Paris - Já não estamos
sós. Um duplo ou muitos duplos nossos permanecem nos incontáveis Data
Center do mundo, nas redes sociais, nas memórias gigantescas do Google
ou da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, a NSA. É o que o
ensaísta francês Eric Sadin, um dos autores mais proféticos e
brilhantes na análise das novas tecnologias, chama de “humanidade
paralela”.
Em cada um de seus livros anteriores, “Surveillance
Globale”, “La Société de l’anticipation”, Eric Sadin explorou como
poucos as mutações humanas inerentes ao surgimento da hiper-tecnologia
em nossas vidas. Longe de se contentar com um anedotário trivial dos
instrumentos tecnológicos que surgiram nas últimas três décadas, Sadin
os pensa de uma forma inédita. Seu último livro, “L’Humanité Augmentée,
L’administration numérique du monde” (A Humanidade aumentada, a
administração digital do mundo), explora a capacidade cada vez maior que
os dispositivos inteligentes têm para administrar o rumo do mundo.
O
livro ganhou na França o Hub Awards 2013, um prêmio que recompensa o
melhor ensaio do ano. Para Eric Sadin, Hall 9000, o computador
super-potente da nave Discovery no filme “2001, uma Odisseia no Espaço”,
deixou há muito de ser uma ficção: Hal 9000 foi inclusive superado pela
tendência atual na direção de uma “administração robotizada da
existência”. GPS, Iphone, Smartphone, sistemas de gestão centralizados
que decidem por si mesmo, rastreabilidade permanente, tudo conflui para a
criação do que o autor chama de um “órgão sintético que repele toda
dimensão soberana e autônoma”.
Em entrevista à Carta Maior, Eric
Sadin analisa esse duplo tecnológico que nos facilita muitas coisas e ao
mesmo tempo nos espreita a ponto de transformar nossa humanidade.
Eric
Schmidt, o presidente do Google, diz em seu último livro, “The New
Digital Age”, que “acabamos de deixar os starting-blocks” da revolução
digital. Você, ao contrário, estima que a revolução digital está
acabando. Fim ou nova fase?
A década atual assinala o fim do
que se chamou de “revolução digital” que começou no princípio dos anos
80 mediante a digitalização cada vez maior do real: a escrita, o som, a
imagem fixa e animada. Esse amplo movimento histórico se deu
paralelamente ao desenvolvimento das redes de telecomunicação e tornou
possível o advento da internet, ou seja, a circulação exponencial dos
dados na rede: as condições de acesso à informação, o comércio e a
relação com os outros através dos correios eletrônicos e das redes
sociais.
Hoje, esta arquitetura que não parou de se desenvolver e
se consolidar está solidamente instalada em escala global e permite o
que chamo de “a era inteligente da técnica”. Nosso tempo instaura uma
relação com a técnica que já não está prioritariamente fundada sobre uma
ordem protética, ou seja, como uma potência mecânica superior e mais
resistente que a de nosso corpo, mas sim como uma potência cognitiva em
parte superior à nossa. Há robôs imateriais “inteligentes” que coletam
massas abissais de dados, os interpretam à velocidade da luz ao mesmo
tempo em que são capazes de sugerir soluções supostamente mais
pertinentes e inclusive de agir em nosso lugar como ocorre com o
“trading algorítmico”, por exemplo.
Em seu último ensaio, “A
humanidade aumentada, a administração digital do mundo”, você expõe um
mundo cartografado de maneira constante pelos sistemas digitais. Você
mostra a emergência de uma espécie de humanidade paralela – as máquinas –
destinadas a administrar o século XXI. Uma pergunta se impõe: o que
fica então de nossa humanidade?
Desde o Renascimento, nosso
potencial humano se fundou sobre a primazia humana constituída pela
faculdade de julgar, a faculdade de decisão e, por conseguinte, da
responsabilidade individual que funda o princípio da Lei. A assistência
das existências por sistemas “inteligentes”, além de representar uma
evolução cognitiva, redefine de fato a figura do humano como senhor de
seu destino em benefício de uma delegação progressiva de nossos atos
para outros sistemas. Uma criação humana, as tecnologias digitais,
contribui paradoxalmente para debilitar o que é próprio ao ser humano,
ou seja, a capacidade de decidir conscientemente sobre todas as coisas.
Esta dimensão em curso se amplificará nos próximos anos.
Você
se refere ao surgimento de um componente “orgânico-sintético que repele
toda dimensão soberana e autônoma”. Em resumo, o mundo, nossas vidas,
está sob o comando do que você chama de “a governabilidade algorítmica”.
O ser humano deixou de administrar.
Não se trata de que já
não administra, mas sim de que o fará cada vez menos em benefício de
amplos sistemas supostamente mais eficazes em termos de optimização e de
segurança das situações individuais e coletivas. Isso corresponde a uma
equação que está no coração da estratégia da IBM. Esta empresa
implementa arquiteturas eletrônicas capazes de administrar por si mesmas
a regulação dos fluxos de circulação do tráfego nas estradas, ou a
distribuição de energia em certas cidades do mundo. Isso é possível
graças à coleta e ao tratamento ininterrupto de dados: os estoques de
energia disponíveis, as estatísticas de consumo, a análise dos usuários
em tempo real.
Estas informações
estão conectadas com algoritmos capazes de lançar alertas, de sugerir
iniciativas ou assumir o controle decidindo por si mesmo certas ações:
aumento da produção, compras automatizadas de energia nos países
vizinhos, o corte do fornecimento em certas zonas.
Isso equivale a uma espécie de perda maior de soberania.
A
meta consiste em buscar a optimização e a segurança em cada movimento
da vida. Por exemplo, fazer que uma pessoa que passa perto de uma loja
de calçados possa se beneficiar com a oferta mais adequada ao seu
perfil, ou que alguém que passeia em uma zona supostamente perigosa
receba um alerta sobre o perigo.
Vemos aqui o poder que se delega
à técnica, ou seja, o de orientar cada vez com mais liberdade a curva
de nossas existências. Esse é o aspecto mais inquietante e mais
problemático da relação que mantemos com as tecnologias contemporâneas.
O
escândalo de espionagem que explodiu com o caso Prism, o dispositivo
mediante o qual a NSA espiona todo o planeta, expôs algo terrível: não
só nossas vidas, nossa intimidade, são acessíveis, mas elas estão
digitalizadas, convertidas em Big Data, duplicadas.
Prism
revelou dois pontos cruciais: em primeiro lugar, a amplitude abismal,
quase inimaginável, da coleta de informações pessoais: em segundo, a
colusão entre as empresas privadas e as instâncias de segurança do
Estado. Este tipo de coleta demonstra a existência de certa facilidade
para apoderar-se dos dados, guardá-los e depois analisá-los para
instaurar funcionalidades de segurança. A estreita relação que liga os
gigantes da rede com a NSA deveria estar proibida pela lei, salvo em
ocasiões específicas. De fato, não é tanto a liberdade o que diminui,
mas sim partes inteiras de nossa vida íntima.
O
meio ambiente digital favoreceu o aprofundamento inédito na história do
conhecimento das pessoas. Este fenômeno está impulsionado pelas
empresas privadas que coletam e exploram essas informações,
frequentemente recuperadas pelas agências de segurança e também por cada
um de nós mediante as ondas que disseminados permanentemente, às vezes
sem consciência disso, às vezes de maneira deliberada. Por exemplo,
através da exposição da vida privada nas redes sociais.
O caso
NSA-Prism representa um marco na história. De alguma maneira, mesmo que
as pessoas tenham reagido de forma passiva, perdemos a inocência
digital. Você acredita que ainda persiste a capacidade de revelar-se
nesta governabilidade digital?
Haverá um antes e um depois do
caso Prism. Ele mostrou até que ponto a duplicação digital de nossas
existências participa da memorização e de sua exploração. Isso ocorreu
em apenas 30 anos sob a pressão econômica e das políticas de segurança
sem que tenha sido possível instaurar um debate sobre o que estava em
jogo. Esse é o momento para tomar consciência, para empreender ações
positivas, para que os cidadãos e as democracias se apropriem do que
está em jogo, cujo alcance concerne à nossa civilização.
A
ausência da Europa no caso deste roubo planetário tem sido tão
escandalosa quanto covarde. Você, no entanto, está convencido de que o
Velho Mundo pode desempenhar um papel central.
Parece-me que a
Europa, em nome de seus valores humanistas históricos, em nome de sua
extensa tradição democrática, deve influir na relação de forças
geopolíticas da internet e favorecer a edificação de uma legislação e de
uma regulamentação claras. O termo “Big Data”, para além das
perspectivas comerciais que possui, indica esse momento histórico no
qual todos estamos copiados sob a forma de dados que podem ser
explorados em uma infinidade de funcionalidades.
Trata-se de uma
nova inteligibilidade do mundo que emerge através de gigantescas massas
de dados. Trata-se de uma ruptura cognitiva e epistemológica que, me
parece, deve ser acompanhada por uma “carta ética global” e marcos
legislativos transnacionais.
Em seu livro você se refere a uma
figura mítica do cinema, Hal, o sistema informático da nave Discovery,
que aparece no filme 2001, uma Odisseia no Espaço. Hal é, para você, a
figura que encarna nosso futuro tecnológico através da inteligência
artificial.
Hal é um sistema eletrônico hiper-sofisticado que
representa a personagem principal do filme de Stanley Kubrick. Hal é um
puro produto da inteligência artificial, capaz de coletar e analisar
todas as informações disponíveis, de interpretar as situações e agir por
conta própria em função das circunstâncias.
Exatamente
como certos sistemas existentes no “trading algorítmico” ou no
protocolo do Google. Hal não corresponde mais a uma figura imaginária e
isolada, mas sim a uma realidade difusa chamada infinitamente a
infiltrar setores cada vez mais amplos de nossa vida cotidiana.
Nessa
mesma linha, para você, se situa o Iphone ou os Smartphones. Não se
trata de joguinhos, mas sim de um quase complemento existencial.
Creio
que a aparição dos Smartphones em 2007 corresponde a um acontecimento
tecnológico tão decisivo como o da aparição da internet. Os Smartphones
permitem a conexão sem ruptura espaço-temporal. Com isso, os Smartphones
expõem um corpo contemporâneo conectado permanentemente, ainda mais na
medida em que pode ser localizado via GPS. Através dele também se
confirma o advento de um “assistente robotizado” das existências por
meio dos inúmeros aplicativos capazes de interpretar uma grande
quantidade de situações e de sugerir a cada indivíduo as soluções
supostamente mais adaptadas.
Esses objetos, que são táteis,
nos fazem manter uma relação estreita com o tato. Mas, ao mesmo tempo em
que tocamos, as coisas se tornam invisíveis: toda a informação que
acumulamos desaparece na memória dos aparatos: fotos, vídeos, livros,
notas, cartas. Estão, mas são invisíveis.
De fato, esse duplo
movimento deveria nos interpelar. Nossa relação com os objetos digitais
se estabelece segundo ergonomias cada vez mais fluidas, o que alenta
uma espécie de crescente proximidade íntima. A anunciada introdução de
circuitos em nossos tecidos biológicos amplificará o fenômeno. Por outro
lado, essa “familiaridade carnal” vem acompanhada por uma distância
crescente, por uma forma de invisibilidade do processo em curso.
Isso
é muito emblemático no que diz respeito aos Data Centers que contribuem
para modelar as formas de nosso mundo e escapam a toda visibilidade. É
uma necessidade técnica. No entanto, essa torsão assinala o que está em
jogo em nosso meio ambiente digital contemporâneo: por um lado, uma
impregnação contínua dos sistemas eletrônicos; por outro, uma forma de
opacidade sobre os mecanismos que o compõem.
Os poderes
públicos, principalmente na Europa, são incapazes de administrar o
universo tecnológico, de enquadrá-lo com leis ou fixar-lhe limites. A
ignorância reina, mas a tecnologia termina por se impor, do mesmo modo
que as finanças, a todo o espectro político.
Estamos vivendo
no interior de um regime temporal que se torna exponencial,
prioritariamente mantido pela indústria que impõe suas leis. O próprio
dos regimes democráticos é sua faculdade deliberativa, sua capacidade
coletiva para escolher conscientemente as regras que orientam o curso
das coisas. Esse componente está hoje eminentemente fragilizado. Sem
nostalgia, eu diria que vamos ter que lidar ativamente e sob diversas
formas com a amplitude do que está em jogo eticamente, tanto agora como
no futuro, sob a indução desta “tecnologização” de nossas existências.
Tanto nas escolas como nas universidades. Creio que é urgente ensinar o
código, a composição agorítmica, a inteligência artificial. Creio que
são os professores de “humanidade digital” que deveriam ingressar nas
escolas e contribuir para despertar as consciências e ajudar a encontrar
as perspectivas positivas que estão se abrindo com este movimento.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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