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quarta-feira, 18 de março de 2015

"O homem é um ser político", Aristóteles


Pesquisa ajuda a desfazer equívocos historiográficos sobre as antigas cidades gregas

18 de março de 2015

Revista FAPESP

Projetos Temáticos desenvolvidos no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP contribuem para reescrever a história da Grécia antiga (imagem: reprodução/Agência FAPESP
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – É frequente identificar a antiga cidade grega apenas com seu núcleo urbano visível, especialmente com a Acrópole de Atenas. Mas pesquisas arqueológicas demonstraram que a pólis englobava área extensa, incluindo uma parte eventualmente mais urbanizada (ásty) e outra de povoamento menos denso (khôra), onde se praticava a agricultura, a pecuária, a coleta de lenha, mas também se morava.

A multifacetada relação entre centro e periferia na organização da pólis é objeto de dois Projetos Temáticos apoiados pela FAPESP: “A organização da khôra: a cidade grega diante de sua hinterlândia” e “Cidade e território na Grécia antiga: organização do espaço e sociedade” (concluído). Esses estudos vêm ajudando na revisão em profundidade da organização social e da vida cotidiana da Grécia nos períodos arcaico e clássico.

“Nossa visão do mundo grego foi muito sugestionada por uma certa conotação atribuída à palavra ‘política’, que é um adjetivo derivado de pólis. E é este o principal conceito que estamos revendo”, disse a historiadora Maria Beatriz Borba Florenzano, professora titular de Arqueologia Clássica no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e coordenadora dos projetos.

“Desde a criação dos Estados nacionais europeus, no período compreendido entre os séculos XV e XIX, o que se procurou na Antiguidade foram os aspectos relacionados com a autoridade, a estrutura de poder, as instituições etc. Então, a famosa frase de Aristóteles, de que ‘o homem é um animal político’, foi entendida em termos de organização em facções, de disputa pelo controle do Estado, de participação no governo ou na oposição etc. Mas, se fizermos uma leitura mais acurada, veremos que, ao empregar a palavra ‘política’, Aristóteles se referia a uma forma de vida específica do mundo grego, centrada na organização em cidades enquanto espaços extensos, englobando a ásty e a khôra, e não apenas à participação nas instituições que hoje chamamos de ‘políticas’, no sentido estrito da palavra”, prosseguiu a pesquisadora.

Florenzano enfatizou que essa abordagem revisionista é fruto da recente pesquisa arqueológica, que possibilitou uma releitura ou uma melhor contextualização dos textos clássicos.
Nesse processo, o Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca) vem dando sua parcela de contribuição. Fundado em 2006 no MAE-USP, o laboratório está estreitamente vinculado aos dois projetos temáticos citados.

“A historiografia sempre se baseou no estudo dos textos antigos. Mas a arqueologia permitiu desvelar outros aspectos, que os textos não mostravam. E essas são informações que o Labeca tem procurado difundir”, afirmou. Materiais diversos disponibilizados pelo laboratório podem ser acessados no site da instituição (http://labeca.mae.usp.br/pt-br/).

A visão da antiga Grécia oferecida por esses materiais é bem diferente da convencional. Havia, é claro, uma helenidade: todos falavam grego; até a região ser submetida pelo Império Macedônico, no século IV a.C., a sociedade se organizava em cidades independentes e não em um Estado centralizado; o panteão era um só (embora determinados deuses ou deusas fossem mais cultuados em um lugar do que em outros, ou fossem cultuados com certos atributos em um lugar e com atributos diferentes em outros).

Mas as pequenas cidades e o mundo rural eram bem mais relevantes do que fez supor a antiga historiografia. “Havia numerosas poleis com não mais do que mil habitantes e havia também algumas grandes poleis, como Atenas, com 150 mil habitantes, ou Siracusa, com 100 mil”, informou Florenzano.

“Antigamente a historiografia valorizava muito os grandes templos, localizados na ágora, a praça central da cidade antiga. Mas, quando inserimos esses grandes templos no contexto geral da pólis, percebemos que eles estavam conectados com outros espaços sagrados, distribuídos pela ásty e pela khôra. Havia caminhos específicos ligando uns aos outros e o conjunto dos caminhos formava uma rede que articulava o território todo”, afirmou.

“Verificamos, então, que o domínio da cidade se estendia sobre um território muito maior do que o núcleo densamente povoado. E podemos entender também as referências feitas nos textos antigos aos percursos por onde se deslocavam as procissões – como a grande procissão que integrava Atenas à cidade de Eleusis, onde eram celebrados os mistérios associados aos cultos das deusas agrícolas Deméter e sua filha Kore (a forma virginal e terrestre de Perséfone). São percursos que energizavam todo o território, dotando-o de uma sacralidade específica”, disse a historiadora.

Um exemplo específico, estudado pela professora Elaine Farias Veloso Hirata, pesquisadora do laboratório, foi a instauração do culto às duas deusas (Deméter e Kore) em Gela, cidade fundada pelos gregos na Sicília (hoje região autônoma da Itália). O estudo foi descrito no artigo “As práticas religiosas e a organização do espaço na Sicília arcaica: artefatos e estruturas entre a ásty e khóra em Gela”, publicado como capítulo do livro Imagem, gênero e espaço: representações da Antiguidade, de Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (organizador)(Niterói, Editora Alternativa-Capes, 2014).
“Nossa hipótese de pesquisa centra-se no papel desempenhado pelas áreas consagradas a Deméter-Kore, localizadas nos arredores da ásty, nos limites da khóra, como marcas territoriais do domínio greco-balcânico sobre a planície interiorana agriculturável ocupada pelas populações locais”, escreveu a historiadora.

Segundo Hirata, os santuários dedicados a essas deusas agrícolas (eram 25 na área de Gela) foram uma forma de os gregos, vindos de fora, se aproximarem das populações nativas, tornando manifesta sua presença e garantindo as posições conquistadas. Nessas áreas sagradas, eram realizadas as tesmofórias, festividades celebradas em honra a Deméter-Kore, nas quais estava interditada a presença de homens e só podiam participar as mulheres casadas com cidadãos.

Este e outros exemplos divergem do modelo construído pela historiografia tradicional de uma sociedade em que os únicos agentes históricos eram os cidadãos – categoria que excluía mulheres, crianças, estrangeiros e escravos.

O subtema foi desenvolvido pelo historiador Fabio Augusto Morales Soares no artigo “Cidadãos e habitantes: por uma dialética da pólis”, publicado como capítulo do livro Estudos sobre a cidade antiga, organizado por Maria Beatriz Borba Florenzano e Elaine Farias Veloso Hirata (São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2000), que contou com apoio para publicação da FAPESP.

“A historiografia do final do século XIX ao final do século XX tendeu a pensar a pólis como categoria central na organização narrativa da ‘história da Grécia antiga’, e essa pólis era a Atenas do período clássico; a pólis se identificava com uma ‘comunidade de cidadãos’, ou ‘comunidade de cidadãos em suas instituições’ (...)”, escreveu Soares.

No artigo, o historiador apontou várias tentativas, feitas na historiografia contemporânea, para incluir como sujeitos históricos os habitantes não cidadãos (mulheres, crianças, estrangeiros e escravos). E concluiu, escrevendo: “Se, por um lado, os cidadãos procuram, institucionalmente, monopolizar a política e, portanto, a apropriação da pólis, identificando-se com ela e formulando seus ‘outros’, os não cidadãos dispõem de meios não institucionais de prática política, pela qual eles se apropriam, como sujeitos políticos, da pólis vista como comunidade dos habitantes”.

Em seu estudo de mestrado, apoiado pela FAPESP, Soares estudou especialmente o exemplo de Lísias, célebre orador de ascendência estrangeira do período clássico: “A democracia ateniense pelo avesso: os metecos e a política dos discursos de Lísias”.


Reestudo do material disponível
A Grécia vem sendo escavada desde o Renascimento. Os museus e os institutos de patrimônio europeus têm arquivos e publicações repletos de materiais. A massa documental é gigantesca. Considerando essa variável e a dificuldade em obter autorizações para realizar novas escavações na Grécia, na Itália ou na Turquia, os pesquisadores do Labeca optaram por reestudar o material disponibilizado pelos arquivos e publicações.

“É claro que fizemos também várias viagens a campo, para recuperar bibliografia e mapas antigos e para visitar, fotografar e filmar os sítios arqueológicos, porque os nossos projetos também se inserem em uma arqueologia da paisagem. Levamos equipes e alunos, montamos bancos de dados, estabelecemos muitos contatos, na Grécia, na Itália e na França, mas não realizamos escavações”, afirmou Florenzano.

O projeto temático em curso, coordenado por ela, enfoca principalmente as muitas maneiras encontradas pelos gregos para ocupar o território de suas cidades e marcar fronteiras com outros gregos e os não gregos.




sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Memória, história, historiografia: a importância de dizer

Política| 16/11/2012 | Copyleft

"Marighella é um personagem absolutamente atual"

“O Marighella, goste-se ou não dele, não é um personagem que morreu no passado, é um personagem absolutamente atual. O Brasil está começando a conhecer Marighella, mas enquanto a história dele não for contada nos livros escolares, nos manuais de história, ele vai continuar sendo um maldito. Eu não advogo que os livros de história, nas escolas, propagandeiem o Marighella; nem defendo que sejam libelos contrários a ele, mas não contar a história do Marighella seria desonestidade intelectual. E é o que se faz hoje, desonestidade intelectual”, diz o jornalista Mário Magalhães, autor de "Marighella - o Guerreiro que Incendiou o Mundo".

Rio de Janeiro - “Esse Jango é frouxo”, ouviu Carlos Augusto Marighella, estudante de então 15 anos, de um cabeludo com pinta de motoqueiro. O cabeludo era Carlos Marighella, seu pai, disfarçado. E o encontro se deu em princípios de maio de 1964, em uma padaria nas cercanias do colégio onde o garoto estudava, na Tijuca, no Rio de Janeiro, como narra o livro “Marighella - o Guerreiro que Incendiou o Mundo”, do jornalista Mário Magalhães sobre a vida do ex-deputado comunista, guerrilheiro e fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), morto em 1969 em uma emboscada policial em São Paulo.

“O Marighella, goste-se ou não dele, não é um personagem que morreu no passado, é um personagem absolutamente atual. Como dizem os partidários de Marighella, ‘Marighella vive’. O Brasil está começando a conhecer Marighella, mas enquanto a história dele não for contada nos livros escolares, nos manuais de história, ele vai continuar sendo um maldito. Eu não advogo que os livros de história, nas escolas, propagandeiem o Marighella; nem defendo que sejam libelos contrários a ele, mas não contar a história do Marighella seria desonestidade intelectual. E é o que se faz hoje, desonestidade intelectual”, diz o autor sobre as motivações que o levaram a escrever a obra de 717 páginas que tenta reverter esse quadro.

48 anos depois daquele encontro nas cercanias do colégio Batista, Carlinhos relembra à Carta Maior a convivência com seu pai. “A despeito de viver uma vida extremamente atribulada, meu pai era uma pessoa muito alegre, muito bem humorada. Era um pai muito amigo, muito brincalhão, um pai que gostava de correr e nadar comigo na praia, e também de corrigir as provas da escola”, diz ele sobre os tempos de colégio semi-internato, de onde foi expulso por se chamar Marighella.

Apesar de vítima da direção escolar, Carlinhos guarda boas lembranças da solidariedade dos colegas, e da formação que recebeu do pai, sem a obrigação da militância política. “Nós morávamos em um apartamento pequenininho, mas coberto de livros. Ele queria que eu lesse Jorge Amado, e também comprava Julio Verne e tudo mais, uma leitura selecionada. Lembro que ele me deu uns livros de Caryl Chessman, que era um homem condenado à morte nos EUA e que na cadeia começou a escrever livros e fazer uma reflexão sobre a vida e o judiciário americano. Pois meu pai me deu esses livros porque ele participava de uma campanha, ele queria incentivar as pessoas a abolir a pena de morte no mundo, e queria me conquistar para isso”, diz ele, que depois se filiou ao Partido Comunista por vontade própria.

Sobral Pinto
O encontro com o “motoqueiro” foi uma das últimas vezes que Carlinhos teve uma relação física, pessoal, com Marighella. “Meu pai foi preso em 64 e eu tinha 15 anos de idade. Ele ficou cerca de 50 dias na cadeia. Quando saiu, eu fui visitá-lo”, afirma, sobre outra ocasião em que viu o pai. Após a visita, Carlinhos tinha uma missão. “Recordo que ele pediu para eu contratar Sobral Pinto para impetrar um mandato de segurança ou um habeas corpus. E Sobral Pinto, ao patrocinar essa causa, ele que era um apoiador do golpe militar por razões da igreja católica, percebe que era o momento de denunciar as atrocidades e o risco que o golpe significava para as instituições brasileiras. Isso se deve ao contato que ele teve com meu pai e as razões que meu pai deve ter apresentado a ele”.

Dali em diante, Carlinhos nunca mais estaria com seu pai. “Falei com ele por telefone e carta. De 64 a 69 meu pai se tornou uma pessoa totalmente clandestina e lançou a proposta de luta armada. A partir daí as perseguições chegaram a um limite intolerável, até que ele foi assassinado”.

Morte
Em novembro de 69, minuciosamente narrado no livro nos capítulos Tocaia e Post-morte: anatomia de uma farsa, Carlinhos já morava em Salvador, onde reside até hoje como advogado. Na época, “o que a família sabia era o que se publicava nos jornais, geralmente ‘Marighella morreu’, ‘Polícia quase encontra Marighella’. Enfim, como aquilo quase nunca se confirmava, foi criando na gente a expectativa de que afinal meu pai ia conseguir sair incólume. Até que uma noite recebi um jornalista em casa me pedindo que fosse a um jornal identificar fotos que davam notícia da morte de meu pai. Fui quase que com enfado, porque para mim era uma repetição mentirosa daquelas notícias”.

No entanto, lá, deparou-se com a dor. “Tinha um telex que recebia notícias do mundo todo. E aí, quando a máquina começou a vomitar aquela notícia, ia compondo, como se fosse um fax, fotos e textos. Eu aterrorizado vi que aquela imagem que ia se formando lentamente era efetivamente o rosto de meu pai. Foi um choque tremendo, mas ali mesmo eu jurei para mim que era preciso resgatar, provar para todo mundo que meu pai não era aquele facínora, que ele não era digno de morrer daquele jeito”, afirmou ele, sereno, observando o grande número de leitores que fazia fila para comprar o livro e conhecer um pouco mais de Marighela durante o lançamento da obra de Mário Magalhães, na terça-feira (13), na Livraria da Travessa, no Rio.

Coerência
Entre os leitores, antigos companheiros, como Carlos Eugenio Paz. O ex-comandante Clemente da ALN preza a coerência que Marighela sempre demonstrou, seja em conversas com um estudante aspirante a revolucionário, seja em sua visão de compromisso com o país. “Era um homem que vivia aquilo que pregava. Um homem com aquela estatura me ouvia, um garoto de 15 para 16 anos. Propunha para a gente uma organização horizontal, onde não tinha chefes. Onde ele, com toda a estatura de líder, abdicava do poder de decidir, nos deixava a iniciativa”, diz Paz sobre a convivência com “Mariga”, ou “Preto”, após o primeiro encontro em 1966, em uma caminhada por um Aterro do Flamengo ainda em construção.

“Muita gente pergunta se não foi um erro o Marighella ficar no Brasil, ao invés de sair para se preservar. Eu respondo sempre assim: não sei se foi erro ou acerto. Agora, se o Marighella sai do Brasil, ele não seria o Marighella. Porque exatamente a maior qualidade dele era essa. Além de ser um estrategista, um teórico, um homem com ideias na cabeça, ele vivia o que ele pregava; e mais, ia na frente. Ele não pedia a ninguém para fazer um sacrifício que ele também não estivesse fazendo. Marighella nunca me pediu um risco que ele também não estivesse correndo”, afirma.

Atemporal
Sem riscos da chuva que caía lá fora, abrigados na elegante livraria de Ipanema, muitos folheavam a obra que ao custo de R$ 57, pouco menos de 10% do salário mínimo brasileiro, evidencia o quanto o país ainda está longe da realidade sonhada pelo biografado. A maioria das opiniões era do importantíssimo resgate histórico que a obra proporciona. Em rodas de conversa, a evolução da ditadura para a democracia consolidada era lembrada, mas a troca da solidariedade pelo individualismo questionada. Na impossibilidade da comparação, a voz negra da Bahia falava mais alto.

“Tem algumas coisas da atuação humana, pessoal, social e política de meu pai que eu acho que continuam muito importantes. A gente precisa difundir valores, valores que sirvam como referência para que a gente tenha orgulho de ser brasileiro e tenha vontade de construir esse Brasil. Não é uma questão de ideologia, mas valores humanos. Meu pai era patriota, era uma pessoa despojada, que amava o povo brasileiro. Era um homem que trabalhava, que tinha coragem de enfrentar a luta por suas ideias. É um homem que é efetivamente um exemplo. Marighella é uma pessoa com esta marca, uma marca de um homem excepcional, de um homem que será sempre útil em qualquer país, em qualquer geração”, disse Carlos Augusto Marighella.