Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 22 de julho de 2014

O cinema e a constituição de uma identidade regional - traços de cultura?


Ninguém dá as costas pra ninguém no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo

Escrito por: Camila Moraes
Fonte: Opera Mundi

O evento, em sua 9ª edição, com programação vasta e gratuita, é uma das provas da crescente circulação cultural entre os países da região

Chega de dizer que o Brasil está de costas para o resto da América Latina – e vice-versa. Não que as pontes culturais latino-americanas gozem já de livre circulação, mas o panorama é inegavelmente melhor do que uns 10 anos atrás. Prova irrefutável disso é o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, que chega em 2014 à sua 9ª edição, mais jovem do que nunca – como mostra a programação recheada de filmes premiados em importantes festivais, títulos que ainda inéditos dentro e fora do país e convidados bem bacanas de escutar. Tudo em sintonia com o cinema brasileiro que, é óbvio (ou deveria ser), faz parte do caldeirão latino.



De 24 a 30 de julho, serão exibidos gratuitamente 114 filmes de 16 países da região em nove salas paulistanas: Memorial da América Latina, Cinesesc, Cine Olido, Centro Cultural São Paulo, Cinemateca Brasileira, Cineclube Latino-Americano, Centro Cultural da Juventude e Centro Cultural da Penha. Para quem acompanha o evento desde seus primeiros anos, a sensação é que há uma maior representatividade das várias cinematografias latino-americanas, assim como um toque curatorial mais contemporâneo – que se estende, inclusive, aos homenageados da ocasião.



João Batista de Andrade, Felipe Macedo, Jurandir Müller e Francisco Cesar Filho formam o quarteto responsável pela seleção de títulos e demais. Eles prestaram atenção às prestigiosas vitrines de Cannes, Sundance, Veneza, Locarno e Roterdã e desses festivais trarão a São Paulo os argentinos “Refugiado”, de Diego Lerman, e “O chaveiro”, de Natália Smirnoff, o mexicano “Os insólitos peixes-gato”, da mexicana Claudia Sainte-Luce, e o chileno “As Irmãs Quispe”, de Sebastian Sepúlveda. Todos boas pedidas e de cinematografias pulsantes. Mas não se esqueceram de dar espaço às novidades vindas de países cujos filmes poucas vezes encontraram tela no Brasil, como Costa Rica (“Princesas Vermelhas”, de Laura Astorga Carrera), Guatemala (“Onde Nasce O Sol”, de Elías Jiménez Trachtenberg), Panamá (“Caminho da Lua”, de Juan Sebastián Jacome) e República Dominicana (“A Luta de Ana”, de Bladimir Abud).

Esses são apenas destaques. O leque de escolhas é bem mais amplo, com filmes também da  Venezuela (“Pelo malo”), da Colômbia (“La playa D.C.”), do Equador (“A morte de Jaime Rodós”), do Peru (“Planta madre”), da Bolívia (“Conto sem fadas”), do Paraguai (“A leitura de Justino”), do Uruguai (“O militante”) e de Cuba (“Hotel Nueva Isla”). Também vale a pena, especialmente para quem quer ficar em dia com a música e com os primórdios do cinema da América Latina as duas novas mostras da programação: Docs Musicais, com histórias de Mercedes Sosa, Violeta Parra e Café Tacvba, entre outros, e O Cinema Mudo Latino-Americano, apresentando oito títulos realizados entre as décadas de 1910 e 1930 na Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, México e Peru.



As homenagens são prova do ar “jovem" que se respira nesta edição, prestadas ao casal argentino Pablo Trapero, diretor, e Martina Gusmán, atriz e diretora – responsáveis por filmes muito premiados internacionalmente, como “Leonera”, “Abutres" e “Elefante branco”; à atriz brasileira Leandra Leal, presente não só nas telas da televisão nacional, como em filmes de sucesso, às vezes atuando (“Éden”), outras vezes produzindo (“O uivo da gata”); e ao documentarista Silvio Tendler, cujos docs são os que mais atraem espectadores do nosso cinema, com mais de 30 filmes no currículo (entre eles, “Jango”, “Marighella – Retrato Falado do Guerrilheiro” e “Utopia e barbárie”).

Não faltarão encontros, debates e inclusive um seminário inteiro (o Nuevas Ventanas) dedicado à integração dos conteúdos e também dos negócios entre os diferentes agentes que fazem parte do balaio do cinema latino-americano. Estarão presentes na cidade para esses papos a produtora argentina Lita Stantic (responsável pela produção de filmes de Lucrecia Martel), o mexicano Jorge Sánchez (diretor do Imcine) e a cubana Irene Gutiérrez (cineasta e professora da Escuela Internacional de Cine de San Antonio de los Baños). E será entregue, como acontece todos os anos, um prêmio ao melhor filme entre aqueles coproduzidos dentro da América do Sul, outorgado pelo Itamaraty no valor de 90 mil reais. O júri que escolherá o vencedor é uma Torre de Babel  (com um colombiano, uma mexicana, um cubano, uma argentina e um francês), o que é mais um sinal que os tempos de ignorar a vizinhança e o que está além estão acabando. Aproveitemos.

sábado, 19 de abril de 2014

Cinemão!

18/04/2014 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

A ditadura civil-militar em 10 filmes

Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.


DivulgaçãoEsta lista não se pretende definitiva, muito menos apontar quais os dez melhores filmes sobre a ditadura civil-militar.

Trata-se de um panorama que busca abarcar grande parte da produção cinematográfica brasileira a respeito do tema. Há filmes de todas as décadas desde o golpe. Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.

Imaginamos que os filmes dessa lista deem conta da maioria dos processos que envolveram a ditadura. Mas mais importante, esperamos que deixem evidente a capacidade do cinema em se colocar como documento de uma época das mais diversas maneiras.

O Desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965)

Impressiona que um filme feito no "calor da hora" tenha um grupo de personagens que dê conta das mais diversas posturas em relação ao golpe. Há o empresário que quer a manutenção da ordem, sua mulher alienada que continua vivendo como se nada tivesse acontecido, e o amante desta, o jornalista idealista em completa crise existencial.
 
Saraceni vê o golpe dentro de um processo histórico e não como evento isolado, fora de contexto, tendo assim sucesso na construção de tal panorama.

Terra em Transe (Gláuber Rocha, 1967)



Em 1964, um mês antes do golpe, Deus e o Diabo na Terra do Sol já estava finalizado e pronto pra chegar aos cinemas. Enquanto tratava das condições de exibição e distribuição do filme, Gláuber assistia a tomada de poder pelos militares. Três anos depois, é em Terra em Transe que temos retratado sua visão deste processo.

Paulo Martins é o protagonista que carrega em si o conflito entre conservadorismo e engajamento, quer ser poeta e tratar de temas políticos ao mesmo tempo.

Há uma certa análise superficial do filme, que acusa Gláuber de criticar todos os lados. No entanto, trata-se de um raro olhar dialético das contradições da época, concentradas em um personagem. Sem dúvida, um olhar bastante cético em relação às perspectivas futuras. Um ano depois, era decretado o AI-5.

A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla, 1969)



Pode parecer estranho para alguns a presença deste filme numa lista como essa, mas é essencial retomar a postura de um dos mais importantes cineastas brasileiros em relação ao momento histórico de que tratamos aqui. E neste caso, é do total deboche e sarcasmo.
As desventuras de Angela Carne e Osso pela Ilha dos Prazeres retratam a mediocridade e alienação da classe média paulistana. E Sganzerla utiliza de todos os artifícios e referências da Boca do Lixo, das chanchadas e dos quadrinhos para isso.

E como grande momento, o discurso final do empresário traído interpretado por Jô Soares, prenhe de simbolismo em relação ao contexto histórico, quando diz: “Eu não calculo nunca, mas quando faço uma besteira, eu vou até o fim”.

Manhã Cinzenta (Olney São Paulo, 1969)



Censurado em 1969 por ser considerado “altamente subversivo”, o filme foi confiscado e nunca chegou a ser exibido comercialmente. Uma de suas cópias foi salva e ficou escondida na Cinemateca do MAM por 25 anos.

Olney São Paulo é o único cineasta brasileiro a ser preso e torturado pela produção de um filme.

Manhã Cinzenta retrata a prisão e tortura de estudantes que participavam de uma manifestação. Eles são interrogados por um robô e um cérebro eletrônico, situação absurda que Olney usa como metáfora, tanto para mostrar os extremos do regime quanto para tratar com escárnio a alienação de parte da sociedade na época.

Você Também Pode Dar um Presunto Legal (Sérgio Muniz, 1973)



Feito em 1971 e finalizado dois anos depois, o filme de Sérgio Muniz só foi exibido no Brasil em 2006. Esse hiato de 33 anos ocorreu pois, na época, amigos do diretor recomendaram que ele não passasse o filme no país, temendo por sua segurança.

O documentário foca nas ações do delegado Sérgio Fleury e do Esquadrão da Morte durante a ditadura, alternando matérias de jornal e imagens da época com depoimentos de torturados e fragmentos das peças "A Resistível Ascenção de Arturo Ui" (Bertold Brecht) e "O Interrogatório" (Peter Weiss).

E Agora, José? – Tortura do Sexo (Ody Fraga, 1979)



O filme Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) é muitas vezes considerado pioneiro em retratar as torturas que ocorriam nos porões dos órgãos policiais da ditadura. No entanto, tal “honraria” pertence, na verdade, a este filme, produto da Boca do Lixo paulistana. Assim como o sucesso de bilheteria estrelado por Reginaldo Faria e Antonio Fagundes, E Agora, José? também trata de um sujeito apolítico que é preso por engano e torturado pelo regime.

Enquanto Pra Frente Brasil pretende-se denúncia histórica – e acaba sendo reprodutor da “teoria dos dois demônios”, a qual defende que direita e esquerda estavam erradas – o filme de Ody Fraga tenta se equilibrar entre o engajamento e o escárnio, embora acabe derrabando em vícios do gênero e da época, como o erotismo misógino.

De qualquer forma, uma obra normalmente esquecida e que vale a revisão pelo pioneirismo e possibilidades que origina.

Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984)  



Em fevereiro de 1964, Eduardo Coutinho foi até a Paraíba para contar a história da morte do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado dois anos antes. O diretor buscava mostrar como as Ligas Camponesas, que tinham como objetivo a mobilização do trabalhador rural pela reforma agrária, estavam sendo reprimidas pelos latifundiários.

No entanto, o filme foi interrompido pelo Golpe. Membros da equipe de filmagem foram presos, acusados de estarem ensinando táticas de guerrilha para os camponeses, e parte do rolo do filme confiscado. Coutinho volta ao Engenho da Galileia dezessete anos depois para encontrar Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e continuar o filme, que, iniciado como ficção, acabou se tornando o mais importante documentário do cinema brasileiro.

Cabra Marcado para Morrer talvez seja o único filme brasileiro que não possa ser excluído de uma lista como esta, pois é de fato um produto da repressão da ditadura. Não retrata um contexto, faz parte dele.

Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998)



Miguel (Zécarlos Machado) descobre o paradeiro do homem responsável pela sua tortura e de seus amigos. Ele engaja-se na busca desse acerto de contas e tenta convencer Elói, Paulo e Osvaldo a fazer o mesmo. A grande virtude do filme de Beto Brant está exatamente nessa batalha de argumentos a favor ou contra o enfrentamento com o carrasco, da onde emerge a necessidade da rememoração (um dos personagens diz que “já foi há tanto tempo, é melhor não mexer no passado”) e da busca pela justiça.

Paira sobre o filme, assim, a lógica de que, em um caso desses, quando não há ação do Estado, as consequências podem ser fatais.

Memória para Uso Diário (Beth Formaggini, 2007)



Produzido pelo grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, o documentário tem como cerne o exercício de memória em busca da reparação. Depoimentos explicam a história e as atividades do grupo. Familiares são levados às ruas que receberam o nome de seus parentes desaparecidos, onde explicam para os moradores quem foram aquelas pessoas. Uma senhora busca em arquivos do Estado uma prova de que seu marido desaparecido foi preso pelo regime. Um homem procura em um cemitério as ossadas de seu irmão.

No entanto, a grande virtude do filme é a relação que estabelece com a atualidade, bastante rara no cinema brasileiro contemporâneo. Vemos depoimentos de mães que tiveram seus filhos, negros e favelados, mortos sem razão aparente pela polícia militar. Relembrar, portanto, não serve apenas para resolver as questões passadas, mas também para expor a continuidade da truculência militar, agora com vítimas muito mais marginalizadas pela sociedade.

Hoje (Tata Amaral, 2013)



Acompanhamos a chegada da personagem Vera ao seu novo apartamento e todas as interações que uma mudança implica: conversa com a síndica do prédio, orientação sobre onde devem ir caixas e objetos etc.

De repente, surge Luiz, antigo companheiro de Vera nos tempos de guerrilha. Ele a questiona se o dinheiro daquele apartamento se deve a uma indenização, na qual o Estado reconhece que se trata de um cidadão desaparecido em razão de ações do regime.

O roteiro de Jean-Claude Bernardet, Felipe Sholl e Rubens Rewald (do ótimo Corpo, que também tem a memória e o direito à verdade como plano de fundo) faz dessa ambiguidade entre o real e a fantasioso instrumento para expor um trauma que precisa ser encarado a fim de ser resolvido.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Pra assistir nas férias: imperdíveis!

Os 20 filmes que marcaram os cinemas em 2013

Relembre com este guia de leitura o ascenso do cinema nordestino, o ressurgimento de autores clássicos, os efeitos da crise e a xenofobia.


Da Redação de Boletim Carta Maior Divulgação
O ano de 2013 entra para a história do Brasil como um ano de insurgência. E o cinema? Relembre aqui o ascenso do cinema nordestino, o ressurgimento de autores clássicos, os efeitos da crise e a xenofobia.




 

 
 


 


 


 


 



 

 


 



 

 



 



 

 




 

 


Créditos da foto: Divulgação
 
 
Para ler análises destes e de outros filmes dos bons: Cultura - Carta Maior 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A contemplação como reflexão... libertária? conservadora? - a velha questão: importa COMO se faz


A obra-prima e a elite cultural


“O Cavalo de Turim” foi louvado pela crítica, mas ignorado pelo público. Sobre o elitismo como critério da percepção artística.

Por Bruno Carmelo, do Discurso-Imagem.

“Em algum lugar no campo. Um fazendeiro, sua filha, uma charrete e um velho cavalo. Lá fora, o vento sopra”. A própria sinopse do filme O Cavalo de Turim pode suscitar a curiosidade de algumas pessoas e afugentar outras. A história cabe nas simples palavras acima, mas a duração é de 2h30. Ora, como o diretor compõe sua história? Em outras palavras, o que pode-se ver concretamente em tanto tempo de “vento que sopra”?

Muito foi dito sobre este Cavalo de Turim, principalmente alguns elementos copiados e colados diretamente dos materiais de imprensa, e repetidos pela imprensa sem nenhuma reflexão. Falaram bastante sobre Nietzsche e o episódio do cavalo (o filósofo abraçou um cavalo maltratado antes de enlouquecer), mas exceto a referência lacônica do narrador no início, não há nada mais sobre esta história aqui – tratar o filme de “biografia do cavalo” é um tanto absurdo. Outros falaram que “Béla Tarr filma o fim do mundo”, outra frase repetida em todos os cantos e tão grandiloquente quando inexata. Tentar aproximar este filme de Melancolia e da Árvore da Vida pelo aspecto “apocalíptico” seria uma tentação pouco justificável.

Talvez estas aproximações e atalhos fáceis venham do fato que este filme húngaro é uma surpresa difícil de catalogar, por isso qualquer interpretação pronta parece bem-vinda. Os críticos franceses preferiram as expressões adjetivas e pouco descritivas: “Este fim do mundo tem a aparência de um murmúrio” (Excessif), ele “resiste a toda perspectiva de transcendência” (Chronic’Art), uma experiência “única, sensorial, poética, enigmática, inesquecível” (La Croix), “Béla Tarr faz um mundo diante dos nossos olhos” (Le Monde), “o cinema de Tarr não procede por rupturas, mas por deslizamentos sucessivos” (Positif).

Que o filme seja ou não tudo isto dito acima, o fato é que existem 150 minutos de película, e concretamente alguma coisa se passa diante dos olhos do espectador durante este tempo todo. Antes de partir para as conclusões sublimes e metafísicas, talvez valha a pena descobrir quais os mecanismos utilizados para se atingir tamanho prazer (sensorial, abstrato, quase orgásmico) da crítica.

Ora, a família descrita pela sinopse vive um quotidiano miserável, mas sem piedade nem reclamações. Todas as manhãs, a filha se levanta, se veste, vai ao poço, busca água, volta, cozinha duas batatas, que ela e o pai comem com as mãos, um sentado em frente ao outro. Depois eles alimentam o cavalo, limpam o estábulo e voltam para casa. Esta é basicamente a mesma ação que se repete durante os cinco dias mostrados em tela, e divididos solenemente na tela preta com as inscrições “primeiro dia”, “segundo dia” e assim por diante.

O tédio que poderia nascer desta repetição banal é amenizado pelo exercício de estilo, pela lenta e gradual composição da imagem. No primeiro dia, vemos apenas o pai comer, num plano fixo. No segundo dia, vemos somente a filha. No terceiro, filha e pai são vistos num plano de conjunto, com a porta da casa ao fundo. No quarto dia, novo plano de conjunto, mas desta vez com a cama ao fundo. Béla Tarr compõe aos poucos o espaço, revelando estas mesmas ações com um prazer da composição, da luz e do som, que constituem em si o objeto de estudo deste filme. Esqueça o cavalo, esqueça Nietzsche, esqueça o fim do mundo: este é essencialmente um filme sobre a imagem e sobre a mise en scène – a miséria dos protagonistas serve sobretudo a eliminar qualquer elemento narrativo capaz de alterar o quotidiano dos personagens. A miséria e o isolamento geográfico garantem a imobilidade necessária ao exercício de estilo do diretor.

O mesmo ocorre com as idas e vindas ao poço, com as imagens através da janela, que são vistas ora do ponto de vista do poço, ora da porta da casa, ora acompanhando os personagens… Os planos são longuíssimos, seguindo a lógica de um imperturbável steadycam que desenvolve uma coreografia perfeitamente cronometrada a cada entrada e saída de cômodos. Às vezes, pela narração pedante, o filme se assemelha à literatura; pela coreografia da câmera e pelos movimentos controlados de cada personagem, poderia se pensar num espetáculo de dança; pela mesma música repetitiva mas com mudanças discretas, O Cavalo de Turim se assemelha ao desenvolvimento rítmico de uma partitura musical.

A música respira uma certa nobreza, o preto e branco bastante trabalhado também mostra refinamento, e toda esta confluência de aspectos de artes diferentes confere inevitavelmente o selo de “artístico” o filme. Vale lembrar que desde o nascimento do termo “filme de arte”, em 1908, os elementos mais importantes para que uma obra cinematográfica fosse considerada artística eram estes: a impressão de dificuldade da realização (o preto e branco, os planos-sequência), a singularidade da narrativa, a referência às outras artes consagradas. Este filme húngaro é uma “obra de arte” no sentido mais clássico e velho do termo.

Não deixa de ser curioso, portanto, ver uma parte da crítica clamar sua intensa modernidade – em comparação com as montagens frenéticas dos filmes de estúdio. Pode-se acusar estas pessoas de terem memória curta, mas muitos críticos culturais já falavam que não havia novidades na produção cultural, e que toda impressão de originalidade era cíclica: o 3D de antigamente virou a sensação de hoje, os planos-sequência teatrais dos anos 40 nos aparecem como sinal de modernidade em pleno 2011. Um valor permanece estável: o interesse do “público especializado”, ou seja, dos críticos, pela imagem que reflete a própria imagem, e que faz do cinema seu objeto de estudo. Já o “conteúdo”, a arte do storytelling (“contar uma história”), é algo cada vez menos valorizado pela elite do cinema moderno, pós-1945.

Sobra uma experiência interessantíssima para o “público especializado”, e insuportavelmente tediosa para o espectador comum. O Cavalo de Turim é destas obras-primas elitistas, “burguesas” em seu formalismo e na beleza da miséria que retratam, além da ausência de conexão com a realidade e com a sociedade. Este filme apresenta um conhecimento e domínio da linguagem cinematográfica invejável, mas que poderia perfeitamente se encontrar no cinema de 70 anos atrás. Este cinema belo, instigante e inteligente é também, ao mesmo tempo, reacionário, conservador e esnobe.
——-
O Cavalo de Turim (The Turin Horse, A Torinói Ló, 2011)
Filme húngaro-alemão-suíço-francês dirigido por Béla Tarr.
Com Erika Bok, Mihály Kormos, Janos Derzsi.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quem, afinal, tem o que dizer diante da megacrise do império?

Viver entre os 1%

Quando se é trabalhador, de família de trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se dá bem, ou outros vibram de orgulho – não só pelo que conseguiu ter sucesso, mas porque, de algum modo, um de nós venceu, derrotou o sistema brutal contra todos, que comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra nós. Nós conhecíamos as regras, e as regras diziam que nós, ratos das fábricas da cidade, nunca conseguíamos fazer cinema, ou aparecer em entrevistas na televisão ou conseguíamos fazer-nos ouvir em palanque nacional. O artigo é de Michael Moore.

Tradução do Coletivo da Vila Vudu

 

Amigos,

Há 22 anos, que se completam nesta terça-feira, estava com um grupo de operários, estudantes e desempregados no centro da cidade onde nasci, Flint, Michigan, para anunciar que o estúdio Warner Bros, de Hollywood, comprara os direitos de distribuição do meu primeiro filme, “Roger & Me”. Um jornalista perguntou: “Por quanto vendeu?”

“Três milhões de dólares” – respondi com orgulho. Houve um grito de admiração, do pessoal dos sindicatos que me cercava. Nunca acontecera, nunca, que alguém da classe trabalhadora de Flint (ou de lugar algum) tivesse recebido tanto dinheiro, a menos que um dos nossos roubasse um banco ou, por sorte, ganhasse o grande prêmio da loteria de Michigan.

Naquele dia ensolarado de novembro de 1989, foi como se eu tivesse ganho o grande prêmio da loteria – e o pessoal com quem eu vivia e lutava em Michigan ficou eufórico com o meu sucesso. Foi como se um de nós, finalmente, tivesse conseguido, tivesse chegado lá, como se a sorte finalmente nos tivesse sorrido. O dia acabou em festa. Quando se é trabalhador, de família de trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se dá bem, ou outros vibram de orgulho – não só pelo que conseguiu ter sucesso, mas porque, de algum modo, um de nós venceu, derrotou o sistema brutal contra todos, sem mercê, que comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra nós.

Nós conhecíamos as regras, e as regras diziam que nós, ratos das fábricas da cidade, nunca conseguíamos fazer cinema, ou aparecer em entrevistas na televisão ou conseguíamos fazer-nos ouvir em palanque nacional. A nossa parte deveria ser ficar de bico calado, cabeça baixa, e voltar ao trabalho. E, como que por milagre, um de nós escapara dali, estava a ser ouvido e visto por milhões de pessoas e estava ‘cheio de massa’ – santa mãe de deus, preparem-se! Um palanque e muito dinheiro... agora, sim, é que os de cima vão ver!

Naquele momento, eu sobrevivia com o subsídio de desemprego, 98 dólares por semana. Saúde pública. O meu carro morrera em abril: sete meses sem carro. Os amigos convidavam-me para jantar e sempre pagavam a conta antes que chegasse à mesa, para me poupar ao vexame de não poder dividi-la.

E então, de repente, lá estava eu montado em três milhões de dólares. O que eu faria do dinheiro? Muitos rapazes de terno e gravata apareceram com montes de sugestões, e logo vi que, quem não tivesse forte sentido de responsabilidade social, seria facilmente arrastado pela via do “eu-eu” e muito rapidamente esqueceria a via do “nós-nós”.

Em 1989, então, tomei decisões fáceis:

1. Primeiro de tudo, pagar todos os meus impostos. Disse ao sujeito que fez a declaração de rendimentos, que não declarasse nenhuma dedução além da hipoteca; e que pagasse todos os impostos federais, estaduais e municipais. Com muita honra, paguei quase um milhão de dólares pelo privilégio de ser norte-americano, cidadão deste grande país.

2. Os 2 milhões que sobraram, decidi dividir pelo padrão que, uma vez, o cantor e activista Harry Chapin me ensinou, sobre como ele próprio vivia: “Um para mim, um para o companheiro”. Então, peguei metade do dinheiro – e criei uma fundação para distribuir o dinheiro.

3. O milhão que sobrou, foi usado assim: paguei todas as minhas dívidas, algumas que eu devia aos meus melhores amigos e vários parentes; comprei um frigorífico para os meus pais; criei fundos para pagar a universidade das sobrinhas e sobrinhos; ajudei a reconstruir uma igreja de negros destruída num incêndio, lá em Flint; distribuí mil perus no Dia de Ação de Graças; comprei equipamento de filmagem e mandei para o Vietnã (a minha ação pessoal, para reparar parte do mal que fizemos àquele país, que nós destruímos); compro, todos os anos, 10 mil brinquedos, que dou a Toys for Tots no Natal; e comprei para mim uma moto Honda, fabricada nos EUA, e um apartamento hipotecado, em Nova York.

4. O que sobrou, depositei numa conta de poupança simples, que paga juros baixos. Tomei a decisão de jamais comprar ações. Nunca entendi o cassino chamado Bolsa de Valores de Nova York, nem acredito em investir num sistema com o qual não concordo.

5. Sempre entendi que o conceito do dinheiro que gera dinheiro criara uma classe de gente gananciosa, preguiçosa, que nada produz além de miséria e medo para os pobres. Eles inventaram meios de comprar empresas menores, para imediatamente as fechar. Inventaram esquemas para jogar com as poupanças e reformas dos pobres, como se o dinheiro dos outros fosse dinheiro deles. Exigiram que as empresas sempre registassem lucros (o que as empresas só conseguiram porque despediram milhares de trabalhadores e acabaram com os serviços de saúde pública para os que ainda tinham empregos). Decidi que, se ia afinal ‘ganhar a vida’, teria de ganhá-la com o meu trabalho, o meu suor, as minhas ideias, a minha criatividade. Eu produziria produtos tangíveis, algo que pudesse ser partilhado com todos ou de que todos gostassem, como entretenimento, ou do qual pudessem aprender alguma coisa. O meu trabalho, sim, criaria empregos, bons empregos, com salários decentes e todos os benefícios de assistência médica.

Continuei a fazer filmes, a produzir séries de televisão e a escrever livros. Nunca iniciei um projecto pensando “quanto dinheiro posso ganhar com isso?”. Nunca deixei que o dinheiro fosse a força que me fizesse fazer qualquer coisa. Fiz, simplesmente, exatamente o que queria fazer. Essa atitude ajuda a manter honesto o meu trabalho – e, acho, ao mesmo tempo, que resultou em milhões de pessoas que compram bilhetes para assistir aos meus filmes, assistem aos programas que produzo e compram os meus livros.

E isso, precisamente, enlouqueceu a direita. Como é possível que alguém da esquerda tenha tanta audiência no ‘grande público’?! Não pode ser! Não era para acontecer (Noam Chomsky, infelizmente, não vai aparecer no Today View de hoje; e Howard Zinn, espantosamente, só chegou à lista dos mais vendidos do New York Times depois de morto). Assim opera a máquina dos meios de comunicação. Está regulada para que ninguém jamais ouça falar dos que, se pudessem, mudariam todo o sistema, para coisa muito melhor. Só liberais sem personalidade, que vivem de exigir cautela e concessões e reformas lentas, aparecem com os nomes impressos nas páginas de editoriais dos jornais ou nos programas da televisão aos domingos.

Eu, de algum modo, encontrei uma brecha na muralha e meti-me por ali. Sinto-me abençoado, podendo viver como vivo – e não ajo como se tudo fosse garantido para sempre. Acredito nas lições que aprendi numa escola católica: que se tens sucesso, maior é a tua responsabilidade por quem não tenha a mesma sorte. “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.” Meio comunista, eu sei, mas a ideia é que a família humana existe para partilhar com justiça as riquezas da terra, para que os filhos de Deus passem por esta vida com menos sofrimento.

Dei-me bem – para autor de documentários, dei-me super bem. Isso, também, faz enlouquecer os conservadores. “Você está rico por causa do capitalismo!” – gritam. Hummm... Não. Não assistiram às aulas de Economia I? O capitalismo é um sistema, um esquema ‘pirâmide’ que explora a vasta maioria, para que uns poucos, no topo, enriqueçam cada vez mais. Ganhei o meu dinheiro à moda antiga, honestamente, fabricando produtos, coisas. Nuns anos, ganho uma montanha de dinheiro, noutros anos, como o ano passado, não tenho trabalho (nada de filme, nada de livro); então, ganho muito menos. “Como é que você diz que defende os pobres, se você é rico, exatamente o contrário de ser pobre?!” É o mesmo argumento de quem diz que, “Você nunca fez sexo com outro homem! Como pode ser a favor do casamento entre dois homens?!"

Penso como pensava aquele Congresso só de homens que votou a favor do voto para as mulheres, ou como os muitos brancos que foram às ruas, marchar com Martin Luther Ling, Jr. (E lá vem a direita, aos gritos, ao longo da história: “Hei! Você não é negro! Você nem foi linchado! Por que está a favor dos negros?!”). Essa desconexão impede que os Republicanos entendam por que alguém dá o próprio tempo ou o próprio dinheiro para ajudar quem tenha menos sorte. É coisa que o cérebro da direita não consegue processar. “Kanye West ganha milhões! O que está a fazer lá, em Occupy Wall Street?!”. Exatamente – lá está, exigindo que aumentem os impostos a ele mesmo. Isso, para a direita, é definição de loucura. Todo o resto do mundo somos muito gratos que gente como ele se tenha levantado, ainda que – e sobretudo porque – é gente que se levantou contra os seus interesses pessoais financeiros. É precisamente a atitude que a Bíblia, que aqueles conservadores tanto exaltam por aí, exige de todos os ricos.

Naquele dia distante, em novembro de 1989, quando vendi o meu primeiro filme, um grande amigo meu disse o seguinte: “Eles cometeram um erro muito grave, ao entregar tanto dinheiro a um sujeito como tu. Essa massa fará de ti um homem perigosíssimo. É prova do acerto do velho dito popular: ‘Capitalista é o sujeito que te vende a corda para se enforcar a ele mesmo, se achar que, na venda, pode ganhar algum dinheiro.”

Atenciosamente,

Michael Moore

MMFlint@MichaelMoore.com
27/10/2011
Conheça mais desse trabalho de difusão textual: Outras Palavras - Comunicação compartilhada e Pós-capitalismo – EM MUDANÇAS!