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terça-feira, 21 de abril de 2015

Para além dos estereótipos midiáticos, a vida!

Terceira geração de palestino-israelenses reinventa ativismo antiocupação e por direitos civis em Israel




Filhos de sobreviventes do Nakba, jovens cresceram vendo parentes em Gaza e Cisjordânia sendo oprimidos e hoje lutam por libertação palestina enquanto buscam transformar estado de Israel por mais igualdade para todos os cidadãos
ActiveStills.org / Reprodução Facebook

Mais de 3.000 palestino-israelenses protestam contra a investida de Israel contra Gaza em julho de 2014

Para a maioria dos judeus israelenses, estes ativistas não têm nomes. Na pior das hipóteses, são agitadores e arremessadores de pedras que empunham a bandeira palestina. Na melhor, são uma minoria discriminada.

Seu novo ativismo é, por um lado, resultado de divisões geracionais e novas tecnologias que os conectaram ao restante do mundo árabe, que permaneceu interditado à população palestina desde a criação do Estado de Israel. Por outro lado, é também resultado dos recentes ataques israelenses contra seus parentes na Cisjordânia e em Gaza, da violência policial discriminatória e de um longo histórico de repressão política.

Muitos fatores ajudaram a dar forma a esta nova geração de ativistas palestinos em Israel. Eles usam nomes variados, definem suas identidades de maneira diversa e têm táticas e objetivos políticos também variados. Lutam pela libertação nacional palestina e por direitos civis em Israel, priorizando cada um dos tópicos de acordo com considerações estratégicas e táticas, e têm várias abordagens quanto à macropolítica.

A maioria destes jovens ativistas, quando vai às ruas, levanta a bandeira palestina, algo pouco visto entre as gerações anteriores de palestinos vivendo em Israel. Sua identidade nacional e expressividade, no entanto, foram amplamente influenciadas pela vida no Estado judeu.

"A primeira vez em que meu pai me viu carregando uma bandeira palestina, ele ficou louco", diz Abed Abu Shhadeh, 26 anos, de Jaffa. "Antes de Oslo, era ilegal fazer isso, e os palestinos morriam de medo da bandeira. Hoje, vemos muitas delas".

Esta é a terceira geração de cidadãos palestinos em Israel. A primeira geração experimentou o Nakba, deslocamento e expulsão da maioria dos palestinos da atual região fronteiriça de Israel, em 1948, bem como a destruição de quase todos os seus vilarejos. A segunda geração cresceu com medo: foram criados pelos sobreviventes do Nakba, viveram sob o governo militar de Israel e eram constantemente ameaçados e controlados pelo Estado, explica Rawan Bisharat.

"A terceira geração, especificamente desde a Intifada de 2000, é aquela que está se rebelando hoje. São caracterizados por sua força", continua. Mas frequentemente seus pais tentam impedi-los. Por causa da opressão sofrida pelas gerações anteriores, eles têm medo da expressividade política de seus filhos, bem como de suas consequências. "Eles não querem discutir a identidade nacional palestina com seus filhos, pois têm medo".

Rawan, 32 anos, originalmente de Nazaré, vive em Jaffa há cinco anos, onde é ativa em movimentos políticos e sociais. Ela é a coordenadora palestina do programa juvenil da Sedaka-Reut, uma ONG focada na educação da juventude palestina e judia, para que sejam mais ativos política e socialmente na criação de parcerias binacionais em prol da mudança social. Ela foi voluntária em uma organização chamada "Mulheres contra a Violência", em Nazaré, por mais de uma década, e trabalha com um grupo que prepara estudantes árabes do ensino médio para a educação superior. "Como minoria palestina, a educação é nossa arma", declara.

[Leia também: Militares dissidentes de Israel enfrentam lei e se recusam a ocupar Palestina]

Enquanto todos os ativistas com quem conversei se definiam como árabes, também colocavam grande importância em sua identidade palestina.

"Palestinos em Ramallah podem se dizer palestinos – ninguém questionará. Mas para os palestinos de Israel, é preciso destacar isso", diz Rawan, adicionando que quando conversa com israelenses, "gosto de dizer que sou uma palestina de 48, ou seja, uma palestina com cidadania israelense, para deixar claro que há palestinos aqui [em Israel]. Nunca houve um Estado palestino, mas os palestinos viviam aqui. Minha avó era palestina, portanto sou palestina".

A identidade palestina é o cerne da luta desta geração, explica Hanin Majadli, 25, de Baqa al-Gharbiyye, que constituiu um séquito de fãs judeu-israelenses no Facebook, onde publica lições diárias de árabe. "Nós somos palestinos; somos palestinos a quem se impediu essa autoidentificação. É importante para mim que os israelenses saibam que eu não sou apenas uma 'israelense árabe', mas uma árabe palestina. Esta é uma nacionalidade que estão tentando esconder".

De muitas maneiras, a crescente expressividade da identidade nacional palestina entre cidadãos árabes de Israel é uma reação ao sionismo contemporâneo. Enquanto a política e a sociedade israelenses se voltam para a direita, os cidadãos palestinos se apegam a suas nacionalidade e herança palestinas com mais força.

"As leis malucas aprovadas nos últimos anos afetam as pessoas e a maneira como se identificam. É incrível como um grupo muito pequeno dentro da sociedade israelense conseguiu levar todo mundo para a extrema direita", diz Abed, explicando que, com a expressão "todo mundo", inclui os palestinos.

Mesmo aqueles que, de outra forma, não seriam atraídos pelo nacionalismo palestino, abraçam-no como uma defesa contra a radicalização e a intensificação do nacionalismo sionista, explica Hanin. "Eu sinto a necessidade de me apegar a quem sou. Os palestinos, hoje em dia, sentem uma grande necessidade de salientar que são palestinos".

"Assim como o Hamas, os judeus israelenses de extrema-direita realmente acreditam que esta é uma batalha religiosa, e em um período curto de tempo, conseguiram levar todo mundo para a direita", diz Abed.

[Leia também: Israel cria obstáculos para ensino de gramática árabe nas escolas]

O processo de paz de Oslo da década de 1990 deu às pessoas esperança por um futuro melhor, um futuro de autodeterminação nacional palestina e, para os cidadãos palestinos de Israel, um futuro de direitos iguais e oportunidades.

Mas algo mudou no ano de 2000. No início de outubro daquele ano, coincidindo com o fracasso do processo de paz e o início da Segunda Intifada, a polícia israelense matou 13 cidadãos árabes enquanto continha protestos em Nazaré e na Galileia.

Os assassinatos confirmaram os maiores medos da população palestina: não importa o que fizessem, ou o quanto quisessem se envolver, seriam tratados como cidadãos de segunda categoria, simplesmente por serem árabes.

"A Intifada de 2000 foi quando todo mundo viu uma mudança", diz Rawan. "A consciência política era muito evidente, e estava claro que nós [palestinos] estávamos todos ligados uns aos outros. Por um lado, vimos um crescimento da consciência política, e, por outro lado, perdemos nossas esperanças nas instituições israelenses".

"A cada guerra e a cada intifada, quando as pessoas em Jaffa assistem ao noticiário, elas veem são seus parentes da Cisjordânia e de Gaza", complementa Abed. Estes jovens ativistas se sentem parte inseparável da totalidade do povo palestino, e seus destinos estão entrelaçados.



Shiraz Grinbaum / ActiveStill.org - Reprodução Facebook

Majd Kayyal: "Nossa identidade é definida de acordo com nossa luta. Nós somos árabes palestinos"


O ano de 2000 também é citado como divisor de águas na história dos palestinos israelenses por outro motivo. Tendo estado separados do restante do mundo árabe até então, o progresso tecnológico permitiu que os palestinos de Israel se reconectassem com os árabes da região.

"Com a introdução da televisão por satélite e da internet como novos canais de comunicação, houve um aumento na conscientização, no conhecimento", explica Majd Kayyal. "Isto trouxe maiores oportunidades para o compartilhamento de informações, bem como mais ativismo. Algo começou a mudar desde outubro de 2000. As pessoas se tornaram mais ousadas, no melhor sentido da palavra. Vários movimentos se tornaram menos ociosos, menos amedrontados".

No ano passado, Majd foi preso e mantido incomunicável por cinco dias após retornar de Beirute, onde participou de uma conferência jornalística. Sua visita ao Líbano e sua prisão subsequente foram uma das pautas do movimento pela identidade pan-árabe palestina, defendida por muitos cidadãos palestinos de Israel.

"Nossa identidade é definida de acordo com nossa luta. Nós somos árabes palestinos. Nós queremos ser palestinos livres para que possamos ser árabes. Queremos ser palestinos livres, para que possamos integrar naturalmente o mundo árabe, sem sermos prejudicados de uma maneira ou de outra; para que eu possa ter a oportunidade de deixar minha cidade e ir viver no Cairo, por exemplo, sem dores de cabeça", continua Majd. "A identidade palestina é crucial para isso, assim como a identidade árabe é necessária para confrontarmos o colonialismo. A identidade árabe, se não cumprisse o papel de resistência contra o colonialismo ocidental e europeu, também se tornaria fascista, assim como no regime de Saddam Hussein".

Mas a identidade não é uma ideia simples ou binária, seja no domínio pessoal ou no domínio político. Enquanto estes jovens ativistas se identificam cada vez mais com o movimento nacional palestino, eles também são cidadãos israelenses e lutam por direitos civis dentro do Estado judeu. A ideia e a realidade de não ser judeu no Estado judeu é parte da batalha.

"Nós não somos israelenses", diz Hanin. "Não o somos em um sentido muito elementar: o israelense é judeu, e o judeu é israelense. Em minha opinião, são sinônimos. Israelense é considerado uma nacionalidade aqui, não apenas uma cidadania. Nossa nacionalidade é palestina, e somos parte do povo palestino. Sim, vivo no Estado judeu, mas não sou judeu, e não sou um cidadão normal. Eu sou um cidadão árabe em um Estado ocupante com identidade nacional judia".

 [Leia também: Um circo para as crianças de Gaza]

O que estes jovens palestinos israelenses estão exigindo, exatamente? Estão liderando um movimento por direitos civis ou são parte da luta nacional palestina?

"Eu não separo as duas coisas, nem vejo como podem diferir uma da outra", responde Rawan. "Eu vivo aqui, eu quero ser parte destas instituições e também quero igualdade civil, mas isto não significa que tenha esquecido a causa palestina. Eu quero que os judeus reconheçam os crimes que cometeram contra meu povo. Não há contradição: quero que reconheçam seus erros, assumam responsabilidades por suas ações e façam a coisa certa, e também quero que me concedam a igualdade que mereço".

Hanin elabora: "O objetivo final é a liberação total do sionismo, mas é claro que qualquer passo temporário na melhora de nossos status como cidadãos árabes palestinos de Israel também é bem-vindo. Não devemos nos esquecer de que, a despeito de nosso objetivo de longo prazo, também somos cidadãos deste país, e queremos exigir aquilo que merecemos como cidadãos".

O sionismo é percebido como o principal obstáculo, tanto para a obtenção de direitos civis, quanto para a obtenção de liberdade para os palestinos cujas terras foram ocupadas e se encontram cercados, explica Majd: "Enquanto a atual estrutura política continuar existindo, nós não obteremos nossos direitos civis, nossa independência nacional ou o Estado com as fronteiras de 1967 – nada. Enquanto houver algo chamado 'Estado judeu', construído com base em princípios sionistas e racistas, não haverá perspectiva de qualquer tipo de mudança. Não importa quão 'modestas' sejam suas demandas, você não conseguirá qualquer progresso para os palestinos se não lidarmos com essa questão".

[Leia também: Empresas de Israel e dos EUA se aliam para aplicar tecnologia militar testada em Gaza na fronteira com México]

"Quando as pessoas falam sobre o conflito, é como se estivessem falando sobre um conflito entre duas partes iguais", diz Abed. "Na realidade, uma das partes é significativamente mais forte do que a outra, sem falar na ocupação e no confinamento, que não nos deixam qualquer espaço para manobras políticas". Parte de protestar e tomar as ruas, complementa, tem como objetivo levar os judeus israelenses a "repensar seus pontos de vista sobre os cidadãos palestinos, e começar a compreender que mais poder não os levará a lugar algum".

Enquanto a maioria destes ativistas tem como objetivo mudar completamente o regime, sua luta não apresenta uma visão clara para o futuro. "Nossa ambição é viver em um Estado no qual a cidadania garanta direitos iguais a judeus e árabes, e que não dê preferência a uns sobre outros ou distinga entre um árabe e um judeu. Isso pode soar um pouco louco, mas se o muro de Berlim foi destruído e o Império Otomano caiu após 700 anos, há esperança. Ou não fazemos nada, porque nada vai mudar, ou fazemos algo, e acreditamos que podemos mudar as coisas, ao menos um pouco", diz Hanin.

Rawan chega a sugerir que a separação étnica estrutural é uma possível solução: "Eu acho que nós, como minoria palestina em Israel, precisamos começar a estabelecer nossas próprias organizações e instituições, que sirvam a nossos interesses. Nós ainda não estamos prontos para começar um projeto assim, e talvez não tenhamos as habilidades ou os recursos, mas temos que começar a pelo menos pensar nessa direção".

"Há algo que nós, palestinos, tendemos a esquecer: as lutas nacionais tomam centenas de anos. Não vejo uma solução nos próximos dez anos, mas enquanto houver vontade, haverá uma saída", diz Abed. "Enquanto os refugiados ainda quiserem voltar e lutar, será apenas uma questão de tempo".

Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada na +972 Magazine, produzida por blogueiros, jornalistas e fotógrafos israelenses contra a ocupação cujo foco são matérias e análise sobre eventos em Israel e Palestina.

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A propósito, uma bela sugestão cinematográfica: "Além da fronteira", de 2012.



Nimer, um estudante palestino, e Roy, um advogado israelense, apaixonam-se desde a primeira vez em que se encontram. À medida que a relação dos dois se desenvolve, Nimer tem que lidar com sua família conservadora e com sua condição de palestino morando em Israel. A situação piora quando um amigo próximo é capturado em Tel Aviv e assassinado na Cisjordânia.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Wikiprocessos: informação, deformação, desinformação...

A Wikfarsa e a verdadeira ameaça à democracia

O que ameaça a democracia é a capacidade de um veículo de comunicação transformar algo irrelevante em um suposto escândalo nacional. 

Boletim Carta Maior


Vinicius Wu Divulgação

O episódio da alteração dos perfis de Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardemberg na plataforma colaborativa Wikipédia tem tudo para entrar para a história do jornalismo brasileiro como uma das mais grosseiras e levianas tentativas de manipulação da informação e de criação de factóides, com evidente motivação político-eleitoral. Porém, o mais importante no caso é compreendermos que, ao contrário do que sustentam as supostas "vítimas", não é a edição de seus perfis o que ameaça a democracia, mas sim a capacidade de um veículo de comunicação transformar algo irrelevante em "escândalo" nacional.

A repercussão desproporcional do caso em alguns veículos de imprensa só pode ser explicada pelo contexto eleitoral, onde percebe-se, claramente, a dificuldade dos candidatos oposicionistas em viabilizarem-se, apesar de todo esforço empreendido pelos monopólios de comunicação e pelo setor financeiro. Trata-se de uma das mais inusitadas - e surpreendentes - tentativas de desgaste do atual governo já realizadas pelos grandes veículos de mídia. Seria risível, se não fosse preocupante.

Até o mundo mineral sabe que não há qualquer controle sobre as edições realizadas na Wikipédia e que é muito difícil rastrear toda a rede que serve ao Palácio do Planalto, portanto, é muito provável que o "responsável" pela edição dos perfis jamais seja encontrado. Logo, nunca saberemos o que, de fato, ocorreu.

Talvez isso explique a desfaçatez de Miriam Leitão ao afirmar, em artigo publicado em O Globo, que "alguém deu ordem para que isso fosse executado" e que isso faz parte de"uma política". Fazer afirmações dessa natureza é tão leviano quanto afirmar que a própria jornalista teria feito as alterações, apenas para ganhar notoriedade. Simplesmente não há como provar uma coisa nem outra.

Há muitas questões a serem levantadas no episódio. Por ora, pode-se afirmar qualquer coisa e levantar suspeitas sobre qualquer um! E, a propósito, cabe suscitar algumas questões: Por que tendo sido feita há meses, a edição só foi "denunciada" agora? E por que não supor que um jornalista qualquer, em visita ao Palácio, possa ter feito o "serviço"? Além disso, qual "crime" mesmo teria sido cometido? Alteração de uma plataforma aberta virou crime no Brasil? Afirmar que um jornalista "faz previsões desastrosas" é caluniar alguém? E por que O Globo dedica mais espaço a esse tema do que ao Aeroporto construído na Fazenda do Tio de Aecio? São apenas algumas dúvidas bem pertinentes sobre o caso. Poderíamos estender a lista.

Mas o que, realmente preocupa no caso, é a tentativa de transformar um episódio banal em um escândalo com proporções nacionais. Isso sim é uma ameaça à democracia. Pois, se um veículo de comunicação pode pôr em risco a credibilidade de nossas Instituições democráticas apenas por que um de seus funcionários teve seu perfil alterado numa plataforma que busca, exatamente, a interferência e a colaboração de seus usuários, então temos um risco evidente ao processo democrático. Se essa farsa for bem sucedida - e tiver algum tipo de influência sobre as eleições - não haverá mais limites à manipulação da informação no Brasil. É o retorno ao debate editado de 1989. E isso em plena Era da internet!

Não é razoável que pautas verdadeiramente relevantes para o país sejam ofuscadas por uma sórdida tentativa de manipulação e interferência no processo eleitoral de um grupo de mídia privado. Menos, ainda, é razoável que um veículo de comunicação pretenda impor a uma nação de mais de 190 milhões de cidadãos um debate inócuo sobre um "escândalo" que não passa de uma piada de mau gosto.

Por fim, fica a expectativa de que o episódio acabe como apenas mais uma anedota das disputas eleitorais no Brasil, a exemplo da bolinha de papel de José Serra em 2010. Caso contrário, é melhor estar preparado para a emergência de um Poder absoluto no país, sob a tutela dos monopólios da informação. E como qualquer poder absoluto, este também representará uma séria ameaça à democracia.

(*) Vinicius Wu é secretário-geral do governo do Rio Grande do Sul e coordenador do Gabinete Digital.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Liberdade de expressão: pluralismo, desconcentração, circulação

Por que a concentração monopólica da mídia é a negação do pluralismo

O déficit de investimentos setoriais, as políticas públicas inconsistentes e a inércia regulatória afastaram o Estado do protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e telecomunicações. Em face da concentração monopólica, a possibilidade de interferência do público nas programações depende não só da capacidade reativa dos indivíduos, como também de se garantirem direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção e a circulação de dados, sons e imagens.

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Nos últimos meses, vem crescendo a mobilização de dezenas de entidades da sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta pela democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para expressar a liberdade”, que defende uma nova e abrangente lei geral de comunicações; e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, cuja finalidade é regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem princípios para a radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão).

São propostas fundamentais que têm como pressuposto a necessidade de se pôr fim à concentração monopólica da mídia. Por que a concentração favorece as ambições mercantis de grupos midiáticos, afeta a diversidade informativa e cultural e representa a negação do pluralismo? Este artigo propõe-se a lançar luzes sobre a questão, que tem a ver com a garantia constitucional da liberdade de expressão e com o aprofundamento dos direitos democráticos no país.

As últimas décadas acentuaram, no Brasil e na América Latina, o traço histórico de concentração de expressiva parcela dos meios de comunicação nas mãos de um reduzido número de megagrupos. A moldura de concentração prospera em meio à digitalização de sistemas, redes e plataformas de produção, transmissão e recepção de dados, imagens e sons. As infotelecomunicações (palavra que utilizo para designar a convergência tecnológica entre os setores de informática, telecomunicações e mídia) asseguram as condições objetivas para o crescimento exponencial da oferta de canais, produtos, serviços e conteúdos. Só que essa vocação expansiva se consolida sob controle, influência e lucratividade de poucas corporações, via de regra globais, ou nacionais e regionais em alianças estratégicas ou parcerias com gigantes transnacionais.

O ciclo de concentração monopólica está intimamente associado à diversificação produtiva apoiada em tecnologias de ponta e na capacidade de inovar em prazos curtíssimos e a custos reduzidos. Os focos das políticas de comercialização são a diminuição de custos industriais e enormes ganhos de produtividade com a economia de escala. Para preservar poderes monopólicos, as corporações recorrem a duas manobras principais, segundo David Harvey: "uma ampla centralização do capital em megaempresas, que busca avidamente o domínio por meio do poder financeiro, economias de escala e posição de mercado, e dos direitos monopólicos da propriedade privadas por meio de direitos de patente, leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual”[1].

Significa concentrar nas mesmas mãos todas as etapas dos processos tecnoprodutivos, com vistas a garantir liderança na cadeia de fabricação, processamento, comercialização e distribuição dos produtos. O lastro financeiro, a capacidade logística, a infraestrutura tecnológica e o controle de inovações e patentes conferem aos conglomerados multimídias vantagens competitivas incomparáveis, já que empresas nacionais de menor porte não têm recursos nem suportes para gerir investimentos de vulto[2]. Às pequenas e médias firmas restam nichos de mercado ou o fornecimento de insumos e serviços especializados, sempre que é mais vantajoso para as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja fabricação seria dispendiosa.

Os monopólios midiáticos são determinantes porque interferem na conformação do imaginário coletivo e em valores consensualmente aceitos e assimilados. No Brasil e na América Latina, tanto no âmbito público quanto na esfera privada, há fatores que contribuem, em graus variados mas não menos substanciais, para agravar a concentração. O déficit de investimentos setoriais, as políticas públicas inconsistentes e a inércia regulatória afastaram o Estado, nos últimos decênios, do protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e telecomunicações. Em contrapartida, grupos transnacionais ocuparam vorazmente os vácuos abertos, favorecidas por legislações frágeis, anacrônicas e permissivas, que lhes permitem acumular licenças de rádio e televisão – as joias da coroa em termos de faturamento e projeção política, ideológica e cultural.

Esse quadro nos leva a convergir com Néstor García Canclini quando avalia que a desigualdade na produção, na distribuição e no acesso aos bens culturais “não se explica como simples imperialismo ou colonialismo cultural (ainda que subsistam esses comportamentos), e sim pela combinação de processos expansivos, exercícios de dominação e discriminação, inércias nacionalistas e políticas culturais incapazes de atuar na nova lógica dos intercâmbios”.[3]

Com as desregulamentações e privatizações durante os anos 1980 e 1990, os megagrupos alastraram-se sem maiores restrições legais na América Latina. Eles adotam uma estratégia centrada em mercados mais seguros e rentáveis, estabelecendo parâmetros de produção, distribuição, difusão e circulação de conteúdos que lhes proporcionem crescente rentabilidade.

A estratégia é oportunista porque, constantemente, as majors abandonam segmentos arriscados em termos de investimentos (cinema e música) para operar prioritariamente em áreas com retornos mais imediatos (telenovelas, seriados, jogos eletrônicos) e nos meios de massa que atraem publicidade e patrocínios (imprensa, rádio, televisão). Aliam-se ainda a sócios ou parceiros globais e regionais que lhes ofereçam logísticas sólidas, financiamentos assegurados e inserção mercadológica.[4]

Em função da recessão econômica pós-2008 na Europa e nos Estados Unidos, as corporações transnacionais incrementaram a corrida por lucros compensatórios na América Latina. A região converteu-se em um dos mercados mais cobiçados para o escoamento de produtos e serviços. O vasto potencial de consumo, o espanhol como segundo idioma da globalização, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de legislações antimonopólio motivaram corporações, sobretudo norte-americanas, a incrementar os negócios, expandindo marcas, patentes e conteúdos no maior número possível de praças. News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou sedimentaram acordos com grupos regionais. Com isso, ampliaram exponencialmente suas atuações multissetoriais e os mercados, com as vantagens adicionais de reduzir e repartir custos e contornar fatores de risco – em especial os decorrentes da instabilidade econômica e do encolhimento da vida útil das mercadorias. Para os grupos regionais, tais associações representam a possibilidade de entrecruzar negócios e estabelecer alianças com atores de maior peso no cenário internacional.

Os quatro maiores conglomerados de mídia latino-americanos – Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; e Clarín da Argentina –, juntos, retêm 60% do faturamento total dos mercados latino-americanos. Para se ter uma ideia dos níveis recordes de concentração, basta saber que Clarín controla 31% da circulação dos jornais, 40,5% da receita da TV aberta e 23,2% da TV paga; Globo responde por 16,2% da mídia impressa, 54% da TV aberta e 44% da TV paga; Televisa e TV Azteca formam um duopólio, acumulando 69% e 31,37% da TV aberta, respectivamente.[5]

No Brasil, é aguda a concentração na televisão aberta. De acordo com levantamento do projeto Os Donos da Mídia, seis redes privadas (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT) dominam o mercado de televisão no Brasil. Essas redes privadas controlam, em conjunto, 138 dos 668 veículos existentes (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva. A Globo, além de metade da audiência, segue com ampla supremacia na captação de verbas publicitárias e patrocínios.[6]

Cabe salientar ainda que, no Brasil e na América Latina, a concentração monopólica se estabelece, há décadas, sob a égide de dinastias familiares proprietárias dos principais grupos midiáticos. Entre tais famílias estão Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad, Abravanel, Sarney, Magalhães e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga (Venezuela), Noble, Saguier, Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina), Slim e Azcárraga (México), Edwards, Claro e Mosciatti (Chile), Rivero, Monastérios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia (Bolívia), Ardila Lulle, Santo Domingo e Santos (Colômbia), Verci e Zuccolillo (Paraguai), Chamorro e Sacasa (Nicarágua), Arias e González Revilla (Panamá), Picado Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador), Marroquín (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikaffy, Willeda Toledo e Ferrari (Honduras).[7]

Entre os impactos mais graves da concentração, podemos apontar: as políticas de preços predatórias destinadas a eliminar ou a restringir severamente a concorrência; os controles oligopólicos sobre produção, distribuição e difusão dos conteúdos; e a acumulação de parentes e direitos de propriedade intelectual por cartéis empresariais. Martín Becerra chama a atenção ainda para o alto risco de unificação das linhas editoriais e a prevalência das ambições empresariais sobre os interesses do conjunto da sociedade. E acrescenta:

“A concentração vincula os negócios do espetáculo (estrelas exclusivas), dos esportes (aquisição de direitos de transmissão), da economia em geral (inclusão de entidades financeiras e bancárias) e da política (políticos transformados em magnatas da mídia ou em sócios de grupos midiáticos) com áreas informativas, o que gera repercussões que alteram a pretensa ‘autonomia’ dos meios de comunicação.”[8]

Os impactos negativos da transnacionalização cultural se refletem na ocupação oligopolizada e na desnacionalização das indústrias de entretenimento. Os dois principais mercados editoriais, Brasil e Argentina, estão majoritariamente nas mãos de grupos estrangeiros. As majors dominam as cadeias de distribuição e exibição cinematográficas, com supremacia de lançamentos de filmes estrangeiros. O mercado fonográfico apresenta desequilíbrios semelhantes. No Brasil as gravadoras independentes produzem 70% da música nacional, mas só conseguem 8% de espaço de difusão nas emissoras de rádio e televisão. Ao mesmo tempo, as majors gravam apenas 9% com repertório nacional e, no entanto, ficam com 90% dos espaços de divulgação.[9]

Sem contar que, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, os Estados Unidos tentam sempre impedir protecionismos nas indústrias audiovisuais (na forma de subsídios e fomentos), para favorecer os negócios de suas corporações. Os recursos de distribuição e exibição audiovisuais estão subordinados às estratégias traçadas pelas majors norte-americanas. “Conseguem isso com o apoio de políticas protecionistas e os privilégios impositivos que o governo norte-americano reserva à sua indústria cinematográfica, bem como através da pressão internacional sobre as demais nações para que favoreçam a expansão de seu cinema”.[10] O resultado é que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provêm dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes, seriados e eventos esportivos norte-americanos são apresentadas nas emissoras de TV latino-americanas.[11]

A concentração monopólica da produção simbólica guarda estreita proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas. As conveniências corporativas se fixam em estratégias de maximização de lucros e de manutenção da hegemonia mercadológica, sem demonstrar maior interesse com a formação educacional e cultural das platéias, muito menos com sentimentos de pertencimento e valores que configuram identidades nacionais, regionais e locais. A prevalência das lógicas comerciais manifesta-se no reduzido mosaico interpretativo dos fatos sociais; na escassa variedade argumentativa, em razão de enfoques ajustados a diretivas ideológicas das empresas; na supremacia de gêneros sustentados por altos índices de audiência e patrocínios (telenovelas, reality shows, esportes); nas baixas influências do público nas linhas de programação; no desapreço pelos movimentos sociais e comunitários nas pautas jornalísticas; na incontornável disparidade entre o volume de enlatados adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional. Em face da concentração monopólica, a possibilidade de interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade reativa dos indivíduos, como também, e sobretudo, de se garantirem direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção e a circulação de dados, sons e imagens.

À luz do exposto, podemos concluir que se torna insuperável a exigência de legislações antimonopólicas de comunicação, sobretudo na radiodifusão sob concessão pública, em função da penetração social e dos requisitos de interesse coletivo que as empresas concessionárias de canais de rádio e televisão devem cumprir para desempenhar suas funções de informar, esclarecer e entreter. Impossível imaginar uma democratização efetiva da vida social, com livre circulação de informações e pluralismo, diante do desmedido poder dos impérios midiáticos. São urgentes mecanismos legais para coibir a concentração e a oligopolização, além de permitir lisura e transparência aos mecanismos de concessão, regulação e fiscalização das licenças de rádio e televisão. Há exemplos inspiradores na América Latina: as novas leis de comunicação da Argentina e do Equador, que resultaram de processos participativos de discussão e elaboração e são reconhecidas por organismos internacionais como marcos regulatórios avançados.

São essenciais, também, políticas públicas que reorientem fomentos, financiamentos e patrocínios, de modo a valorizar meios alternativas de comunicação (como rádios e televisões comunitárias, agências de notícias independentes, mídias digitais), bem como apoiar a produção audiovisual nacional e preservar o patrimônio e as tradições culturais. Políticas debatidas entre segmentos representativos da sociedade e o poder público, e formuladas com realismo, considerando as mutações da era digital e seus efeitos nas atividades comunicacionais. Políticas que protejam a diversidade frente à transnacionalização simbólica e favoreçam a manifestação de vozes ignoradas ou excluídas dos canais midiáticos. Que estimulem a compreensão e a interpretação dos fatos de maneira plural, avaliando os múltiplos aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos envolvidos. Iniciativas, enfim, que possam intensificar a diversidade cultural e fazer prevalecer o direito humano à comunicação como bem comum dos povos.

* Desenvolvo questões abordadas neste artigo nos meus livros Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano (São Paulo, Boitempo/Faperj, 2013), e Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011).
Notas
[1] David Harvey. “A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura”, em Dênis de Moraes (org.), Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Rio de Janeiro: Record, 2003 (6a. ed., 2013), p. 148.

[2] Omar López e Sylvia Amaya. Panorama de las industrias culturales en Latinoamérica. Dimensiones económicas y sociales de las industrias culturales. Texto apresentado no II Seminario de Economía y Cultura, Montevidéu, 2004.

[3] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 95.

[4] Enríque Bustamante, “Industrias culturales y cooperación iberoamericana en la era digital”, Pensamiento Iberoamericano, Madri, n. 4, junho de 2009, p. 79-80.

[5] Martín Becerra e Guillermo Mastrini, Los dueños de la palabra: acceso, estructura y concentración de los medios en la América Latina del siglo XXI. Buenos Aires: Prometeo, 2009.

[6] O estudo realizado pelo projeto Os Donos da Mídia pode ser consultado aqui.

[7] Dênis de Moraes, Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação, Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011, p. 40.

[8] Martín Becerra, “Mutaciones en la superficie y cambios estructurales. América Latina en el Parnaso informacional”, em Dênis de Moraes (org.), Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 104.

[9] Beto Almeida. “Por telefone, perigosa desnacionalização da televisão ameaça soberania brasileira”, Brasil de Fato, São Paulo, n. 274, 29 de maio-4 de junho de 2008.

[10] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 87.

[11] Dênis de Moraes, Cultura mediática y poder mundial. Buenos Aires: Norma, 2006, p. 46.

*Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente, concedido pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano del Libro. Autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Texto originalmente publicado no Blog da Boitempo, com o qual Dênis colabora mensalmente.