Observatório da Imprensa
Não
há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de
comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:
1.
Os atores e interesses que interferem, de facto, na disputa pela
formulação das políticas públicas são poucos: governo, empresários de
mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de equipamento
eletroeletrônico) e parlamentares.
Há que se mencionar ainda o
Judiciário que, por meio de sua mais alta corte, o Supremo Tribunal
Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de maneira a
legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a
liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de
defesa e proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009).
Aguarda decisão,
por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na
qual os empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e
representados pelo ex-ministro Eros Grau, pedem a impugnação do artigo
254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale dizer, questionam a
política pública definida pelas portarias 1220/2006 e 1000/2007 do
Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para Classificação
Indicativa de programas de rádio e televisão.
Não me esqueci da
chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais, partidos,
sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua
interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro
tratá-la como um não-ator.
2. Alguns atores ocupam posições
superpostas, por exemplo: ministro das Comunicações e/ou parlamentar
(poder concedente) é, simultaneamente, empresário de mídia
(concessionário de radiodifusão); e,
3. As principais regras e
normas legais são mantidas ou se reproduzem, ao longo do tempo, mesmo
quando há – como tem havido – um processo de radicais mudanças
tecnológicas.
Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos
principais, pelo menos desde a articulação que levou à derrubada dos 52
vetos do então presidente João Goulart ao Código Brasileiro de
Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que deu origem à criação da
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), 50 anos
atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço de
radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam:
primeiro na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na
Constituição de 1988 e, mais recentemente, no Decreto 7670/2012.
O
resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a
supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da
politica pública de comunicações.
Creio que as políticas de
radiodifusão no Brasil constituem um exemplo daquilo que, em Ciência
Política, os institucionalistas históricos chamam de “dependência de
trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez iniciada uma determinada
política, os custos para revertê-la são aumentados. (...) As barreiras
de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão fácil da
escolha inicial” (Levi).
O eventual leitor(a) poderá constatar
esta “dependência de trajetória” nos balanços que tenho publicado neste
Observatório desde 2004 (ver “
Adeus às ilusões“, “
Balanço de muitos recuos e alguns avanços“, “
Notas de um balanço pouco animador“, “
Balanço provisório de um semestre inusitado“, “
Mais recuos do que avanços“ “
Algumas novidades e poucos progressos“, “
O que se pode esperar para 2009? (1)“, “
O que se pode esperar para 2009? (final)“, “
Por que a mídia não se autoavalia?“ e “
Os avanços de 2011“).
2011 versus 2012
No
fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando
fatos que poderiam ser considerados como avanços no sentido da
democratização da comunicação (ver
“Os avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:
(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso Nacional;
(b)o
esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em prol da criação
dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados da
Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da
Bahia foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio
Grande do Sul ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,
(c)a
Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a
Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido criada
em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de
questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do
esforço de vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da
Casa.
Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns
acontecimentos protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia,
no Brasil e no exterior.
Inglaterra e Argentina
O primeiro registro há de ser para
Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry)
cujo relatório final foi apresentado em novembro. Nele está uma
descrição/diagnóstico de práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não
ocorrem apenas na Inglaterra. Há também um conjunto de propostas de
ações institucionais para evitar o desvirtuamento completo da liberdade
da imprensa, inclusive a criação de uma instância reguladora autônoma,
tanto em relação ao governo quanto aos empresários de mídia.
Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson deveria ser
lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “
Um documento com lugar na história“, “
Areopagítica, 368 anos depois“ e “
O vespeiro do controle externo“).
O
segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o
governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais
diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional –
onde tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei.
Mesmo tendo essa origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por
parte de um dos principais oligopólios de mídia da América Latina e de
seus aliados, inclusive no Brasil, uma resistência feroz, como se
constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à liberdade de expressão.
Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para liberdade de
expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um
exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão
plural e diversa.
Discurso único
No Brasil, o ano de
2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –antes, durante e
depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº
470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de
vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar,
condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da
presunção de inocência e/ou a ausência de provas.
A defesa
corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas
suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o
massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação
(ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel
político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos
decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.
Numa
época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões;
jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde e
Newsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas
(exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a
intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol),
ocorrida em outrubro, em São Paulo, e manifestações e documentos
provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse
lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem
no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a
democracia.
Inércia governamental
O ano de 2012 ficará
também marcado pela inquietante inércia do governo federal em relação ao
setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a Lei de Acesso
à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do Ministério das
Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no Decreto
5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e
para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos
poderes públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente
nada.
Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na
1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao
governo federal em dezembro de 2009?
Onde está o projeto de marco
regulatório elaborado no fim do governo Lula e encaminhado pelo
ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em janeiro de
2011?
Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de
distribuição de recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República (Secom-PR) vem sufocando
financeiramente a chamada mídia alternativa e consolidando ainda mais a
concentração de grupos oligopolísticos. A mídia alternativa, por óbvio,
não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os
chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil).
Se
fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não
regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a
máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de
que mais vozes fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade
e a pluralidade – vale dizer, mais liberdade de expressão.
E o Parlamento?
Além
da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos
interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há
de se mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação
Social (CCS), depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa
diretora do Congresso Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é
historicamente vinculada a concessões de radiodifusão, ignorou a
Frentecom e articulou a nova composição do CCS fazendo que nele
prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e religiosos.
Os não-atores
Por
fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha
nacional “Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo
tempo”(em abril) e seus vários eventos regionais e locais, incluindo a
vinda ao Brasil de Frank La Rue, o relator especial pela liberdade de
expressão da ONU (em dezembro). Apesar do boicote sistemático da grande
mídia, a atenção que a campanha tem recebido na mídia alternativa
constrói um embrionário espaço público onde circulam informações que não
estão disponíveis nas fontes dominantes.
Registre-se ainda que
partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento da Ação Penal nº
470 – finalmente parecem se dar conta da importância fundamental das
comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia, não se tem
até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso
Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.
Não será fácil
O
mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego
nunca foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social
fez as classes A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três
anos, outras oito milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O
Corinthians, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, é campeão mundial
de futebol. O nível de satisfação do brasileiro nunca esteve tão
elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular, IBGE e Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República).
A novela
Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis meses com
audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa
parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros
19 meses do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados,
de acordo com a Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação
Penal nº 470; se apresenta como defensora da ética pública e das
liberdades – sobretudo da liberdade de expressão –; e prossegue na sua
obsessão seletiva de mobilizar a “opinião pública” contra determinados
políticos e partidos.
As médias de aprovação tanto do governo
como da presidente Dilma Rousseff batem recordes após recordes: 62% e
78%, respectivamente, de acordo com a última pesquisa CNI/Ibope
(dezembro).
Diante desses fatos, sejamos razoáveis.
Como
fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu
direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas
por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como
se fossem o interesse publico?
Mais ainda: como esperar que um
governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar
o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir
reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas
alguns segundos?
Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.
(*)
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no
Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de
Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política
de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora
Publisher Brasil, 2012, entre outros livros