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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Laivos da Operação Condor? - II

Brasil é apenas o 104º no ranking de liberdade de imprensa



Do Justificando

Por Mauro Donato*

Segundo o mais recente ranking sobre liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteira, o Brasil ocupa a 104ª posição. Caiu 5 posições (havia caído 9 em 2013 e agora desceu mais um pouco). Centésima quarta posição entre 180 países é uma colocação preocupante e vexatória. Determinantes para a queda foram o aumento da violência contra jornalistas, o registro de ameaças e a quantidade de mortos durante o ano passado. Total de sete jornalistas assassinados.

Como pode isso?
Para os leitores dos grandes jornais, telespectadores dos canais abertos de TV e ouvintes das grandes rádios, um ranking desses irá soar como peça de ficção. Claro, nada disso acontece com os jornalistas que trabalham para aquela meia dúzia de famílias detentoras de quase oitenta por cento da mídia. Estes estão alinhados e repetem em uníssono o que seus chefes querem que seja dito e escondem o que seus patrões desejam que seja escondido.

A perseguição é sobre os independentes, é inegável. Veja quantas dificuldades o DCM enfrentou ao publicar o documentário Helicoca. “É um ambiente de medo para os jornalistas, sobretudo os jornalistas independentes, blogueiros”, disse Emanuel Colombié, chefe do departamento de pesquisas da Repórteres Sem Fronteiras.

Mas e o cinegrafista da Band? A tragédia ocorrida com Santiago Andrade em 2014 foi um acidente. Terrível, mas um acidente. Ninguém lançou a bomba propositalmente no cinegrafista da Band e, infelizmente, o caso dele é um bom exemplo da disparidade no tratamento da questão quando acontece com um ‘deles’. Toda a cobertura dramática, a dedicação em apontar os culpados, o enunciado destacando que as manifestações faziam sua “primeira vítima fatal”. Santiago era então a 11ª pessoa a morrer, não a primeira, desde os protestos de 2013 e dezenas de outros jornalistas já haviam sido feridos, muitos com gravidade como a perda de um olho e outros tendo seus equipamentos destruídos ou confiscados. Mas eram todos independentes e os casos não vieram para as manchetes.

O oligopólio da mídia brasileira é um dos principais motivos para o atraso do país. Seu monobloco alienador faz com que andemos para trás em diVersos rankings como de liberdade de imprensa ou de educação. Desinforma para manter seus privilégios.

Um exemplo nítido: Desinformados, muitos combateram o Marco Civil Regulatório da internet. Lobotomizados pela mídia unificada, diziam que se tratava de censura, que o PT queria controlar a rede. Agora estão aí desesperados com a notícia de que as operadoras desejam limitar e cobrar o acesso de forma diferenciada. E aqui mais uma vez vale a pena observar a cobertura jornalística atual sobre o tema. As operadoras de telefonia são grandes anunciantes. Em razão disso, a Globo tem se empenhado em explicar o porque da medida. Com infográficos, depoimentos técnicos minuciosos e longas reportagens, está claramente defendendo os amigos que detêm outro oligopólio.

Os barões da mídia estão pouco se lixando para um ranking como o do Repórteres sem Fronteira. Estão sempre atuando em bloco. Basta observar a reação orquestrada às notícias internacionais recentes. O Guardian, o New York Times, o Fìgaro e outros jornais estão tratando com seriedade e preocupação o que se passa por aqui no cenário político. E nem era para ser diferente. Para quem está de fora fica ainda mais evidente o teatro. Vá explicar para um gringo que quase 400 deputados com a ficha suja votaram pelo impeachment de alguém sem prova de crime.

Ato contínuo, a mídia brasileira dedica-se a desqualificar essa leitura. Renata LoPrete, da GloboNews, disse que eram comentários superficiais, carentes de fundamentações. Curioso é que a mesma mídia internacional é vista como rainha da cocada preta quando comenta sobre nossa economia interna, dá seus pitacos prevendo até o que ainda não ocorreu. Quando é para especular, tudo bem?

A mando das diretorias, as redações alternam o complexo de vira-lata com uma soberba vomitiva. Portanto, na grande mídia você não verá destaque para este vergonhoso ranking da Repórteres sem Fronteira, lá o que importa são os rankings de economia.

O ranking da ONG só confirma o quanto é perigoso, para um jornalista, não fazer parte da mídia dos Marinho, dos Saad, dos Mesquita. Para o público em geral, perigoso é informar-se apenas por ali. Vira vítima das operadoras de telefonia, do mercado automobilístico, da especulação imobiliária, financeira, e assim vai. Todo tipo de golpe fica fácil num ambiente assim.

*Mauro Donato é Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Liberdades de expressão, limites éticos, oportunismos

Justiça retoma ação do MPF contra Veja 

fonte: 247brasil 

no Ministério Público Federal

:
O Ministério Público Federal foi atendido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em uma ação contra a Abril, responsável pela revista Veja, e a ação civil pública por danos morais coletivos que tramita na 26ª Vara Cível Federal, na capital paulistana, será retomada; a Procuradoria pede que a editora desembolse R$ 1 milhão em reparação a uma reportagem publicada por Veja em maio de 2010, discriminando minorias étnicas; o texto, na visão da Procuradoria, baseou-se em informações distorcidas e expressões injuriosas para criticar o processo de demarcação de reservas destinadas a grupos indígenas e quilombolas

10 de Agosto de 2015 às 20:48

247 - O Ministério Público Federal foi atendido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em uma ação contra a Abril, responsável pela revista Veja, e a ação civil pública por danos morais coletivos que tramita na 26ª Vara Cível Federal, na capital paulistana, será retomada. A Procuradoria pede que a editora desembolse R$ 1 milhão em reparação a uma reportagem publicada por Veja em maio de 2010, discriminando minorias étnicas. A informação foi divulgada pela assessoria do MPF na tarde desta segunda-feira (10).

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Por que a não-regulação da mídia é censura: um caso recente

'NOVO JORNAL’

Verdades inconvenientes

Por Ângela Carrato em 03/02/2015 na edição 836
  
Há pouco mais de um ano, no dia 20 de janeiro de 2014, o site de notícias NovoJornal era tirado do ar e seu proprietário, Marco Aurélio Carone, preso. Não era a primeira vez que o site enfrentava problemas com os poderosos em Minas Gerais. Quatro anos antes, 12 integrantes da Polícia Militar, fortemente armados, comandados pelo coronel Praxedes e liderados pela promotora Vanessa Fusco, tendo em mãos um mandado de busca e apreensão, “visitaram” sua redação.

Entraram, vasculharam tudo e levaram todo o equipamento. Coincidentemente, poucas horas depois o site era tirado do ar. Quem o acessasse encontrava apenas um letreiro avisando que a publicação havia sido retirada do ar por ordem da Divisão contra Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de Minas Gerais e que ações daquele tipo eram “muito comuns nos Estados Unidos”.

Na redação, a polícia encontrou apenas o jornalista Geraldo Elísio, editorialista e um dos cinco profissionais que atuavam no site. Uma semana após aquele “empastelamento”, o NovoJornal voltava ao ar, postado de um provedor sediado exatamente nos Estados Unidos. Outra adequação providenciada por seu proprietário, além de comprar novos equipamentos, foi alojar o servidor em uma sala com paredes reforçadas.

Já naquela época, o NovoJornal era sucesso de público. Enquanto toda a mídia impressa em Belo Horizonte não atingia 80 mil exemplares/dia, os acessos ao NovoJornal ultrapassavam os 400 mil/dia e não paravam de crescer. Pouco antes de seu “empastelamento” final, a publicação atingia picos recordes impensáveis pela imprensa mineira, chegando a um milhão de acessos/dia. Nesta operação, o site do jornal perdeu o br e passou a usar o pontocom, que significa domínio internacional.


Equipamentos destruídos

O sucesso de público explicava-se. O NovoJornal era o único em Minas a destoar do coro dos contentes. Enquanto em todos os demais se liam apenas matérias elogiosas e exaltando os feitos dos governos tucanos, o site publicava, quase diariamente, denúncias sobre os desmandos que aconteciam no estado. Entre outros assuntos, eram destaque a falta de licitação para contratação de obras por parte do governo mineiro, os privilégios para os “amigos” do então governador Aécio Neves, a prisão do delator do mensalão tucano Nilton Monteiro, documentos inéditos envolvendo o mensalão tucano, a relação completa dos 153 políticos beneficiados pela Lista de Furnas, irregularidades na construção da nova sede do governo mineiro, apelidada de “Aeciolândia”, além de denúncias sobre o contrabando de nióbio e a máfia do tráfico de órgãos, com sede na cidade mineira de Poços de Caldas.
Além destas denúncias, o site inovou ao anexar, ao final de cada reportagem, documentos que comprovavam o que estava sendo publicado. Outra inovação, digna de registro, é que além do espaço para os internautas se manifestarem, o NovoJornal publicava também, no final de cada matéria, que “o espaço estava aberto para a resposta de todo aquele que se sentisse prejudicado”. O espaço foi utilizado uma única vez, pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Entretanto, a emenda ficou pior do que o soneto. A nota da empresa, sem querer, acabou confirmando os fatos denunciados.
Apesar do recorde de público, o NovoJornal – que chegou a ter alguns anunciantes de peso devido à parceria feita com o Google – viu sua receita publicitária minguar. Os atrasos de pagamentos se tornaram frequentes, como igualmente frequentes passaram a ser as “visitas” de emissários de políticos tucanos propondo “acertos” e “negociações” para que Carone “baixasse” o tom das críticas. Cabeça dura, como o próprio Carone se define, ele não cedeu, mesmo ciente dos rumores de que “as coisas poderiam piorar” com a proximidade do ano eleitoral.

O que Carone não poderia imaginar é que ficaria preso nove meses, na maior parte do tempo incomunicável, em uma penitenciária de segurança máxima, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Em geral, as prisões preventivas, como no caso dele, não ultrapassam 90 dias e, se a pessoa apresenta problema de saúde, o cárcere pode ser substituído por prisão domiciliar. Mesmo sendo diabético, hipertenso e tendo sofrido um enfarte, que o levou à cadeira de rodas, permaneceu na prisão. Do lado de fora, seus familiares, em especial sua filha Cristina e seu netinho, sofriam todo tipo de pressão, humilhação e ameaças, com o apartamento em que moram sendo revistado diversas vezes.

No mesmo dia em que Carone foi preso, os equipamentos na sede do NovoJornal foram destruídos e o jornalista Geraldo Elísio, que há sete meses não trabalhava mais lá, teve seu apartamento revistado e seus equipamentos pessoais – notebook, HD externo, pen drive e cadernetas de telefones – igualmente apreendidos.


Ângulo desfavorável

A acusação contra Carone não poderia ser mais absurda. Ele era apontado como “suposto integrante de uma quadrilha” que teria Nilton Monteiro, o denunciante do mensalão tucano, como chefe. Sua parte no esquema seria “forjar e divulgar documentos falsos contra autoridades mineiras”. Já o jornalista Geraldo Elísio foi acusado de ser “braço direito” da organização criminosa. O curioso neste processo é que boa parte dos documentos divulgados por Carone foram os mesmos utilizados pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot para pedir pena de prisão de 22 anos para o ex-governador Eduardo Azeredo, em cuja campanha para a reeleição, em 1998, teve lugar o chamando mensalão tucano. Mais curioso ainda é que, após nove meses de prisão e pouco depois do segundo turno das eleições presidenciais, Carone foi solto por “absoluta falta de provas” que o incriminassem. No mesmo dia, Nilton Monteiro também ganhava a liberdade.

A esmagadora maioria da população mineira desconhece esses fatos. Não ficou sabendo dos “empastelamentos” do NovoJornal e se ouviu falar sobre a prisão de Carone provavelmente o liga a alguém que falsificava documentos. O desconhecimento se justifica. Em momento algum a imprensa mineira publicou uma nota, sequer, sobre a presença da polícia na sede do jornal e sua retirada do ar. Quando da prisão de Carone, ele foi apresentado como um “criminoso comum, que estaria chantageando autoridades”. Muitas das matérias sobre o assunto foram acompanhadas de fotos dele, tiradas de um ângulo que o mostravam com uma fisionomia quase assustadora, por ser uma pessoa alta, gorda, usar barba e estar muito tenso.


Direito de resposta não é praxe

Na época da prisão, Geraldo Elísio, que durante mais de três décadas atuou na imprensa mineira e tem um Prêmio Esso Regional de Jornalismo defendendo os direitos humanos, procurou colegas e dirigentes das publicações locais para solicitar direito de resposta. De uns, ouviu que “direito de resposta não era praxe”. De outros, o colega ficou de redigir o texto e solicitar aprovação da direção, que não aconteceu. No jornal Estado de Minas, onde havia trabalhado por décadas, sequer conseguiu falar com alguém da diretoria ou da redação.

Ao ser acusado de “braço direito” da suposta quadrilha, ele procurou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e, em audiência pública, encaminhou ao Ministério Público, com as assinaturas do presidente da Comissão, deputado Durval Ângelo (PT) e do vice-líder do governo naquela Casa, Duarte Bechir (PSDB), um oferecimento espontâneo da quebra dos seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. O que jamais foi feito, embora o jornalista mantenha esta oferta estendendo-a inclusive a qualquer órgão de imprensa do país que se interessar pelo assunto. Detalhe: Geraldo Elísio é aposentado pelo INSS.

Enquanto isso, os jornais mineiros continuavam publicando apenas a versão oficial e várias rádios aproveitavam a oportunidade para aumentar a audiência de seus programas policialescos. Foram sites como Conversa Afiada, CGN, Viomundo [e este Observatório] e as redes sociais os únicos a noticiarem o “empastelamento” final do NovoJornal e denunciarem a prisão de seu proprietário. Foram, sobretudo, as redes sociais que, ao longo de nove meses, cobraram a soltura de Carone e explicações sobre o arbítrio que cercou sua prisão.

Em sua página no Facebook, o jornalista Geraldo Elísio cobrou das autoridades mineiras, diariamente, explicações sobre o episódio, além de indagar as razões pelas quais não aceitavam a quebra de seus sigilos. Eu mesma fui uma das poucas pessoas que, durante este período, em minha página do Facebook, igualmente cobrei explicações das autoridades. Em alguns momentos, recebi de colegas jornalistas comentários estranhando as minhas postagens. “Você tem certeza que isto está acontecendo?”, argumentavam alguns, lembrando que não tinham visto nada daquilo na mídia.


Autoridades devem explicações

Pois é. Não deu na mídia, mas aconteceu! Claro que as autoridades mineiras devem – e muitas – explicações sobre o que fizeram. Se nada foi encontrado que incriminasse Carone e o NovoJornal, a publicação pode voltar ao ar e ele, no mínimo, deve ser indenizado. Não sei quais são os planos futuros deste empresário, pois nem sua saída da cadeia foi noticiada pela mídia. Novamente a notícia circulou apenas através das redes sociais e pude comprovar o fato por intermédio de pessoas próximas a ele. Pessoas que lembram que ele está arrasado.

Para nós, jornalistas e pesquisadores sobre jornalismo e mídia, a questão está longe de ter um ponto final. Ela demanda e continuará demandando uma profunda reflexão sobre o que aconteceu. Reflexão que envolve muito mais do que a denúncia de um ato autoritário, de arbítrio e de censura contra uma publicação e seu proprietário. Há inúmeras perguntas que precisam ser respondidas.

Se a maioria da população realmente não sabia do que aconteceu com o NovoJornal e com seu proprietário, o mesmo não pode ser dito dos jornalistas mineiros e dos veículos locais. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG) foi informado, no mesmo dia, sobre o que havia ocorrido. A então presidente da entidade, Eneida Costa, convocou uma reunião da diretoria para tratar do assunto, mas não conseguiu que fosse aprovada uma posição unânime. Vários integrantes da diretoria alegaram que por Carone ser publicitário e não jornalista, o fato não dizia respeito à entidade! Mais ainda: não faltou quem lembrasse dele apenas como “mau patrão”, pois em algumas oportunidades tinha deixado de pagar jornalistas que com ele trabalharam.

Eneida Costa acabou divulgando, em caráter pessoal, uma nota de repúdio no que diz respeito à busca e apreensão dos equipamentos do jornalista Geraldo Elísio que, aliás, até agora, não foram devolvidos, sem contar que, quando da apreensão, não foram feitos os devidos back up, bit a bit, como determina a lei e, mais, grave, não foi deixado com ele nenhum documento, o que pode dar oportunidade às autoridades policiais alegar não ter existido o problema. Mas, por outro lado, tendo o jornalista denunciado o fato à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e deposto perante um delegado e um juiz de direito da 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte, o caso ficou documentado.


Volta aos “anos de chumbo”

Ao contrário do Sindicado dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) divulgou uma dura nota de repúdio ao fato, mantendo sua tradição de não compactuar com nenhum tipo de autoritarismo e arbítrio. Já as seções mineiras da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto dos Arquitetos do Brasil e da Cúria Metropolitana primaram pelo silêncio, contrariando suas histórias.
A própria Eneida Costa, em entrevista ao blog CGN, confirmou que episódios como o do aeroporto de Cláudio, construído irregularmente e com dinheiro público nas terras de um parente do ex-governador Aécio Neves, eram de conhecimento dos jornalistas mineiros, apesar de a denúncia ter sido publicada, pela primeira vez, pela Folha de S.Paulo, e do assunto não ser mencionado por nenhuma publicação local. A revista CartaCapital, em pelo menos três oportunidades, publicou reportagens na mesma linha das colocadas no ar pelo NovoJornal, envolvendo o mensalão tucano, a Lista de Furnas e tráfico de órgãos. E não consta que seu proprietário ou que os repórteres que as assinaram tenham sofrido quaisquer constrangimentos.

Em outras palavras, não é razoável aceitar que a maioria dos jornalistas mineiros não sabia o que estava acontecendo, envolvendo as denúncias sobre desmandos e irregularidades cometidas pelos tucanos. Isto sem falar sobre a inversão de valores, como o fato de autoridades – que tinham por obrigação apurar as denúncias que estavam sendo publicadas – trataram de prender, a mando dos poderosos de plantão, quem as publicava, atingindo duramente um dos pressupostos da própria democracia: a liberdade de expressão e de imprensa. Em outras palavras, ao agirem assim, fizeram com que Minas Gerais retornasse aos “anos de chumbo”, apesar de o país viver em plena democracia.
A pergunta que fica é: por que quase todos se calaram? Por que Minas Gerais, “cujo outro nome é liberdade”, compactuou com este absurdo? Várias hipóteses podem ser levantadas. O senso crítico se forma através da divulgação feita pela mídia. Se ela silenciou sobre estes assuntos, natural que muitos não tivessem conhecimento. Outra razão: interessados em objetivos escusos obviamente atuaram para que o silêncio permanecesse. Silêncio que só foi quebrado após as eleições e, mesmo assim, sem a participação da mídia e da maior parte dos jornalistas mineiros.


Medo ancestral

E por que isto ocorreu? Por razões inconfessáveis? Por medo? Se foi por medo, qual a origem dele? Para alguns estudiosos, o medo generalizado dos mineiros é enorme e tem razões ancestrais. É possível localizar seu DNA ao tempo do Brasil colônia, quando a região era explorada pelas potências europeias de então. A população assistiu aterrorizada às mortes e perseguições envolvendo os integrantes da sedição de Vila Rica (Felipe dos Santos) e da Inconfidência Mineira (Tiradentes) e esse medo, séculos depois, ainda persistiria. Razão pela qual ao questionarem o receio que dava origem a um silêncio incômodo, ingleses ligados à exploração mineral indagavam aos nativos why (por que em inglês), originando-se daí a expressão “uai”, típica de Minas Gerais, que passou a ser repetida em lugar da resposta.

Todos estes fatores podem estar agrupados e servirem para explicar este silêncio, mas salienta-se a fase de “vacas magras” que vive a imprensa mineira, mal acostumada a se beneficiar dos cofres públicos para manter o seu ritmo de existência. Além disso, as transformações pelas quais passa esta mídia, sem a devida compreensão por parte de sua direção e de muitos funcionários, pode ter levado à rendição no sentido de manter o status quo e postos de trabalho, abrindo-se mão das finalidades precípuas da própria mídia e do jornalismo e, o mais triste, da ética e da honra.

A imprensa mineira, jornais e muitos jornalistas, com este episódio, quase se suicida, morrendo de inanição por falta de divulgar notícias e torcendo para que um dia nada aconteça para que possa publicar apenas notas sociais, pequenos anúncios e avisos fúnebres, sem imaginar que entre estes poderá estar o seu.

***
Ângela Carrato é jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, mestre e doutora em Comunicação. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade


Este é um espaço de diálogo e troca de conhecimentos que estimula a diversidade e a pluralidade de ideias e de pontos de vista. Não serão publicados comentários com xingamentos e ofensas ou que incitem a intolerância ou o crime. Os comentários devem ser pertinentes ao tema da matéria e aos debates que naturalmente surgirem. Mensagens que não atendam a essas normas serão deletadas - e os comentaristas que habitualmente as transgredirem poderão ter interrompido seu acesso a este fórum.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Mídia Ninja

Boletim Carta Maior
Mídia| 06/08/2013 | Copyleft

Mídia Ninja: "tomar posição sem vestir o manto da falsa imparcialidade da grande mídia"

O ao vivo sem pós-produção da Mídia Ninja é capaz de despertar debates sem o aval da mesma mídia que está, hoje, enxugando suas redações e precarizando seus funcionários. Em entrevista à Carta Maior, os ninjas reclamam da falta de um marco regulatório da mídia e dizem que "a ausência de regulação dificulta o exercício da liberdade de expressão da população."

 
 
A simultânea crise e consolidação dos veículos tradicionais também recebe no seu seio mídias agora reconhecidas como alternativas. Com modo de expor particular: o fato tal como ele se dá e "se dando". O "ao vivo" sem pós-produção. O debate, então, é aberto obrigatoriamente sem aval da mesma grande mídia que está, hoje, enxugando suas redações e precarizando seus funcionários.

Desponta um grupo dentre estes que são conhecidos como meios alternativos de informação: o Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação). O grupo cedeu entrevista por e-mail à Carta Maior e nos contou sobre sua configuração e posição políticas.

A iniciativa fala de dar poder aos novos protagonistas da realidade brasileira, mas também o posicionamento do mercado e Estado traz questionamentos que deverão seguir no horizonte dessa mídia que mesmo incipiente tem seu importante papel. Aprofundar e efetivar a liberdade de expressão para além do capital passa a ser hoje uma das principais pautas da expansão da democracia.

Carta Maior: Quando se iniciaram as atividades do grupo? Quantas pessoas participam do grupo e como são coordenadas suas atividades?

Mídia Ninja: O Ninja surge a partir de um acúmulo de mais de 15 anos de produção midialivrista no Brasil, de experiências que vão desde os fanzines e da blogosfera ao Fora do Eixo, rede que está em mais de 200 cidade no país e vem desenvolvendo tecnologias de comunicação e produção de conteúdo há 7 anos. Nesse processo aproximou de si outras redes, coletivos, jornalistas e midialivristas que, juntos, deram início a um projeto que ao mesmo tempo conseguiu que se fortalecesse um veiculo independente, como também catalisar uma rede de comunicação autônoma que usufrui dos frutos e ferramentas desenvolvidas durante esse histórico.

Hoje ele é uma rede descentralizada de comunicadores que buscam novas possibilidades de produção e distribuição de informação. São milhares de pessoas usando a lógica colaborativa de compartilhamento que emerge da sociedade em rede como premissa e ferramenta. A iniciativa veio à tona há meses atrás, durante a cobertura do Fórum Mundial de Mídia Livre na Tunísia. Desde então, o Ninja vem realizando coberturas por todo Brasil, apresentando pautas e abordagens omitidas na mídia tradicional.

CM: Qual, na opinião de vocês, é a função das narrativas independentes? De que maneira vocês quiseram retratar os atos e protestos dos últimos dois meses?
MN: A função das narrativas independentes é dar poder a cada vez mais gente para contar histórias a partir do ponto de vista do que estão vivendo. Mais do que uma ferramenta, é uma noção que ajuda a dimensionar a comunicação como serviço de utilidade pública.

Além de comunicadores, somos ativistas também. Quando fomos fazer a cobertura da vinda do Papa ao Brasil por exemplo, direcionamos o nosso olhar para entender quem era contra a visita de Francisco, não contra a religião, mas que protestava pela ausência de um Estado laico.

Logo, as nossas coberturas sempre explicitarão aquilo que de fato estamos vendo e vivendo. Nós também tomamos bombas em protesto, dois de nós já foram presos apenas por estar exercendo o direito à comunicação. Quando fazemos a cobertura de um protesto indígena ou quilombola, estamos de fato envolvido com aquela pauta, não se ganha legitimidade com quem está nas ruas apenas com discurso, a nossa prática de mídia precisa estar com a frequência modulada com o espaço-tempo da nossa geração.

CM: O que pensam do Marco Regulatório da Mídia? Como vocês veem o problema da mídia no Brasil?

MN: A ausência de regulação dificulta o exercício da liberdade de expressão da população, e favorece a existência de oligopólios que tanto comprometem a pluralidade nos conteúdos que são veiculados quanto a independência nas pautas.

Outro ponto: a falta de um marco regulatório não condiz com o contexto político, que apresenta o empoderamento de uma nova geração de protagonistas. As possibilidades que temos com a tecnologia disponível hoje em dia e as possibilidades de democratização da produção de conteúdo também não são contempladas.

É dever do estado também promover a diversidade de opiniões. Uma lei contribuiria necessariamente para a não criminalização dos movimentos sociais, por exemplo. Além de garantir a diversidade e o direito de manifestação e liberdade de expressão, distribuindo de forma mais equânime e democrática o recurso público ou o espectro eletromagnético.

Da forma que está hoje, a Globo recebe uma porcentagem gigantesca das verbas de publicidade do governo e uma emissora como a Jovem Pan ocupa uma faixa de espectro equivalente a de centenas de rádios comunitárias.

CM: De que maneira vocês se colocam no debate político hoje?

MN: A mídia livre é um ato político, e todo ato precede necessariamente de um debate. Tomar uma posição diante do que estamos cobrindo sem vestir o manto da falsa imparcialidade da grande mídia já é uma forma de se colocar.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Comunicação e expressão: a questão está posta em toda parte!

The National Conference for Media Reform is dedicated to changing the media and building a better democracy. The conference will be held in Denver on April 5–7, 2013.

We’ll tackle lots of big questions in Denver. Will innovation and creativity flourish online, or will corporations lock the Internet down? How will the next generation of journalists redefine what it means to report the news? Will communities have access to the technologies they need to solve the problems they face? How can we take on big companies and corrupted policymakers — and win?
Our conference brings together some of the nation’s best thinkers, activists and media makers because we believe that building a better world begins with people connecting to each other in person.



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China: jornalista conta como funciona a censura à mídia no país

No início de janeiro, a redação do "Semanário do Sul", publicado em Guangdong, China, declarou greve contra a censura prévia praticada pelas autoridades da província na edição especial de Ano Novo. A ação levou um amplo movimento de solidariedade de muitos outros veículos de imprensa chineses. Neste artigo, publicado no portal Esquerda.net, Qian Gang, jornalista que trabalhou no semanário, descreve as práticas de censura que o PCC pratica sobre a imprensa do país e nesse caso específico.

 
 



Numa palestra que dei há mais de um mês na Universidade de Hong Kong, sugeri modestamente que os dois primeiros passos para a reforma política na China poderiam ser: um tratamento mais tolerante para com os meios de comunicação e um maior respeito aos direitos da população chinesa. No debate que se seguiu, várias pessoas criticaram a falta de ambição desta perspetiva. "Não deveríamos ir mais longe?", perguntaram. No entanto, na última semana vimos como até estes "tímidos" desejos se chocaram com uma forte resistência na China. E nunca eu tinha imaginado que a primeira prova, o primeiro episódio importante do ano 2013 na China, em matéria de meios de comunicação, aconteceria no jornal em que eu trabalhei, o Semanário do Sul (Nanfang Zhoumo).

O conflito, agora denominado "incidente da saudação de Ano Novo do Semanário do Sul", começou com a brutal intromissão das autoridades de propaganda da província de Guangdong nos preparativos da edição de Ano Novo do jornal. Na reação que provocou, foi criticada a censura. A quem deseje compreender melhor o incidente do Semanário do Sul, recomendo em particular dois artigos. O primeiro, "Denúncia da exclusão dos veículos de imprensa pelo Partido", é obra do ex-redator-chefe do Diário Metropolitano do Sul, Cheng Yizhong. O segundo, "Quem reviu a saudação de Ano Novo do Semanário do Sul", foi escrito por Zeng Li. Este trabalhava, na realidade, no Semanário do Sul como revisor de conteúdos, e no meio da crise publicou um artigo num blogue no qual desmentiu rotundamente os rumores de que os chefes de propaganda provinciais não tinham sido responsáveis pelo conflito no Semanário do Sul. Zeng apresentou provas concludentes da existência da censura.

Para ser preciso, a China não tem (ou normalmente não tem tido) o tipo de censura sobre o material impresso que foi prática comum no tempo do Kuomintang. Com Mao Zedong, a mensagem da imprensa estava totalmente unificada. Na era de Deng Xiaoping, falou-se de reforma, e um vice-ministro da propaganda chegou a dizer então que "o que os jornais publicam ou não publicam é algo que deveria ser decidido pelos próprios jornais". Depois do massacre de 4 de junho de 1989 na praça Tiananmen, no entanto, os meios de comunicação voltaram a estar submetidos a um estrito controle. Durante o mandato de Jiang Zemin, os controles diários dos média eram exercidos sobretudo na forma de "ordens e proibições prévias" e "castigos a posteriori".

Proibição e castigo
Quando trabalhei como subchefe de redação no Semanário do Sul, de 1998 a 2001, vi numerosas "ordens e proibições" e vários exemplos de "castigo". As primeiras delimitam e restringem basicamente o trabalho antes da publicação; estabelecem o que se pode e não se pode informar e como deve fazê-lo. Talvez também indiquem o que tem de ser informado. O castigo costuma ser imposto pelo "grupo de comentário de notícias" do Departamento de Propaganda, que rastreia o conteúdo da mídia, chamando à ordem quando se descobrem "problemas" retrospectivamente. No tempo em que estive no Semanário do Sul, recebíamos regularmente uns dez ou mais "comentários de notícias" por ano do Departamento Central de Propaganda. Cada vez que isso ocorria, os diretores superiores - os da nossa matriz, que edita o Diário do Sul - sofriam palpitações de ansiedade. Quando chegava um desses comentários, pressionavam-nos a discutir a questão. Nos reuníamos e decidíamos se tínhamos que fazer autocrítica ou se era preciso adotar outra medida disciplinar.

O meu destino, isto é, a minha demissão como um dos principais redatores do jornal foi traçada quando acumulei um bom número desses "comentários de notícias". Um artigo polêmico foi a gota que fez transbordar o copo, e assim chegou a minha vez de sair para não voltar. No passado, o Semanário do Sul gozava da proteção da direção do partido da província de Guangdong, mas durante os anos em que trabalhei na redação, a situação foi piorando progressivamente.

A censura prévia sai da jaula
Como assinalou Cheng Yizhong, em finais do mandato de Jiang Zemin, as ordens e proibições do Departamento de Propaganda chegavam clandestinamente: deixaram de ser emitidas por escrito. A partir de 2005, estreitaram-se os controles. Depois da criação, no começo da década de 1990, do Grupo de Comentários de Notícias, o Departamento Central de Propaganda estabeleceu um "sistema de revisão de conteúdos", incorporando os seus "revisores" (shenduyuan) nas redações dos veículos considerados estratégicos. Estes revisores praticariam a censura prévia do conteúdo. Ao mesmo tempo, uma série de funcionários de propaganda fiéis ao Partido foram nomeados redatores-chefes com a missão de tomar precauções estritas.

Tal como as coisas evoluíram, numa situação em que o mínimo deslize se confundia com um ato hostil, a atitude dos veículos considerados mais críticos pelos funcionários de propaganda era de maior temor. O Departamento Central de Propaganda tornou-se muito mais intervencionista, desenvolvendo o seu poder perante publicações como o Semanário do Sul. Zeng Li, o revisor destinado ao Semanário do Sul, revelou que desde maio de 2012, quando Tuo Zhen foi nomeado responsável pela Propaganda de Guangdong, o controle e a supervisão da imprensa da província atingiram proporções nunca vistas anteriormente. O tema de cada número do semanário devia ser comunicado ao departamento provincial de propaganda, e os editores não podiam trabalhar nele até que fosse aprovado.

Todas as reportagens importantes e os editoriais tinham que ser submetidos à revisão por parte do Departamento de Propaganda antes de poderem serem publicados. Inclusive houve um caso em que a notificação da exclusão de um artigo não chegou até ao jornal ter entrado na impressora, de maneira que foi preciso destruir centenas de milhares de exemplares impressos (outro companheiro do Semanário do Sul diz que em 2012 houve quatro casos de artigos que tinham sido censurados depois da edição ter entrado nas máquinas).

Os cinco cortes
De fato, o processo de edição do número especial de Ano Novo de 2013 do Semanário do Sul é um exemplo vivo da censura de notícias na China atual. No meio da tormenta, o Comitê de Ética Profissional do semanário publicou uma versão do processo interno em que apresenta uma imagem fiel da brutal intromissão da censura de notícias. Ao ter colaborado na edição de Ano Novo, compreendo como ela é importante para a imagem de marca do Semanário do Sul. Os leitores e leitoras esperam a edição com interesse, e o processo de elaboração é laborioso e preciso, especialmente quando tudo o que se faz é analisado à lupa.

Os preparativos para esta edição começaram no início de dezembro. O tema acordado no início era "atravessar o rio", em alusão, certamente, à famosa expressão de Deng Xiaoping sobre o processo de reforma como um ato de "atravessar o rio passando por cima das pedras". A redação comunicou o tema proposto ao redator-chefe do jornal, Huang Can, que respondeu em meados do mês assinalando que a edição se centraria na ideia "O sonho da China". Uma decisão para, acima de tudo, apaziguar os dirigentes do Departamento de Propaganda. A 23 de dezembro, a redação entregou a Huang Can um projeto escrito do número especial, e no dia seguinte o redator-chefe apresentou o plano à autoridade provincial de propaganda. Convém destacar que essa foi a primeira vez na história do jornal que a edição especial de Ano Novo se submeteu à censura prévia. Efetivamente, esta censura prévia do Semanário do Sul comportou o que denominamos os "cinco cortes", a saber:

Primeiro corte: Muitos dos temas propostos foram recusados. A 26 de dezembro chegou a primeira indicação do departamento provincial de propaganda, referente à seção "gente". Tinha que se eliminar muitos perfis que se tinham planejado sob certas pessoas.

Segundo corte: A Saudação de Ano Novo da edição especial foi entregue duas vezes às autoridades de propaganda para revisão. O título original da saudação do Semanário do Sul era "O sonho da China, o sonho do constitucionalismo". Huang Can não estava contente com o editorial, de modo que introduziu mudanças e depois remeteu-o às autoridades. O ato seguinte foi a ordem dada ao jornal para que elaborasse outro projeto, que voltou a ser submetido a revisão. O projeto apresentado a 31 de dezembro ficou reduzido a mil palavras, e o título era "Estamos mais perto que nunca do nosso sonho".

Terceiro corte: Praticaram-se importantes cortes no conteúdo das páginas interiores. Na noite de 31 de dezembro, quando já se terminava a produção do número especial, Huang Can transmitiu novas indicações do departamento de propaganda para os editores do jornal. Foi eliminada uma página inteira. Mais tarde chegou outra ordem de suprimir mais dois artigos. Os editores não tiveram outro remédio que trabalhar mais duas horas para deixar pronta a edição.

Quarto corte: Houve uma tentativa de substituir toda a manchete do número especial. Quando os editores estavam a maquetar a página, Huang Can tirou uma foto da manchete com o seu celular e enviou-a ao departamento de propaganda. Nas primeiras horas de 1º de janeiro de 2013, Huang Can informou de repente aos editores sobre a última "opinião" da autoridade de propaganda. Esta considerava que a ilustração da manchete sobre a história de "Yu, o Grande, domando as águas" era demasiado escura e podia ser mal interpretada, disseram. Tinha que ser substituída pela fotografia de um porta-aviões. Além disso, na manchete não deviam figurar as palavras "O sonho da China, um sonho vislumbrado através da adversidade". Ao conhecer estas instruções, o estado de ânimo dos editores afundou-se. A hora limite para aprovar as provas de imprensa tinha passado há muito e era praticamente impossível introduzir mudanças substanciais. Após algum debate, acordaram em manter a ilustração e mudar o título para "Os sonhos da pátria".

Quinto corte: Este foi o último corte e o mais grave, e deu-se após a conclusão todo o processo de produção. Cerca de três horas da madrugada do dia 1º de janeiro, quando o trabalho tinha chegado ao fim, os editores responsáveis pelo número especial deram a aprovação às páginas. O subchefe de redação foi o último a assinar antes do envio das provas para impressão. Os editores desligaram então os seus celulares e foram para casa. Ao amanhecer, o chefe e o subchefe de redação foram convocados pelo departamento de propaganda, que lhes ordenou que introduzissem novas mudanças no jornal. O problema estava na manchete e na saudação anual. A autoridade provincial de propaganda disse que tinha que se incluir umas observações introdutórias na manchete. Estas palavras foram atribuídas ao chefe de propaganda de Guangdong, Tuo Zhen, quando o incidente chegou às redes sociais chinesas.

Partindo do que sabemos agora, tudo indica que as observações introdutórias foram ditadas de viva-voz pelo vice-ministro de Propaganda, Yang Jian, e transcritas pelo subchefe de redação antes de voltar a enviá-las por SMS para aprovação definitiva. A versão final destas observações foi reenviada então pela autoridade de propaganda para inclusão na publicação. Ainda não está claro quem exatamente deu o último toque ao texto, que continha alguns erros de vulto, como por exemplo ao referir o episódio histórico de Yu o Grande domando as águas e dizer que ocorreu há 2.000 anos. Na realidade, Yu o Grande viveu entre 2200 e 2100 a.C., ou seja, há mais de 4.000 anos.

Ainda insatisfeita, a autoridade também voltou a algumas passagens da saudação de Ano Novo (que, recordemos, já tinha sido censurada três vezes). Era preciso suprimir várias linhas e acrescentar cerca de 100 palavras novas. Uma vítima dessa versão final foi a última referência à palavra "constitucionalismo", a ideia chave do projeto original. Os novos itens da saudação incluíam frases tomadas diretamente do relatório político ao recente XVIII Congresso Nacional do Partido: "Confiamos na nossa teoria, confiamos no nosso rumo e confiamos no nosso sistema". Na noite de 1º de janeiro, a autoridade provincial de propaganda ordenou que se mudasse o título da edição especial pela expressão "Em busca de sonhos". Já que a equipa de edição estava fora de serviço, foram o chefe e o subchefe de redação quem tiveram que ir à gráfica para executar as últimas instruções.

Peço aos meus companheiros jornalistas chineses que me digam, após ler este relato, se alguma vez conheceram um processo de edição como este. Conheço perfeitamente os mecanismos de controle dos meios de comunicação na China, mas este caso parece-me incrível. Há algo que esta censura não toque? Não: os esboços de conteúdo, os temas gerais e concretos, os rascunhos, as fotos, tudo, absolutamente tudo tem de estar ao serviço dos objetivos do Departamento de Propaganda. E os jornalistas e editores do jornal são pouco mais que serventes que estão ali para receber ordens. O pessoal do Semanário do Sul teve de trabalhar até ao esgotamento, dia após dia, não para criar o melhor número possível do jornal, mas para satisfazer os obscuros caprichos dos funcionários do Departamento de Propaganda. Estes controles são como um pesadelo que continua dia após dia, mês após mês.

O Semanário do Sul é um produto comercial, ainda que, antes de tudo, seja um produto de tipo especial. É editado por uma empresa que opera comercialmente e cujo proprietário, em última instância, é o Partido Comunista da China. No entanto, a China conta já hoje com um "sistema empresarial moderno". Olhemos para as empresas estatais de hoje: podem os dirigentes do Partido manejar a seu desejo os diretores dessas empresas? Podem meter os narizes e mexer no seu funcionamento? Certamente que não. Mas estes sintomas crônicos da economia planificada continuam a estar muito vivos no sistema atual de comunicação e propaganda.

O primeiro "não"
O incidente do Semanário do Sul é importante, antes de tudo, porque dá a conhecer publicamente o que tem ocorrido nos bastidores. Ao longo de vários anos, o controle da mídia foi tornando muito mais rigoroso. Os métodos da censura prévia tem sido empregados descaradamente nos bastidores. Nos últimos anos, os leitores assíduos do semanário terão notado que este se tornou menos contundente e menos crítico, que não tratou muitos acontecimentos importantes. A proliferação do jargão oficial e do palavreado oco não terão passado despercebidos. Li Haipeng, antigo jornalista do Semanário do Sul, escreveu recentemente na rede social chinesa: "Comecei a trabalhar no Semanário do Sul em 2002 e fui embora em 2009. Vi com os meus próprios olhos que não houve nem um dia em que o jornal não tivesse que lutar sob um controle férreo. Era como uma árvore que perdia um ramo num dia e outro no dia seguinte..."

As leitoras e leitores do Semanário do Sul não podiam saber quanta verdade tinha ficado sepultada sob o peso da censura prévia, quantas faíscas tinham sido apagadas. Os jornalistas sofreram durante muito tempo, mas desta vez já não podiam aguentar. As suas reivindicações eram concretas: queriam que se anulasse a censura prévia e que os editores voltassem a ter autonomia. Talvez agora, após esta batalha contra a censura, os responsáveis pelo Departamento de Propaganda sejam mais cuidadosos. Mas o caminho para a liberdade de expressão, tal como está consagrada no artigo 35º da Constituição Chinesa, será longo. As ordens e proibições continuarão, e o castigo continuará à espera de quem pise fora da linha.

Mas podemos dizer que as coisas começaram a se mexer. Pela primeira vez, a palavra "Não" soou no sistema de meios de comunicação da China. O jogo de interesses contrapostos que temos visto nesta semana não tem paralelo no passado. A minha esperança é que os dirigentes da China tenham a sabedoria de distinguir entre os que desejam e apoiam uma nova abordagem do governo e aqueles cujos atos vergonhosos não geram mais do que raiva e desconfiança. Chegou o momento dos meios de comunicação gozarem de mais tolerância. Chegou o momento de haver mais respeito aos direitos das pessoas. Em matéria de reforma política, já não podemos esperar mais tempo.

*Artigo de Qian Gang, publicado no China Media Project em 11 de janeiro de 2013, traduzido para espanhol por Viento Sur. Tradução de Carlos Santos para esquerda.netwww.esquerda.net

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Adeus, ano velho. Feliz ano novo?

Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico? Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos? O artigo é de Venício Lima.

Venício Lima (*) 
Observatório da Imprensa

Não há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:

1. Os atores e interesses que interferem, de facto, na disputa pela formulação das políticas públicas são poucos: governo, empresários de mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de equipamento eletroeletrônico) e parlamentares.

Há que se mencionar ainda o Judiciário que, por meio de sua mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de maneira a legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de defesa e proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009).

Aguarda decisão, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na qual os empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau, pedem a impugnação do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale dizer, questionam a política pública definida pelas portarias 1220/2006 e 1000/2007 do Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão.

Não me esqueci da chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais, partidos, sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro tratá-la como um não-ator.

2. Alguns atores ocupam posições superpostas, por exemplo: ministro das Comunicações e/ou parlamentar (poder concedente) é, simultaneamente, empresário de mídia (concessionário de radiodifusão); e,

3. As principais regras e normas legais são mantidas ou se reproduzem, ao longo do tempo, mesmo quando há – como tem havido – um processo de radicais mudanças tecnológicas.

Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos principais, pelo menos desde a articulação que levou à derrubada dos 52 vetos do então presidente João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que deu origem à criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), 50 anos atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço de radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam: primeiro na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na Constituição de 1988 e, mais recentemente, no Decreto 7670/2012.

O resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da politica pública de comunicações.

Creio que as políticas de radiodifusão no Brasil constituem um exemplo daquilo que, em Ciência Política, os institucionalistas históricos chamam de “dependência de trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez iniciada uma determinada política, os custos para revertê-la são aumentados. (...) As barreiras de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão fácil da escolha inicial” (Levi).

O eventual leitor(a) poderá constatar esta “dependência de trajetória” nos balanços que tenho publicado neste Observatório desde 2004 (ver “Adeus às ilusões“, “Balanço de muitos recuos e alguns avanços“, “Notas de um balanço pouco animador“, “Balanço provisório de um semestre inusitado“, “Mais recuos do que avanços“ “Algumas novidades e poucos progressos“, “O que se pode esperar para 2009? (1)“, “O que se pode esperar para 2009? (final)“, “Por que a mídia não se autoavalia?“ e “Os avanços de 2011“).

2011 versus 2012
No fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando fatos que poderiam ser considerados como avanços no sentido da democratização da comunicação (ver “Os avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:

(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso Nacional;

(b)o esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em prol da criação dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados da Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da Bahia foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio Grande do Sul ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,

(c)a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido criada em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do esforço de vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da Casa.

Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns acontecimentos protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia, no Brasil e no exterior.

Inglaterra e Argentina
O primeiro registro há de ser para Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry) cujo relatório final foi apresentado em novembro. Nele está uma descrição/diagnóstico de práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não ocorrem apenas na Inglaterra. Há também um conjunto de propostas de ações institucionais para evitar o desvirtuamento completo da liberdade da imprensa, inclusive a criação de uma instância reguladora autônoma, tanto em relação ao governo quanto aos empresários de mídia. Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson deveria ser lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “Um documento com lugar na história“, “Areopagítica, 368 anos depois“ e “O vespeiro do controle externo“).

O segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional – onde tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei. Mesmo tendo essa origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por parte de um dos principais oligopólios de mídia da América Latina e de seus aliados, inclusive no Brasil, uma resistência feroz, como se constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à liberdade de expressão. Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para liberdade de expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão plural e diversa.

Discurso único
No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da presunção de inocência e/ou a ausência de provas.

A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.

Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões; jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde e Newsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas (exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outrubro, em São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a democracia.

Inércia governamental
O ano de 2012 ficará também marcado pela inquietante inércia do governo federal em relação ao setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do Ministério das Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no Decreto 5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente nada.

Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao governo federal em dezembro de 2009?

Onde está o projeto de marco regulatório elaborado no fim do governo Lula e encaminhado pelo ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em janeiro de 2011?

Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de distribuição de recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) vem sufocando financeiramente a chamada mídia alternativa e consolidando ainda mais a concentração de grupos oligopolísticos. A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil).

Se fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade e a pluralidade – vale dizer, mais liberdade de expressão.

E o Parlamento?

Além da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há de se mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação Social (CCS), depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa diretora do Congresso Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é historicamente vinculada a concessões de radiodifusão, ignorou a Frentecom e articulou a nova composição do CCS fazendo que nele prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e religiosos.

Os não-atores

Por fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha nacional “Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”(em abril) e seus vários eventos regionais e locais, incluindo a vinda ao Brasil de Frank La Rue, o relator especial pela liberdade de expressão da ONU (em dezembro). Apesar do boicote sistemático da grande mídia, a atenção que a campanha tem recebido na mídia alternativa constrói um embrionário espaço público onde circulam informações que não estão disponíveis nas fontes dominantes.

Registre-se ainda que partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento da Ação Penal nº 470 – finalmente parecem se dar conta da importância fundamental das comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia, não se tem até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.

Não será fácil

O mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego nunca foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social fez as classes A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três anos, outras oito milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O Corinthians, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, é campeão mundial de futebol. O nível de satisfação do brasileiro nunca esteve tão elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular, IBGE e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República).

A novela Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis meses com audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros 19 meses do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados, de acordo com a Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação Penal nº 470; se apresenta como defensora da ética pública e das liberdades – sobretudo da liberdade de expressão –; e prossegue na sua obsessão seletiva de mobilizar a “opinião pública” contra determinados políticos e partidos.

As médias de aprovação tanto do governo como da presidente Dilma Rousseff batem recordes após recordes: 62% e 78%, respectivamente, de acordo com a última pesquisa CNI/Ibope (dezembro).

Diante desses fatos, sejamos razoáveis.

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico?

Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos?

Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.

(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Liberdade de expressão, liberdade de opinião, liberdade de imprensa... cultura livre?


Política| 19/11/2012 | Copyleft

Relator da ONU vem ao Brasil debater liberdade de opinião e de expressão

O relator especial da ONU para a promoção da liberdade de opinião e expressão participará de eventos da campanha “Para expressar a liberdade” entre os dias 11 e 13 de dezembro, em Brasília e São Paulo. Frank de la Rue virá ao Brasil por convite do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e, além de eventos com a sociedade civil, fará também encontros com membros do Executivo e do Legislativo.

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O relator especial da ONU para a promoção da liberdade de opinião e expressão participará de eventos da campanha “Para expressar a liberdade” entre os dias 11 e 13 de dezembro, em Brasília e São Paulo. Frank de la Rue virá ao Brasil por convite do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e, além de eventos com a sociedade civil, fará também encontros com membros do Executivo e do Legislativo.

De la Rue acompanha de perto a agenda de mudanças regulatórias na América Latina, e tem sido defensor de iniciativas de promoção do pluralismo e diversidade nos meios de comunicação. Recentemente, apontou a lei de serviços de comunicação audiovisual da Argentina (conhecida como ‘ley de medios’) como um modelo para todo o continente e para outras regiões do mundo. Em seu relatório de 2011, destacou questões específicas da liberdade de expressão na Internet.

A atividade principal com a sociedade civil será no dia 13 de dezembro, à noite, em São Paulo, em local a definir, e terá como tema “Liberdade de expressão e concentração de meios na América Latina”. No dia 14, a campanha Para Expressar a Liberdade fará uma plenária nacional em São Paulo, em local ainda a definir, para discutir as próximas ações na defesa de um novo marco regulatório para as comunicações brasileiras.

As entidades que participam da campanha (veja lista completa em www.paraexpressaraliberdade.org.br) convidam todos os interessados a estarem em São Paulo nos dias 13 e 14 de dezembro para as atividades com Frank de la Rue e para a plenária nacional. Oportunamente, será divulgada a agenda completa das atividades com De la Rue em São Paulo e Brasília.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A circulação, a liberdade de expressão... um caso a ser estudado

Saiu na FOLHA DE S. PAULO:


24 de outubro de 2012

‘JN’ dedica quase 20 minutos a balanço do julgamento

DE SÃO PAULO

O “Jornal Nacional” da TV Globo, programa jornalístico mais assistido da televisão brasileira, dedicou ontem 18 dos 32 minutos de sua edição a um balanço do julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal.

O telejornal exibiu oito reportagens sobre o tema, contemplando desde o que chamou de “frases memoráveis” proferidas no plenário do STF às rusgas entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandovsky, respectivamente relator e revisor do processo na corte.

O segmento mais “quente” do telejornal, dedicado às notícias do dia (debate do tamanho das penas e a decisão de absolver réus de acusações em que houve empate no colegiado) consumiu 3min12s.

O restante foi ocupado pelo resumo das 40 sessões de julgamento.

—–

Há, ainda, um agravante. O assunto foi ao ar no JN imediatamente após o fim do horário eleitoral, que, em São Paulo, foi encerrado com o programa de Fernando Haddad. E tem sido assim desde que começou o segundo turno – o noticiário do mensalão é apresentado pelo telejornal sempre “colado” ao fim do horário eleitoral.

O objetivo de interferir no pleito do próximo domingo em prejuízo do Partido dos Trabalhadores e dos outros partidos aliados que figuram na Ação Penal 470, vem sendo escancarado. Ontem, porém, essa prática ilegal chegou ao ápice.

A ilegalidade é absolutamente clara. Para comprovar, basta a simples leitura da Lei 9.504/97, a chamada Lei Geral das Eleições, que, em seu artigo 45, caput, reza que:

Caput – A partir de 1o de julho, ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, conforme incisos:

III – Veicular propaganda política, ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus orgãos ou representantes;

IV – Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação;

V – É vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro programa com alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente (…)

Apesar de a Globo poder alegar que estava apenas reproduzindo um fato do Poder Judiciário, a intenção de usar as reiteradas menções dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao Partido dos Trabalhadores é escancarada ao ponto de ter virado notícia de um jornal absolutamente insuspeito de ser partidário desse partido.

Conforme reza a lei, é vedada prática da qual o JN abusou, ou seja, fazer “Alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente”. Ora, de dissimulado não houve nada. O PT foi citado reiteradamente pela edição do JN de forma insistente e por espaço de tempo jamais visto em uma só reportagem.

A Lei Eleitoral recebe interpretação pela Justiça Eleitoral, ou seja, ela julga exatamente as nuances das propagandas, dos programas em veículos eletrônicos e até mesmo na imprensa escrita e na internet.

O uso de uma concessão pública de televisão com fins político-eleitorais também viola a Lei das Concessões, cujo guardião é o Ministério das Comunicações.

Diante desses fatos, comunico que a ONG Movimento dos Sem Mídia, da qual este blogueiro é presidente, apresentará, nos próximos dias, representações à Procuradoria Geral Eleitoral e ao Ministério das Comunicações contra a TV Globo por violação da Lei Eleitoral, com tentativa de influir em eleições de todo país.

Detalhe: será pedido ao Minicom a cassação da concessão da Rede Globo por cometer crime eleitoral

Por certo não haverá tempo suficiente de fazer a representação ser apreciada por essas instâncias antes do pleito, mas isso não elidirá a denunciação desse claro abuso de poder econômico com vistas influir no processo eleitoral. Peço, portanto, o apoio de tantos quantos entenderem que tal crime não pode ficar impune.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Liberdade e regulação: quem reivindica o quê?

Internacional| 15/10/2012 | Copyleft

SIP elege Argentina e Equador como alvos principais

Sessão da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação dedicou maior tempo para apresentar ações dos governos Kirchner e Correa que, na visão da organização, representam "amplas atentados à liberdade de imprensa". De leis aprovadas ao uso de cadeias nacionais na TV e distribuição da verba publicitária, tudo foi relacionado à censura. No dia 7 de dezembro, vence o prazo do Grupo Clarín para adequar seu patrimônio à Lei de Medios da Argentina.

 
 
 
São Paulo - No próximo dia 7 de dezembro, expira o prazo definido pela Corte Suprema de Justiça da Argentina para a medida cautelar, obtida pelo Grupo Clarín, que impede a aplicação de dois artigos da Lei de Medios às atividades econômicas do grupo. Um deles, o art. 161, determina que os grupos que ultrapassem os limites de outorgas definidos pela nova lei devem iniciar um processo de adequação de suas licenças. Pela Lei de Meios, nenhum grupo de comunicação no país pode ter mais do que 24 outorgas de TV a cabo e 10 de rádio e televisão aberta. O Grupo Clarín, além do jornal impresso, tem 4 canais de televisão, 1 rádio FM e 9 rádios AM, além de dez vezes mais licenças de cabo do que o número autorizado pela Lei de Medios.

Diante da proximidade da data e reconhecendo a influência que a iniciativa de Cristina Kirchner tem tido nos países vizinhos em prol da democratização dos meios de comunicação de massa, a 68ª Assembléia Geral da SIP, que acontece até esta terça-feira (16) em São Paulo, centrou sua crítica no que definiu por "hostilidade contra a imprensa" por parte do governo argentino. A sessão da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da SIP foi aberta na manhã desde domingo (14) pela apresentação, de mais de 40 minutos, do representante da SIP no país, Daniel Dessein.

Dessein fez a leitura completa do relatório (disponível AQUI), que afirma que "várias resoluções do governo, manobras judiciais, declarações ofensivas e ameaçadoras de funcionários públicos, medidas contra a mídia e ameaças e agressões físicas a jornalistas delineiam um cenário sombrio para o exercício do jornalismo e o direito de todos os cidadãos se expressarem livremente" - considerando que a liberdade de expressão dos cidadãos se dá através da grande imprensa argentina.

Sobrio também foi o vídeo elaborado pelo Clarín, e apresentado na sequência da leitura do relatório, mostrando o "crescimento da censura" no país. Numa ágil edição de imagens e trilha sonora de suspense, o vídeo elenca as ações da Presidenta Kirchner contra a imprensa e afirma que seu objetivo é "consagrar o medo, a autocensura e o silêncio". Afirma que "organismos do governo são escritórios para reprimir cidadãos que querem se expressar".

Entre as ações tachadas como violadoras da liberdade de imprensa estão a amplificação da rede de comunicação oficial, "mecanismos discriminatórios" de distribuição da publicidade oficial, "abuso ilegítimo" de cadeias nacionais na televisão, cobertura parcial de eventos por parte de algumas emissoras de TV, que estariam vinculadas ao governo federal, e "aplicação seletiva" da Lei de Meios. Segundo a SIP, há vários meios de comunicação - o relatório não citou quais - que não se ajustam ao previsto na lei, aprovada há três anos, e que não foram "intimidados" a cumprir o que ela estipula.

O final do vídeo traz um questionamento sobre a versão oficial do que acontecerá no dia 7 de dezembro. Segundo os constitucionalistas ouvidos pelo Clarín, nada. Se até lá a Corte Suprema de Justiça não se decidir sobre a constitucionalidade dos artigos questionados pelo grupo e não prorrogar a validade da medida cautelar, apenas começará a contar o prazo para que o Clarín se adeque à nova lei. Para o grupo, isso não é nada. Para o governo Kirchner, será uma vitória da lei criada para, entre outros pontos, combater a concentração da propriedade da mídia na Argentina.

Discordando dessa leitura do governo e afirmando que nada acontecerá no dia 7, o vídeo termina com três fortes perguntas acusatórias: "O que se busca então com o relato oficial?", "Preparar o terreno para outra coisa?", "Terminar com o Estado de Direito na Argentina?". Para quem não conhece a realidade no país, parece assistir a um documentário pré-ditadura no território vizinho.

Após a exibição do vídeo, foi sugerido, pelos representantes de outros jornais argentinos presentes, que a SIP faça uma missão internacional à Argentina no dia 7 de Dezembro, para acompanhar os acontecimentos políticos no país. O diretor do jornal Los Andes, de Mendoza, destacou a importância de uma "ação enérgica da SIP", "porque a sociedade argentina está amordaçada pela autocensura e ficou sem referências institucionais".

Um empresário uruguaio comparou o caso Clarín com o que aconteceu com a RCTV, na Venezuela. Ao que o dono de um jornal de Caracas acrescentou: "É uma epidemia. A estratégia da Venezuela está sendo imitada por outros países".

Imprensa equatoriana: sem consenso sobre o caso Assange
O segundo destaque dos relatórios foi o do Equador. Num extenso informe de 9 páginas - o maior da Comissão (disponível AQUI) -, a SIP denunciou decisões judiciais, iniciativas de projetos de lei e medidas do Presidente Rafael Correa que atacariam a liberdade de imprensa. Segundo o relatório, os três poderes do país agem contra os meios de comunicação.

"O regime continua usando recursos públicos para atacar e "desmentir" sistematicamente as publicações da mídia, jornalistas e pessoas com opiniões distintas da sua. O Presidente Rafael Correa promove a ideia de que a mídia privada deve ser rejeitada porque busca o enriquecimento dos seus donos e, por isso, mantém a proibição aos seus ministros de dar entrevistas ao que ele chama de "mídia mercantilista" (Ecuavisa e Teleamazonas, além dos diários El Universo, El Comercio, Hoy e La Hora).

Essa decisão conta com respaldo legal, já que a Justiça indefiriu mandato de segurança que pretendia classificá-la como inconstitucional", diz um trecho do documento. "As instituições estão sendo atacadas e controladas pelos políticos e gangues de delinquentes, e quem for perseguido fica praticamente indefeso", analisa outro.

A SIP também afirma que o "fechamento" de canais de rádio e televisão regionais - que segundo as autoridades do Equador não cumpriam as normas técnicas e econômicas vigentes - se deu por retaliação política. O inquérito da Procuradoria Geral sobre o articulista Miguel Macias Carmigniani, do jornal El Comercio, também foi considerado uma violação à liberdade de imprensa. A comunidade LGBT do Equador questionou seu artigo "Famílias alternativas?", considerando que o conteúdo publicado incita o ódio, o que é proibido pela Constituição.

A SIP, no entanto, não se posicionou sobre o asilo político dado pelo governo de Correa ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange, na embaixada do país em Londres. O caso é apenas citado no documento com caráter informativo. Questionado pela CARTA MAIOR sobre como a imprensa equatoriana vê o asilo político a uma das principais vítimas de violação da liberdade de expressão nos dias de hoje, o vice-presidente para o Equador na SIP afirmou que "não há posição única por parte dos veículos". "Alguns consideram que o asilo é legítimo, outros não. Cada meio teve uma opinião", descreveu.

Ao longo do dia foram apresentados os informes da maior parte dos países membros. Além de Argentina e Equador, a presidência da Comissão, sem coincidências, também considerou "extremamente preocupantes" os casos da Venezuela, Bolívia e Cuba.

À tarde, quando se perguntavam por que a sociedade latino-americana "não reage" e "não está preocupada, como a SIP está, com a defesa da liberdade de imprensa no continente", um jornalista do Paraguai deu uma sugestão que merece consideração: "A SIP deveria fazer uma pesquisa sobre o que pensa a população e se o que a sociedade entende como como liberdade de expressão é o mesmo que nós, da SIP, entendemos".

domingo, 23 de setembro de 2012

Discursivizações sobre a ditadura militar no Brasil: quem diz o quê, como, onde?

Direitos Humanos| 20/09/2012 | Copyleft

“Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada”, diz Hildegard Angel

Em entrevista, Hildegard Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart, conta um pouco de sua luta para preservar e honrar a memória de sua família. Além disso, fala sobre a Lei da Anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira. "Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país".

“Quem é essa mulher?” é o verso ecoante da música de Chico Buarque feita em homenagem à estilista Zuzu Angel, que morreu num mal explicado acidente de carro depois de ela ter enfrentado com unhas, dentes e desfiles de moda de protesto o regime militar, almejando saber a todo custo alguma informação sobre o paradeiro de seu filho, o ativista político Stuart Angel Jones, torturado e assassinado à época dos “anos de chumbo” brasileiros. A música se tornou símbolo da luta das mães que nunca souberam o que realmente aconteceu com seus filhos nem puderam enterrá-los dignamente. É o símbolo também de uma época de muito sofrimento cuja memória Hildegard, filha de Zuzu e irmã de Stuart, faz questão de manter viva para que essa história não volte a se repetir.

Ela, que começou a sua carreira como atriz nos anos 1970, posteriormente se tornou jornalista e conquistou o posto de uma das maiores colunistas sociais do país. Hoje ela se dedica a um blog, cujos temas predominantes são moda e comportamento, e pretende inaugurar em breve um museu com vários documentos de sua família, guardados ao longo de anos.

Também fundadora do Instituto Zuzu Angel, Hildegard nunca foi militante como seu irmão. “As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso”, explica quando questionada se nunca pensou em juntar-se ao movimento de oposição ao governo. “O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus”, complementa, emocionando-se ao relembrar a história de combate de sua família.

Hilde, como é chamada pelos mais próximos, tira de sua trajetória posicionamentos precisos sobre a Lei da anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira, fazendo jus à frase com que se descreve em seu Twitter: “Vocês me conhecem. Sou aquela que pode não ter a melhor opinião, pode não ter a sua opinião, mas tem opinião!”. A partir de suas falas, que desvelam alguns episódios importantes desse período ainda nebuloso da história do nosso país, é possível conhecer um pouco mais quem é essa mulher chamada Hildegard Angel.

Antes de se dedicar ao jornalismo, a senhora teve uma carreira como atriz. Numa outra entrevista, a senhora declarou que queria ser a Joana D’Arc dos palcos, enquanto que o seu irmão queria ser a Joana D’Arc da vida real. Como foi esse seu início profissional? Ser a Joana D’Arc dos palcos também implicava alguns riscos, alguma exposição?

E ele foi, né? Ele foi a Joana D’Arc da vida real (risos).

Mas acabou que nos anos 1970, com o teatro engajado, houve uma exposição, sim. Eu, por exemplo, fiz algum teatro engajado, com o Grupo Oficina. O último espetáculo deles, em 1973, chamado Gracias, Señor, dirigido pelo Zé Celso Marinez Corrêa, foi uma peça engajada importante da qual eu participei. Ela era assistida toda noite pelo DOPS. Era um espetáculo longo, muito improvisado também. Havia riscos naquela época, que era época da censura, né? Houve também um risco também para as pessoas de teatro que tinham uma militância. Eu não fui uma militante, né? Eu fiz a militância por acaso em alguns espetáculos como esse.

A senhora nunca pensou em se juntar ao movimento de oposição ao governo?

Eu não tinha a estrutura ideológica do meu irmão. Eu sempre respeitei muito o embasamento ideológico e intelectual do meu irmão. Seria muito fácil para mim e até muito honroso pegar, empunhar e desfraldar a bandeira da esquerda brasileira. E seria também muito proveitoso para mim naquela época se eu tivesse tomado essa iniciativa. Mas eu sempre encarei de uma maneira muito séria e com muita responsabilidade e respeito a luta do meu irmão. Eu ficava muito envergonhada de ver pessoas vestirem de uma maneira até festiva o uniforme, a roupa, as vestimentas da militância sem terem conteúdo ideológico, apenas pelas vantagens que poderiam advir dessa proximidade com os nossos heróis. As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso. Eu sempre respeitei muito a luta legítima de quem fez por onde. Eu sempre considerei um atrevimento ver jornalistas, artistas, pessoas de comunicação sem conteúdo ideológico, mas com bom jogo de cintura, se aproveitarem do sangue, da luta, da ideologia, do conteúdo, da ingenuidade, da boa fé dos nossos jovens para tirar partido disso, para construir suas carreiras na base do oportunismo. Eu sempre tive esse pudor. Nunca quis.

O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus. Foi, em todos os momentos da minha vida, jamais negar-lhes todas as homenagens, desde o primeiro momento. Meu irmão e minha mãe são e foram as personalidades daquele momento político brasileiro mais homenageadas até hoje. Até durante a ditadura foram inauguradas ruas, praças escolas, exposições com os nomes deles. As pessoas ficavam até boquiabertas de isso acontecer porque ninguém tinha peito de fazer isso. E com meu olhar até singelo, meu jeito ingênuo – podem considerar até sonso –, eu fazia isso. Talvez as pessoas achassem que eu fosse amorfa porque eu não oferecia perigo. E eu fazia isso. Eu mantive a memória dos meus viva, respeitada, homenageada, e essa foi a minha maneira de prestar a minha homenagem, de fazer o meu bom combate e de manter essa luta e essa memória vivas para que esses fatos não se repetissem.

E a senhora fundou também o Instituto Zuzu Angel, uma forma de preservar a história da sua mãe...

Foi a primeira ONG de moda no país, ou seja, uma sociedade civil sem fins lucrativos, lembrando a memória de Zuzu, lembrando a sua luta e a luta do Stuart. Eu lembro que naqueles anos em que todos rasgavam documentos, jogavam fora qualquer coisa que os comprometesse, eu guardei tudo, tudo o que se possa imaginar: na minha casa, nas minhas costas, nas minhas malas, nos meus baús, nas minhas gavetas. Nunca tive medo. E hoje nós temos um conteúdo sensacional de documentos. Hoje nós estamos tentando levantar um museu aqui no Rio de Janeiro com a Secretaria de Estado. Se Deus quiser nós conseguiremos. Porque, você sabe, essas coisas de governo a gente nunca sabe, né? Várias promessas, vários governos sucessivamente... Nunca sabemos se será levado adiante. Uma hora dizem uma coisa, noutra hora outra. Eu quero ver pronto! Já estou cansada de promessas!

Mas eu tive a coragem de manter esse acervo sob as minhas asas numa época em que as pessoas tinham medo. Eu nunca me vangloriei da luta do meu irmão, da minha mãe e da minha cunhada porque é essa luta pertenceu a eles.

Que imagem a senhora acredita que o Brasil tenha da luta deles?

Acho que o Brasil tem a imagem de que os nossos jovens lutaram e de que os nossos políticos da época se omitiram. Os políticos da época, que podiam estar lá fora falando sobre isso, se omitiram.

Não me esqueço quando minha mãe, que era uma juscelinista de boa cepa, convicta, encontrou-se com o Juscelino numa festa onde estava toda a high society do Rio de Janeiro e lhe disse: “Você poderia ter denunciado as mortes, mas você se calou. Você teria recursos para falar na imprensa internacional das torturas. Eu não lhe perdoo, Juscelino Kubitschek!” E enfiou o dedo no nariz dele. Na ocasião, disseram: “Zuzu, você está louca! Fica calma!”.

Ela estava dizendo a verdade. No ano de 1976, foi aquela lavada geral, aquela limpeza diária: mataram a Zuzu, mataram o Juscelino, mataram o Carlos Lacerda, mataram o Jango. Porque ninguém me tira da cabeça que as mortes de Getúlio, Jango e Juscelino também fizeram parte dessa ação articulada. No Brasil, iniciava-se o processo de abertura e eles teriam que limpar a área para que tudo começasse zero-quilômetro, para que não ficasse resíduo, qualquer voz que pudesse se levantar para incomodá-los.

Mas, quando foi dada a voz às famílias desses antigos políticos para falar a respeito na época da Comissão dos Desaparecidos, elas não quiseram investigar. Elas negaram que os seus familiares tivessem sido mortos, talvez por receio, porque não acreditassem ou porque não tivessem a ideia de que elas estavam roubando a memória de seus familiares quando lhes sonegavam o direito do reconhecimento de um assassinato político.

A senhora apoiou a Dilma nas eleições presidenciais de 2010. Agora, no seu governo, finalmente foi instalada a Comissão da Verdade. O que a senhora espera dessa Comissão?

O assassinato da Zuzu foi reconhecido vinte e dois anos depois. Não foi no governo da Dilma, eu tenho que reconhecer. Foi no governo Fernando Henrique, quando o seu ministro, José Gregory, criou a Comissão dos Desparecidos Políticos. Foi feito um processo bem longo, em que houve recurso. O assassinato da mamãe foi reconhecido em segunda instância porque surgiram testemunhas oculares. Então não foi a presidenta Dilma. Mas eu acho que tudo anda muito vagarosamente.

Eu acho que a anistia foi a anistia que foi possível na época. Eu apoiei e o Brasil inteiro apoiou a anistia porque foi a anistia possível. Eu apoiei aquela abertura porque foi a abertura possível; aquele momento porque foi o momento possível, porque foi o momento em que não houve confronto, não houve novas vítimas, não houve sangue, não houve dor. Eu apoiei, sim, aquele momento porque foi um momento sem mortes. É muito importante que o Brasil lembre que nós tivemos uma passagem para a democracia sem mortes. Para quem já sofreu tantas mortes, como eu já havia sofrido, não queria mais em nome da política que houvesse mortes. Os nossos jovens, que já estavam velhos, retornaram ao Brasil, de todos os países, sequiosos para isso, sedentos para isso. E nós aqui esperançosos para isso. Então eu achava importante que a nossa passagem tivesse sido sem mortes.

E a senhora espera que seja feita a justiça com a Comissão da Verdade?

Eu espero que seja feita, mas eu acho tudo muito lento e eu fico muito cansada. Eu espero que sim. Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada. Você veja, esse livro (Memórias de uma guerra suja) em que é apontado o possível assassino da minha mãe... Por que eles não elucidam logo esse assassinato, quem foi o assassino? Que ela foi assassinada todos já sabemos. Por que eles não identificam logo, não abrem logo esse processo? Você vê que as famílias têm que ficar o tempo todo sofrendo esse martírio. Eu fico cansada.

Como a senhora acha que as novas gerações lidam com a política?

Se não forem as novas gerações, o que será de nós? As velhas gerações estão muito mais preocupadas com elas mesmas do que com o nosso passado. Graças a Deus temos as novas gerações.

A senhora acredita que o Brasil lide bem com o seu passado?

Eu acho que o Brasil lida bem com o passado na medida em que as novas gerações estão preocupadas com esse passado. Com a idade, as pessoas vão se acomodando, as pessoas vão perdendo seus postos de poder, a sua voz, a sua influência. E as pessoas também vão se revelando, né?

Pessoas que antes pareciam engajadas, preocupadas em esclarecer fatos, hoje se situam praticamente à direita e estão mais preocupadas em satisfazer seus patrões da mídia de direita do que esclarecer pontos importantes do nosso passado de esquerda.

Os filmes que falam sobre essa época da ditadura, como o filme do Sérgio Rezende que foi feito sobre a sua mãe, podem ajudar a resgatar esse passado?

A cultura está fazendo essa revolução. A cultura está fazendo essa denúncia. A cultura está prestando um grande serviço a essa luta brasileira, a esse resgate. Acho que há movimentos importantes também. O “Tortura Nunca Mais” de hoje é um movimento muito importante.

Hoje se discute e se faz com bastante frequência política na internet, em blogs e em redes sociais. O que a senhora pensa a esse respeito?

Redes sociais são importantes, mas eu vejo que há uma certa casta superior do jornalismo que se identifica como jornalismo de primeira linha, de primeiro grupo. É um jornalismo totalmente comprometido com seus patrões, que não está muito preocupado com nada, não...

A senhora acha que nós vivemos numa liberdade de expressão plena hoje?

Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país, que estão restritos a uma única opinião, refletindo os interesses de um pequeno grupo de empresários poderosos...