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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Discurso e memória: a importância de dizer e dizer e dizer

Lógica de conciliação pós-ditadura compromete realização da democracia

Em simpósio internacional realizado na USP, estudiosos do regime autoritário criticam a imposição da idéia de conciliação com os militares e alertam para os riscos de morte lenta da democracia neste contexto. Para eles, os limites colocados pela não responsabilização dos torturadores e o legado estrutural da ditadura ferem o Estado de Direito.

São Paulo - Para alguns autores, se a própria democracia é incerta quanto aos resultados do jogo político, os períodos de transição são ainda mais ameaçadores em termos do controle dos resultados. Dentro desta lógica, muitos responsáveis por transições de Estados pós-regimes autoritários em todo o mundo optaram pela reconciliação. Adotaram assim um paradigma de análise centrado no que as elites políticas eram capazes de pactuar nesses momentos com a elite moderada das oposições. A idéia era a que, com esses atores negociando, seria possível devolver o poder a um conjunto de regras claras, que definiram a democracia a ser retomada.

O que tais pensadores não previram - ou negligenciaram - foi que a conciliação poderia impactar de tal forma o processo de transição a ponto de provocar uma morte lenta da própria democracia. Na última semana, em simpósio internacional realizado na Universidade de São Paulo, estudiosos da ditadura militar brasileira e defensores de direitos humanos alertaram para os limites colocados pela conciliação no país, que ferem o Estado Democrático de Direito.

"A compreensão era a de que não bastava retirar os autores políticos autoritários para redemocratizar estrutura do Estado e da sociedade civil. Uma ameaça de regressão autoritária estaria no horizonte, com o risco efetivo de os militares darem um novo golpe, e daí a preocupação com um pacto político", explicou Renan Quinalha, pesquisador da Faculda de Direito da USP, membro do grupo que organiza uma campanha pela criação de uma Comissão da Verdade na USP.

"Para que não houvesse risco de uma morte rápida da democracia, certos interesses do antigo bloco no poder não poderiam ser tocados. As demandas por Justiça dos familiares eram consideradas desestabilizadoras e indesejáveis - não à toa foram silenciadas por muito tempo. Mas não atentaram para a dimensão lenta da morte da democracia, comprometida na sua realização efetiva", acrescentou.

Na avaliação de Quinalha, uma parte a esquerda brasileira em grande parte pactuou com essa interdição do passado. Para muitos, discutir memória, verdade e justiça não era possível. Seria necessário estabilizar a nova ordem democrática, numa preferência clara de secundarizar a demanda por justiça e analisar a transição numa ótica utilitarista. "Não interessava uma discussão por uma transição justa, com uma dimensão ética da nova democracia. Interessava somente estabelecer novas regras do jogo", afirmou.

Na transição conservadora, o acordo entre militares, Tancredo Neves e outros líderes devolveu o poder aos civis, mas garantiu a impunidade dos agentes de Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos. O suposto pacto foi então cristalizado na Lei de Anistia de 1979 através do dispositivo dos “crimes conexos aos crimes políticos”.

Para o jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar, membro do Comitê Paulista pela a Memória, a Verdade e a Justiça, e autor do livro "Massacre na Lapa", que conta como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB em 1976, a Lei de Anistia tem sido, até agora, a fonte inesgotável da suposta legitimidade e da condição de intocáveis dos militares, tudo sob o discurso da conciliação nacional.

"Com o apoio indispensável das oligarquias, as Forças Armadas brasileiras conseguiram interditar por longos anos o debate legal e institucional sobre memória, verdade e justiça", disse. "E mantiveram e ainda mantêm sob controle direto alguns segmentos do Estado: a Justiça Militar como ramo específico do Poder Judiciário, o controle do tráfego da aviação civil, as Capitanias de Portos", destacou.

Pomar lembra que familiares, ex-presos políticos e grupos de direitos humanos mantiveram acesa a chama da luta por reparações simbólicas e pela punição dos responsáveis pelas atrocidades e por toda sorte de violações de direitos humanos na Ditadura Militar. Mas, ao exigir a punição dos criminosos, sempre esbarraram nesta muralha, reiterada pela decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar anistiados os torturadores que agiram a serviço da ditadura, o que "reiterou a cumplicidade de expressiva parcela oligárquica, representada no Poder Judiciário, com aqueles que praticaram o terrorismo de Estado".

Justiça de transição
A partir dos anos 90, a partir de reflexões teóricas e documentos da ONU, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Comissão Internamericana de Direitos Humanos da OEA, emerge o conceito de justiça de transição. A partir de casos levados a estes órgãos, os mesmos passaram a reconhecer os direitos das vítimas a terem uma reparação econômica simbólica e a acessarem o direito à verdade, a medidas de memória – com homenagens aos que resistiram aos regimes autoritários e desqualificação daqueles que se valeram da estrutura do Estado para implantar a repressão -, e à justiça, com a identificação e processamento penal dos violadores. A justiça de transição passa ainda pela reforma das instituições, considerando que o terrorismo de Estado atravessou várias delas.

"Assim é necessário haver depuração e uma nova cultura política na sociedade para internalizar valores democráticos. O conceito, então, é retrospectivo - olha para o passado para trazer à tona essa história -, mas também prospectivo, porque isso diz respeito ao presente e ao futuro, para garantir que as violações não mais ocorram", relata Renan Quinalha. "É neste contexto que o tema da justiça de transição começa a ser apropriado no Brasil, sobretudo a partir de 2008, de maneira sistematizada e organizada no debate político e nas instituições acadêmicas", acrescenta.

Vem desta perspectiva de justiça a expectativa de punição dos torturadores da ditadura militar no Brasil, reavivada com a criação da Comissão Nacional da Verdade, que esta em seu quarto mês de funcionamento. O horizonte da reconciliação nacional, no entanto, permanece, visto que este é um dos objetivo da própria Comissão, previso em lei.

"Há um pacto em vigor entre governo e militares. Não é o velho pacto de 1984, porque os protagonistas mudaram e porque não há como evitar determinadas concessões aos familiares e aos ex-presos, mas sua essência não mudou: trata-se de garantir a impunidade de quem, em nome do Estado castrense, torturou, humilhou, trucidou e tirou a vida de centenas de “subversivos”", avalia Pedro Pomar.

Para o jornalista, a materialização da idéia de reconciliação nacional foi a cerimônia de posse dos integrantes da Comissão da Verdade, com a participação de dois ex-presidentesdos, Sarney e Collor, que tiveram participação direta na ditadura e foram seus beneficiários.

"A presidenta Dilma discursou, enfatizando que não se trata de revanchismo, nem de “reescrever a história de forma diferente do que aconteceu”. Afinal, devemos ou não reescrever a história?", questionou. "Que a burguesia reivindique a autoria e a legitimidade da ditadura militar, e que parte da oligarquia ainda hoje a defenda, não surpreende. Que a liderança de esquerda, tendo chegado ao poder político pela força de 50 milhões de votos, se submeta ao pacto forjado pela transição conservadora vinte anos antes, trinta anos antes, e o renove, isso sim ainda surpreende", criticou.

Para os presentes, um dos maiores riscos da renovação desse pacto é a perpetuação de situações de violação de direitos humanos que ocorrem no dia de hoje como reflexos institucionais desse período. Da criação das polícias militares à tortura que continua a ser praticada em delegacias, quartéis e presídios, passando pelas condições da população carcerária e pelas execuções sumárias quase sempre de pobres, negros e moradores das periferias, até a situação de populações inteiras colocadas sob ocupação militar.

"Encontramos neste ponto uma relação muito forte entre a atrofia da democracia atual e o terrorismo de Estado que vivemos no passado, por obra da ditadura militar instaurada em 1964", acredita Pomar. "Se agentes do próprio Estado torturam e matam, regularmente e impunemente, não se pode falar em “Estado de Direito”, mas em terrorismo de Estado, ainda que não seja o Estado central, a União, o protagonista de tais ações", conclui Pedro Pomar.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Os discursos que sustentam as práticas, e as práticas que sustentam os discursos

18/02/2012

A lógica da loucura

“Ha lógica na sua loucura.”
(Shakespeare, Hamlet)

Entrevistas como a do ex-ditador argentino Jorge Videla à revista espanhola Cambio 16, expressam momentos de sinceridade em que se reproduzem, de forma precisa, a lógica que levou aos regimes de terror que imperaram no cone sul latino-americano há poucas décadas.

Olhada desde agora, tudo parece uma loucura, da qual todos tratam de se distanciar, como se fosse expressão da loucura de alguns, que precisa ser reduzida ao passado e a alguns personagens particulares, uma parte dos quais processada e condenada. Teria sido “um momento ruim”, do qual os países teriam virado a página. Esquecer o passado, curar as feridas, voltar-se para o futuro – essa a proposta dos que protagonizaram aquele “loucura”.

Por isso incomoda muito quando algum daqueles personagens que dirigiram, com representação deles, os regimes de terror, retomam a lógica que os uniu. A leitura da entrevista do Videla é muito saudável, porque reproduz a mesma lógica do bloco que se formou para dar o golpe e deu sustentação à ditadura militar. Bastaria mudar alguns nomes e circunstâncias concretas, para que se tivesse um documento adequado ao que aconteceu no Brasil. É o discurso que sobrevive em setores militares e civis saudosos dos tempos do terror contra a democracia e contra o povo. Escutemos o que disse Videla.

“Na Argentina não há justiça, mas vingança, que é algo bem distinto.” “Houve uma assimetria total no tratamento das duas partes enfrentadas no conflito. Fomos acusados como responsáveis, simplesmente, de acontecimentos que não fomos nós que desencadeamos.”

Desqualificação da Justiça, como revanchismo, para o que eles tem que aparecer como salvadores providenciais de um pais à beira do abismo, com “vazio de poder”, dominado pelo caos. A Justiça os trataria de forma desigual, porque assumem agora a teoria dos “dois demônios”, dos dois bandos em guerra, buscando descaracterizar que foram os agentes do golpe militar, da ruptura da democracia e da instauração de uma ditadura do terror.

Relata Videla que o principal dirigente da oposição, Ricardo Balbin, do Partido Radical, lhe telefonava para incentivar que dessem o golpe. Nada diferente da UDN no Brasil e da Democracia Crista de Eduardo Frei no Chile.

“Os empresários também colaboraram e cooperaram conosco. Nosso próprio ministro da Economia, Alfredo Martinez de Hoz, era um homem conhecido da comunidade de empresários da Argentina e havia um bom entendimento e contato com eles".

“A Igreja cumpriu com o seu dever, foi prudente...” “Minha relação com a Igreja foi excelente, mantivemos uma relação muito cordial, sincera e aberta. Tinhamos inclusive aos capelães castrenses assistindo-nos e nunca se rompeu esta relação de colaboração e amizade.”

No Brasil a Igreja Católica participou ativamente na mobilização para o golpe militar, com o qual romperia e teria papel muito importante na denuncia e na resistência à ditadura. Na Argentina, ao contrário, a Igreja continuou apoiando a ditadura, a ponto de mandarem capelães participarem dos vôos da morte, quando duas vezes por semana eram jogados ao mar presos políticos.

“Foi um erro nosso aceitar e manter o termo de desaparecidos digamos como algo nebuloso; em toda guerra há mortos , feridos, aleijados e desaparecidos , isto é, gente que não se sabe onde está. Isto é assim em toda guerra. Em qualquer circunstância do combate, aberto ou fechado, se produzem vitimas. Para nós foi cômodo então aceitar o termo de desaparecido, encobridor de outras realidades (sic), mas foi um erro pelo que ainda estamos pagando e sofrendo muitos de nós. É um problema que pesa sobre nós e não podemos livrar-nos dele. Agora já e’ tarde para mudar essa realidade. O problema é que não se sabe onde está o desaparecido, não temos resposta a essa questão. No entanto já sabemos quem morreu e em que circunstâncias. Tambem mais ou menos quantos morreram, aí cada um que invente suas cifras.”

Essa a lógica da loucura das ditaduras militares, dos regimes militares, que uniu às elites dos países do cone sul, dirigidos pela alta oficialidade das FFAA, congrengando grandes empresários, donos das grandes empresas dos meios de comunicação, com apoio dos EUA. Esse o discurso que os uniu, expresso de forma fria e articulada.

Postado por Emir Sader às 20:15

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Discurso, identidade... e polícia... para... quem precisa?

Quando a polícia escreve a história

Na página da Secretaria de Segurança de São Paulo o golpe civil-militar de 1964 estava legitimado como um “dever policial”. Esta semana, a Secretaria retirou do ar a página. Neste momento talvez seja o caso de convidar – convidar, atenção! – os policiais para assistir algumas aulas no Departamento de História da USP.

Esta semana (28/01/2012) a Secretária de Segurança de São Paulo retirou do ar a página (que ela mesmo havia criado) com elogios ao golpe civil-militar de 1964.

Mais uma vez a Secretária de Segurança Pública de São Paulo busca escrever a sua própria versão da história do país. Depois de elogiar e justificar o golpe civil-militar de 1964 – em razão “do combate contra a política sindicalista” do Presidente João Goulart – a secretaria de Estado de Segurança insiste em falar em “revolução” feita ao lado do povo e das FFAA. Ao contrário, não há qualquer menção de que o Governo Jango foi democraticamente eleito e constituído, legitimado por um amplo plebiscito popular, e que cabia, se fosse ao caso, ao Congresso Nacional fazer oposição ao governo, indo, no limite, ao pedido de impedimento do presidente do país.

Mas, a polícia de São Paulo, ao contrário, acha que ela era mais sábia e possuía o poder (auto-outorgado) de fazer ou desfazer governos em face das tendências “sindicalistas” do presidente. Assim, com certo exagero, se parabeniza pelo golpe de 1964. É absurdo que uma instituição use recursos do Estado para justificar o descumbrimento da lei e da ordem constitucional do país. Não cabe, jamais, a qualquer instituição policial avaliar, julgar, por ou depor governos, sejam quais forem suas tendências. À ordem constitucional – o Congresso, os tribunais e seus despachos – cabe, conforme o rito constitucional, julgar governantes. A polícia cumpre ordens estabelecidas conforme as regras da constitucionalidade. O auto-elogio da página da SSP-SP é, desta forma, um claro desrespeito ao Estado democrático.

Como historiador posso entender no quadro da época – de graves tensões, de divisão da sociedade, de imaturidade política e de forte tradição de “pronunciamientos” militares - que esta fosse uma versão dos fatos – uma versão trabalhada, ferramentada e popularizada por uma mídia e por partidos e instituições de oposição. Embora seja inaceitável que se tenha erguido uma ditadura por esta razão, o argumento tinha sentido para uma parcela dos atores políticos brasileiros ao tempo da Guerra Fria e da extrema polarização social da época e pode convencer uma boa parte da opinião pública que então apoiou o golpe.

O que não faz sentido é que hoje, ainda, uma instituição do estado – não se trata de um ator social privado, mas de uma fala institucional, com dinheiro público – insista numa versão tão pobre e maniqueísta da história. Não cabe ao estado (ou “Estado”) e suas instituições, sobremaneira a Polícia, fornecer com recursos públicos uma versão da história que incentiva e justifica ações de violência contra a ordem constitucional do país.

Já era tempo do governo do estado aconselhar os policiais de São Paulo – hoje notórios pelas ações de repressão na área da Cracolândia e pela brutalidade cega e estéril em Pinheirinhos – a deixar a história para os historiadores, afinal (parodiando Clemenceau!) a história é um assunto muito sério para se escrita por policiais.

Devemos lembrar que a SSP de São Paulo possui um histórico institucional tremendamente negativo – desde a invasão da PUC em 1977, o cerco da reunião da SBPC na USP em 1978 até chacinas como do Carandiru, em 1992. A insistência em não rever e debater sua própria história, convidando instituições da sociedade civil, especialistas em história da República e das suas instituições (incluindo aí ótimos trabalhos sobre história da polícia no Brasil já existentes) e seus próprios funcionários demonstra como a polícia de São Paulo quer ser um corpo autônomo na sociedade democrática, não aceita a transparência e apega-se a um passado golpista e liberticida, mantendo-se à margem da democratização da sociedade.

Neste momento talvez seja o caso de convidar – convidar, atenção! – os policiais para assistir algumas aulas no Departamento de História da USP.

(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.