrível: não só nossas vidas, nossa intimidade, são acessíveis, mas elas estão digitalizadas, convertidas em Big Data, duplicadas.

Prism revelou dois pontos cruciais: em primeiro lugar, a amplitude abismal, quase inimaginável, da coleta de informações pessoais: em segundo, a colusão entre as empresas privadas e as instâncias de segurança do Estado. Este tipo de coleta demonstra a existência de certa facilidade para apoderar-se dos dados, guardá-los e depois analisá-los para instaurar funcionalidades de segurança. A estreita relação que liga os gigantes da rede com a NSA deveria estar proibida pela lei, salvo em ocasiões específicas. De fato, não é tanto a liberdade o que diminui, mas sim partes inteiras de nossa vida íntima.

O meio ambiente digital favoreceu o aprofundamento inédito na história do conhecimento das pessoas. Este fenômeno está impulsionado pelas empresas privadas que coletam e exploram essas informações, frequentemente recuperadas pelas agências de segurança e também por cada um de nós mediante as ondas que disseminados permanentemente, às vezes sem consciência disso, às vezes de maneira deliberada. Por exemplo, através da exposição da vida privada nas redes sociais.

O caso NSA-Prism representa um marco na história. De alguma maneira, mesmo que as pessoas tenham reagido de forma passiva, perdemos a inocência digital. Você acredita que ainda persiste a capacidade de revelar-se nesta governabilidade digital?

Haverá um antes e um depois do caso Prism. Ele mostrou até que ponto a duplicação digital de nossas existências participa da memorização e de sua exploração. Isso ocorreu em apenas 30 anos sob a pressão econômica e das políticas de segurança sem que tenha sido possível instaurar um debate sobre o que estava em jogo. Esse é o momento para tomar consciência, para empreender ações positivas, para que os cidadãos e as democracias se apropriem do que está em jogo, cujo alcance concerne à nossa civilização.

A ausência da Europa no caso deste roubo planetário tem sido tão escandalosa quanto covarde. Você, no entanto, está convencido de que o Velho Mundo pode desempenhar um papel central.

Parece-me que a Europa, em nome de seus valores humanistas históricos, em nome de sua extensa tradição democrática, deve influir na relação de forças geopolíticas da internet e favorecer a edificação de uma legislação e de uma regulamentação claras. O termo “Big Data”, para além das perspectivas comerciais que possui, indica esse momento histórico no qual todos estamos copiados sob a forma de dados que podem ser explorados em uma infinidade de funcionalidades.

Trata-se de uma nova inteligibilidade do mundo que emerge através de gigantescas massas de dados. Trata-se de uma ruptura cognitiva e epistemológica que, me parece, deve ser acompanhada por uma “carta ética global” e marcos legislativos transnacionais.

Em seu livro você se refere a uma figura mítica do cinema, Hal, o sistema informático da nave Discovery, que aparece no filme 2001, uma Odisseia no Espaço. Hal é, para você, a figura que encarna nosso futuro tecnológico através da inteligência artificial.

Hal é um sistema eletrônico hiper-sofisticado que representa a personagem principal do filme de Stanley Kubrick. Hal é um puro produto da inteligência artificial, capaz de coletar e analisar todas as informações disponíveis, de interpretar as situações e agir por conta própria em função das circunstâncias.

Exatamente como certos sistemas existentes no “trading algorítmico” ou no protocolo do Google. Hal não corresponde mais a uma figura imaginária e isolada, mas sim a uma realidade difusa chamada infinitamente a infiltrar setores cada vez mais amplos de nossa vida cotidiana.

Nessa mesma linha, para você, se situa o Iphone ou os Smartphones. Não se trata de joguinhos, mas sim de um quase complemento existencial.

Creio que a aparição dos Smartphones em 2007 corresponde a um acontecimento tecnológico tão decisivo como o da aparição da internet. Os Smartphones permitem a conexão sem ruptura espaço-temporal. Com isso, os Smartphones expõem um corpo contemporâneo conectado permanentemente, ainda mais na medida em que pode ser localizado via GPS. Através dele também se confirma o advento de um “assistente robotizado” das existências por meio dos inúmeros aplicativos capazes de interpretar uma grande quantidade de situações e de sugerir a cada indivíduo as soluções supostamente mais adaptadas.

Esses objetos, que são táteis, nos fazem manter uma relação estreita com o tato. Mas, ao mesmo tempo em que tocamos, as coisas se tornam invisíveis: toda a informação que acumulamos desaparece na memória dos aparatos: fotos, vídeos, livros, notas, cartas. Estão, mas são invisíveis.

De fato, esse duplo movimento deveria nos interpelar. Nossa relação com os objetos digitais se estabelece segundo ergonomias cada vez mais fluidas, o que alenta uma espécie de crescente proximidade íntima. A anunciada introdução de circuitos em nossos tecidos biológicos amplificará o fenômeno. Por outro lado, essa “familiaridade carnal” vem acompanhada por uma distância crescente, por uma forma de invisibilidade do processo em curso.
Isso é muito emblemático no que diz respeito aos Data Centers que contribuem para modelar as formas de nosso mundo e escapam a toda visibilidade. É uma necessidade técnica. No entanto, essa torsão assinala o que está em jogo em nosso meio ambiente digital contemporâneo: por um lado, uma impregnação contínua dos sistemas eletrônicos; por outro, uma forma de opacidade sobre os mecanismos que o compõem.

Os poderes públicos, principalmente na Europa, são incapazes de administrar o universo tecnológico, de enquadrá-lo com leis ou fixar-lhe limites. A ignorância reina, mas a tecnologia termina por se impor, do mesmo modo que as finanças, a todo o espectro político.

Estamos vivendo no interior de um regime temporal que se torna exponencial, prioritariamente mantido pela indústria que impõe suas leis. O próprio dos regimes democráticos é sua faculdade deliberativa, sua capacidade coletiva para escolher conscientemente as regras que orientam o curso das coisas. Esse componente está hoje eminentemente fragilizado. Sem nostalgia, eu diria que vamos ter que lidar ativamente e sob diversas formas com a amplitude do que está em jogo eticamente, tanto agora como no futuro, sob a indução desta “tecnologização” de nossas existências. Tanto nas escolas como nas universidades. Creio que é urgente ensinar o código, a composição agorítmica, a inteligência artificial. Creio que são os professores de “humanidade digital” que deveriam ingressar nas escolas e contribuir para despertar as consciências e ajudar a encontrar as perspectivas positivas que estão se abrindo com este movimento.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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