Há pouco mais de um ano, no dia 20 de janeiro de 2014, o site de
notícias NovoJornal era tirado do ar e seu proprietário, Marco Aurélio
Carone, preso. Não era a primeira vez que o site enfrentava problemas
com os poderosos em Minas Gerais. Quatro anos antes, 12 integrantes da
Polícia Militar, fortemente armados, comandados pelo coronel Praxedes e
liderados pela promotora Vanessa Fusco, tendo em mãos um mandado de
busca e apreensão, “visitaram” sua redação.
Entraram, vasculharam tudo e levaram todo o equipamento.
Coincidentemente, poucas horas depois o site era tirado do ar. Quem o
acessasse encontrava apenas um letreiro avisando que a publicação havia
sido retirada do ar por ordem da Divisão contra Crimes Cibernéticos da
Polícia Civil de Minas Gerais e que ações daquele tipo eram “muito
comuns nos Estados Unidos”.
Na redação, a polícia encontrou apenas o jornalista Geraldo Elísio,
editorialista e um dos cinco profissionais que atuavam no site. Uma
semana após aquele “empastelamento”, o NovoJornal voltava ao ar, postado
de um provedor sediado exatamente nos Estados Unidos. Outra adequação
providenciada por seu proprietário, além de comprar novos equipamentos,
foi alojar o servidor em uma sala com paredes reforçadas.
Já naquela época, o NovoJornal era sucesso de público. Enquanto toda a
mídia impressa em Belo Horizonte não atingia 80 mil exemplares/dia, os
acessos ao NovoJornal ultrapassavam os 400 mil/dia e não paravam de
crescer. Pouco antes de seu “empastelamento” final, a publicação atingia
picos recordes impensáveis pela imprensa mineira, chegando a um milhão
de acessos/dia. Nesta operação, o site do jornal perdeu o br e passou a
usar o pontocom, que significa domínio internacional.
Equipamentos destruídos
O sucesso de público explicava-se. O NovoJornal era o único em Minas a
destoar do coro dos contentes. Enquanto em todos os demais se liam
apenas matérias elogiosas e exaltando os feitos dos governos tucanos, o
site publicava, quase diariamente, denúncias sobre os desmandos que
aconteciam no estado. Entre outros assuntos, eram destaque a falta de
licitação para contratação de obras por parte do governo mineiro, os
privilégios para os “amigos” do então governador Aécio Neves, a prisão
do delator do mensalão tucano Nilton Monteiro, documentos inéditos
envolvendo o mensalão tucano, a relação completa dos 153 políticos
beneficiados pela Lista de Furnas, irregularidades na construção da nova
sede do governo mineiro, apelidada de “Aeciolândia”, além de denúncias
sobre o contrabando de nióbio e a máfia do tráfico de órgãos, com sede
na cidade mineira de Poços de Caldas.
Além destas denúncias, o site inovou ao anexar, ao final de cada
reportagem, documentos que comprovavam o que estava sendo publicado.
Outra inovação, digna de registro, é que além do espaço para os
internautas se manifestarem, o NovoJornal publicava também, no final de
cada matéria, que “o espaço estava aberto para a resposta de todo aquele
que se sentisse prejudicado”. O espaço foi utilizado uma única vez,
pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Entretanto, a emenda
ficou pior do que o soneto. A nota da empresa, sem querer, acabou
confirmando os fatos denunciados.
Apesar do recorde de público, o NovoJornal – que chegou a ter alguns
anunciantes de peso devido à parceria feita com o Google – viu sua
receita publicitária minguar. Os atrasos de pagamentos se tornaram
frequentes, como igualmente frequentes passaram a ser as “visitas” de
emissários de políticos tucanos propondo “acertos” e “negociações” para
que Carone “baixasse” o tom das críticas. Cabeça dura, como o próprio
Carone se define, ele não cedeu, mesmo ciente dos rumores de que “as
coisas poderiam piorar” com a proximidade do ano eleitoral.
O que Carone não poderia imaginar é que ficaria preso nove meses, na
maior parte do tempo incomunicável, em uma penitenciária de segurança
máxima, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Em geral,
as prisões preventivas, como no caso dele, não ultrapassam 90 dias e, se
a pessoa apresenta problema de saúde, o cárcere pode ser substituído
por prisão domiciliar. Mesmo sendo diabético, hipertenso e tendo sofrido
um enfarte, que o levou à cadeira de rodas, permaneceu na prisão. Do
lado de fora, seus familiares, em especial sua filha Cristina e seu
netinho, sofriam todo tipo de pressão, humilhação e ameaças, com o
apartamento em que moram sendo revistado diversas vezes.
No mesmo dia em que Carone foi preso, os equipamentos na sede do
NovoJornal foram destruídos e o jornalista Geraldo Elísio, que há sete
meses não trabalhava mais lá, teve seu apartamento revistado e seus
equipamentos pessoais –
notebook, HD externo,
pen drive e cadernetas de telefones – igualmente apreendidos.
Ângulo desfavorável
A acusação contra Carone não poderia ser mais absurda. Ele era apontado
como “suposto integrante de uma quadrilha” que teria Nilton Monteiro, o
denunciante do mensalão tucano, como chefe. Sua parte no esquema seria
“forjar e divulgar documentos falsos contra autoridades mineiras”. Já o
jornalista Geraldo Elísio foi acusado de ser “braço direito” da
organização criminosa. O curioso neste processo é que boa parte dos
documentos divulgados por Carone foram os mesmos utilizados pelo
procurador-geral da República Rodrigo Janot para pedir pena de prisão de
22 anos para o ex-governador Eduardo Azeredo, em cuja campanha para a
reeleição, em 1998, teve lugar o chamando mensalão tucano. Mais curioso
ainda é que, após nove meses de prisão e pouco depois do segundo turno
das eleições presidenciais, Carone foi solto por “absoluta falta de
provas” que o incriminassem. No mesmo dia, Nilton Monteiro também
ganhava a liberdade.
A esmagadora maioria da população mineira desconhece esses fatos. Não
ficou sabendo dos “empastelamentos” do NovoJornal e se ouviu falar sobre
a prisão de Carone provavelmente o liga a alguém que falsificava
documentos. O desconhecimento se justifica. Em momento algum a imprensa
mineira publicou uma nota, sequer, sobre a presença da polícia na sede
do jornal e sua retirada do ar. Quando da prisão de Carone, ele foi
apresentado como um “criminoso comum, que estaria chantageando
autoridades”. Muitas das matérias sobre o assunto foram acompanhadas de
fotos dele, tiradas de um ângulo que o mostravam com uma fisionomia
quase assustadora, por ser uma pessoa alta, gorda, usar barba e estar
muito tenso.
Direito de resposta não é praxe
Na época da prisão, Geraldo Elísio, que durante mais de três décadas
atuou na imprensa mineira e tem um Prêmio Esso Regional de Jornalismo
defendendo os direitos humanos, procurou colegas e dirigentes das
publicações locais para solicitar direito de resposta. De uns, ouviu que
“direito de resposta não era praxe”. De outros, o colega ficou de
redigir o texto e solicitar aprovação da direção, que não aconteceu. No
jornal
Estado de Minas, onde havia trabalhado por décadas, sequer conseguiu falar com alguém da diretoria ou da redação.
Ao ser acusado de “braço direito” da suposta quadrilha, ele procurou a
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais
e, em audiência pública, encaminhou ao Ministério Público, com as
assinaturas do presidente da Comissão, deputado Durval Ângelo (PT) e do
vice-líder do governo naquela Casa, Duarte Bechir (PSDB), um
oferecimento espontâneo da quebra dos seus sigilos bancário, fiscal e
telefônico. O que jamais foi feito, embora o jornalista mantenha esta
oferta estendendo-a inclusive a qualquer órgão de imprensa do país que
se interessar pelo assunto. Detalhe: Geraldo Elísio é aposentado pelo
INSS.
Enquanto isso, os jornais mineiros continuavam publicando apenas a
versão oficial e várias rádios aproveitavam a oportunidade para aumentar
a audiência de seus programas policialescos. Foram sites como Conversa
Afiada, CGN, Viomundo [e este
Observatório] e as redes sociais
os únicos a noticiarem o “empastelamento” final do NovoJornal e
denunciarem a prisão de seu proprietário. Foram, sobretudo, as redes
sociais que, ao longo de nove meses, cobraram a soltura de Carone e
explicações sobre o arbítrio que cercou sua prisão.
Em sua página no Facebook, o jornalista Geraldo Elísio cobrou das
autoridades mineiras, diariamente, explicações sobre o episódio, além de
indagar as razões pelas quais não aceitavam a quebra de seus sigilos.
Eu mesma fui uma das poucas pessoas que, durante este período, em minha
página do Facebook, igualmente cobrei explicações das autoridades. Em
alguns momentos, recebi de colegas jornalistas comentários estranhando
as minhas postagens. “Você tem certeza que isto está acontecendo?”,
argumentavam alguns, lembrando que não tinham visto nada daquilo na
mídia.
Autoridades devem explicações
Pois é. Não deu na mídia, mas aconteceu! Claro que as autoridades
mineiras devem – e muitas – explicações sobre o que fizeram. Se nada foi
encontrado que incriminasse Carone e o NovoJornal, a publicação pode
voltar ao ar e ele, no mínimo, deve ser indenizado. Não sei quais são os
planos futuros deste empresário, pois nem sua saída da cadeia foi
noticiada pela mídia. Novamente a notícia circulou apenas através das
redes sociais e pude comprovar o fato por intermédio de pessoas próximas
a ele. Pessoas que lembram que ele está arrasado.
Para nós, jornalistas e pesquisadores sobre jornalismo e mídia, a
questão está longe de ter um ponto final. Ela demanda e continuará
demandando uma profunda reflexão sobre o que aconteceu. Reflexão que
envolve muito mais do que a denúncia de um ato autoritário, de arbítrio e
de censura contra uma publicação e seu proprietário. Há inúmeras
perguntas que precisam ser respondidas.
Se a maioria da população realmente não sabia do que aconteceu com o
NovoJornal e com seu proprietário, o mesmo não pode ser dito dos
jornalistas mineiros e dos veículos locais. O Sindicato dos Jornalistas
Profissionais de Minas Gerais (SJPMG) foi informado, no mesmo dia, sobre
o que havia ocorrido. A então presidente da entidade, Eneida Costa,
convocou uma reunião da diretoria para tratar do assunto, mas não
conseguiu que fosse aprovada uma posição unânime. Vários integrantes da
diretoria alegaram que por Carone ser publicitário e não jornalista, o
fato não dizia respeito à entidade! Mais ainda: não faltou quem
lembrasse dele apenas como “mau patrão”, pois em algumas oportunidades
tinha deixado de pagar jornalistas que com ele trabalharam.
Eneida Costa acabou divulgando, em caráter pessoal, uma nota de repúdio
no que diz respeito à busca e apreensão dos equipamentos do jornalista
Geraldo Elísio que, aliás, até agora, não foram devolvidos, sem contar
que, quando da apreensão, não foram feitos os devidos
back up,
bit a bit,
como determina a lei e, mais, grave, não foi deixado com ele nenhum
documento, o que pode dar oportunidade às autoridades policiais alegar
não ter existido o problema. Mas, por outro lado, tendo o jornalista
denunciado o fato à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa e deposto perante um delegado e um juiz de direito da 2ª
Vara Criminal de Belo Horizonte, o caso ficou documentado.
Volta aos “anos de chumbo”
Ao contrário do Sindicado dos Jornalistas, a Associação Brasileira de
Imprensa (ABI) divulgou uma dura nota de repúdio ao fato, mantendo sua
tradição de não compactuar com nenhum tipo de autoritarismo e arbítrio.
Já as seções mineiras da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto dos
Arquitetos do Brasil e da Cúria Metropolitana primaram pelo silêncio,
contrariando suas histórias.
A própria Eneida Costa, em entrevista ao blog CGN, confirmou que
episódios como o do aeroporto de Cláudio, construído irregularmente e
com dinheiro público nas terras de um parente do ex-governador Aécio
Neves, eram de conhecimento dos jornalistas mineiros, apesar de a
denúncia ter sido publicada, pela primeira vez, pela
Folha de S.Paulo, e do assunto não ser mencionado por nenhuma publicação local. A revista
CartaCapital,
em pelo menos três oportunidades, publicou reportagens na mesma linha
das colocadas no ar pelo NovoJornal, envolvendo o mensalão tucano, a
Lista de Furnas e tráfico de órgãos. E não consta que seu proprietário
ou que os repórteres que as assinaram tenham sofrido quaisquer
constrangimentos.
Em outras palavras, não é razoável aceitar que a maioria dos
jornalistas mineiros não sabia o que estava acontecendo, envolvendo as
denúncias sobre desmandos e irregularidades cometidas pelos tucanos.
Isto sem falar sobre a inversão de valores, como o fato de autoridades –
que tinham por obrigação apurar as denúncias que estavam sendo
publicadas – trataram de prender, a mando dos poderosos de plantão, quem
as publicava, atingindo duramente um dos pressupostos da própria
democracia: a liberdade de expressão e de imprensa. Em outras palavras,
ao agirem assim, fizeram com que Minas Gerais retornasse aos “anos de
chumbo”, apesar de o país viver em plena democracia.
A pergunta que fica é: por que quase todos se calaram? Por que Minas
Gerais, “cujo outro nome é liberdade”, compactuou com este absurdo?
Várias hipóteses podem ser levantadas. O senso crítico se forma através
da divulgação feita pela mídia. Se ela silenciou sobre estes assuntos,
natural que muitos não tivessem conhecimento. Outra razão: interessados
em objetivos escusos obviamente atuaram para que o silêncio
permanecesse. Silêncio que só foi quebrado após as eleições e, mesmo
assim, sem a participação da mídia e da maior parte dos jornalistas
mineiros.
Medo ancestral
E por que isto ocorreu? Por razões inconfessáveis? Por medo? Se foi por
medo, qual a origem dele? Para alguns estudiosos, o medo generalizado
dos mineiros é enorme e tem razões ancestrais. É possível localizar seu
DNA ao tempo do Brasil colônia, quando a região era explorada pelas
potências europeias de então. A população assistiu aterrorizada às
mortes e perseguições envolvendo os integrantes da sedição de Vila Rica
(Felipe dos Santos) e da Inconfidência Mineira (Tiradentes) e esse medo,
séculos depois, ainda persistiria. Razão pela qual ao questionarem o
receio que dava origem a um silêncio incômodo, ingleses ligados à
exploração mineral indagavam aos nativos
why (por que em
inglês), originando-se daí a expressão “uai”, típica de Minas Gerais,
que passou a ser repetida em lugar da resposta.
Todos estes fatores podem estar agrupados e servirem para explicar este
silêncio, mas salienta-se a fase de “vacas magras” que vive a imprensa
mineira, mal acostumada a se beneficiar dos cofres públicos para manter o
seu ritmo de existência. Além disso, as transformações pelas quais
passa esta mídia, sem a devida compreensão por parte de sua direção e de
muitos funcionários, pode ter levado à rendição no sentido de manter o
status quo
e postos de trabalho, abrindo-se mão das finalidades precípuas da
própria mídia e do jornalismo e, o mais triste, da ética e da honra.
A imprensa mineira, jornais e muitos jornalistas, com este episódio,
quase se suicida, morrendo de inanição por falta de divulgar notícias e
torcendo para que um dia nada aconteça para que possa publicar apenas
notas sociais, pequenos anúncios e avisos fúnebres, sem imaginar que
entre estes poderá estar o seu.
***
Ângela Carrato é jornalista, professora do
Departamento de Comunicação Social da UFMG, mestre e doutora em
Comunicação. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade