26/10/2015 - Copyleft
Boletim Carta Maior
Sobre meninas e lobos
A cultura do estupro, que significa o consenso e a
naturalização da violência contra a mulher, domina a publicidade e os
meios de comunicação.
Marina Ganzarolli*
Nesta semana (20) começou o
“MasterChef júnior Brasil”, uma competição culinária transmitida pela
Rede Band entre 20 crianças, de 9 a 13 anos de idade. Após o primeiro
episódio, a repercussão nas redes sociais em relação a uma das
participantes, a menina Valentina, gerou revolta na Internet. Mensagens
pornográficas e apologia à pedofilia resumem o conteúdo dos tuítes
direcionados à garota e dos comentários estampados na página Admiradores
da Valentina, criada no Facebook: “Se tiver consenso é pedofilia?”,
dizia uma delas.
Não existe relação sexual consensual
com uma criança. Uma menina, assim como toda criança, não tem plena
capacidade para fazer pra fazer essa escolha, nem pra se defender, se
forçada. Não importa se ela se parece com uma criança ou com uma mulher.
Uma mulher no espaço público também não é sinônimo de um corpo à
disposição do desejo e do prazer masculinos. Nem as meninas tampouco as
mulheres estão fadadas à manutenção do trabalho reprodutivo no espaço
privado. A todas deve ser garantido o direito de serem livres, de
fazerem suas escolhas, de possuírem autonomia sobre seus corpos e sobre
sua sexualidade. Mas na realidade, estamos em constante e precocemente
sujeitas às mais diversas formas de controle e violências em uma
sociedade essencialmente machista.
Em resposta à
violência e ignorância dos tuites e postagens, no dia 22 o coletivo
ThinkOlga, idealizador da campanha Chega de FiuFiu, lançou a hashtag
#PrimeiroAssédio no Twitter, concentrando em algumas horas milhares de
relatos sobre a primeira vez em que meninas e mulheres sofreram algum
tipo de assédio ou violência sexual: “Ônibus cheio, eu sentada no colo
da minha mãe (cega). Homem abre o zíper da calça e me mostra o genital.
Eu tinha 8 anos”, relatou uma delas. Novamente, a contrarreação aos
relatos que inundaram as redes sociais chamam a atenção para a
naturalização da violência contra a mulher, gordofobia e culpabilização
da vítima: “Só mina gorda e feia nesse #primeiroassédio” disse um deles.
O líder da banda Ultraje a Rigor, o ultrarreacionário Roger Moreira e
uma espécie de Lobão engraçadinho, fez piada sobre o assunto e ironizou
os relatos de violência e abuso que circularam na web: “Acho que eu
tinha uns 10 anos. Uma empregada deixou eu pegar nos peitos delas. Foi
bom pra cassete”, disse.
Segundo o IPEA, em
relação ao total das notificações de estupro
ocorridas em 2011, 88,5% das vítimas eram mulheres, mais da metade
tinha menos de 13 anos de idade e mais de 70% dos estupros vitimizaram
crianças e adolescentes. A violência sexual é a quarta violação
mais recorrente contra crianças e adolescentes denunciada no Disque
Direitos Humanos (Disque 100).
O Brasil foi o primeiro
país a promulgar um marco legal dos direitos humanos de crianças e
adolescentes, em consonância com a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989). O ECA, Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990 só foi possível graças à mudança de paradigma
provocada pela Constituição de 1988, quando passamos a falar em proteção
integral dos direitos da criança. A visão higienista e correcional dada
a “criança-menor” foi substituída pela perspectiva da criança enquanto
sujeito de direitos. O enfrentamento da violência sexual – para o qual
quase não havia política pública alguma na época – ganhou destaque na
Carta Constitucional (parágrafo 4o, art. 227). O ECA prevê que quem
aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de
comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso a
pena de reclusão de 1 a 3 anos mais multa (art. 241-D).
Assim,
desde 1988 muita coisa mudou e hoje dispomos de um Sistema de justiça e
de segurança específicos para crianças e adolescentes e de um
Comitê, um Conselho misto e um Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Apesar
de o enfretamento institucional do problema ter avançado,
culturalmente, desgraçadamente, parece que não saímos do lugar. Nesta
semana (21), Pedro Magalhães Ganem (JusBrasil) relatou um caso no
Espírito Santo em que o Juiz determinou que o estuprador registrasse a
criança que foi gerada em decorrência do estupro, no caso, o avô do bebê
e pai da vítima, uma criança de 13 anos. Ou seja, se temos um arcabouço
legal relativamente avançado, os que deveriam aplica-lo nem sempre agem
em consonância com o respeito aos direitos humanos e a proteção
simbólica e material das vítimas.
A
cultura do estupro, que significa o consenso e a naturalização da
violência contra a mulher, também domina os meios de comunicação. A
recente novela da Globo Verdades Secretas envolvia a trama de uma menina
de 16 anos que, em busca do sonho de virar modelo, acaba virando
profissional do sexo e se envolve com um homem acima dos 40 anos. Para
manter o relacionamento ele se casa com a mãe da garota e, na condição
de seu padrasto, controla todos os movimentos da menina. A relação
extremamente abusiva, romantizada pela TV, não impediu que a novela
obtivesse altos índices de audiência, implicando num sinal de menos para
a mulher enquanto sujeito de direitos.
Falar
sobre pedofilia não é fácil. A maioria dos comentários expressa nojo e
repulsa diante das mensagens criminosas dirigidas à Valentina. Mas como
bem explica a própria Carol Patrocinio, a pedofilia tem duas definições:
trata-se (i) de uma perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir
sexualmente atraído por crianças ou (ii) da prática efetiva de atos
sexuais com crianças. Dessa forma, antes de acontecer o crime (ii),
temos que enfrentar a doença (i).
Mas esses meninos e
homens, melhor intitulados pedófilos e criminosos, não vivem em Marte,
não estão apartados da realidade social que os circunda. Pelo contrário.
Eles são diariamente bombardeados com imagens de crianças
hiperssexualizadas, de corpos de mulheres objetificados como pedaços de
carne, de adultas infantilizadas, de padrões inalcançáveis de beleza,
magreza e branquitude.
A nova garota-propaganda da
gigante da moda Dior, a modelo israelense Sofia Mechetner, tem apenas 14
anos. Sofia abriu o desfile de inverno da marca italiana em julho deste
ano e às críticas a sua tenra idade não foram suficientes: a modelo e a
coleção são um sucesso. Em 2008 uma campanha publicitária da marca de
roupas infantis Lilica Ripilica em que uma menina de cerca de 4 anos
aparecia deitada em uma pose sensual, segurando um doce com os dizeres
“Use e se lambuze”, foi retirada de circulação, dado sua conotação
erótica. Em mraço deste ano, a marca de roupas Use Huck, do apresentador
Luciano Huck, foi notificada pelo PROCON do Rio de Janeiro após
estampar camisetas infantis com a frase “Vem ni min que eu tô facin”.
Após a repercussão negativa a marca se desculpou e cessou a venda do
produto em seu site.
O Instituto Alana, criador do
projeto Criança e Consumo, alerta para os impactos negativos do
consumismo infantil e para a relação direta entre erotização precoce e
exploração sexual de crianças e adolescentes. A identidade da criança
está em constante formação e desenvolvimento até que ela alcance a vida
adulta. Produtos como maquiagem e sutiã com bojo para crianças,
disponíveis no mercado, geram estímulos com os quais as crianças – em
processo de formação da autoestima – não sabem lidar.
A
noção de pertencimento a um grupo, a identidade da criança, está em
constante formação e desenvolvimento até a vida adulta, quando tem plena
capacidade não só de tomar decisões, mas de compreender a extensão e as
consequências de suas escolhas. Mas numa sociedade capitalista de
consumo, o quanto antes as crianças virarem consumidores, melhor. Pouco
importa que a publicidade promova a adultização e hipersexualização das
crianças e acarrete um encurtamento da infância.
Não
adianta achar “nojento” e acreditar que nada disso tem a ver com você e
com a sua família. Argumentos como “imagina se fosse com a sua filha” ou
“não dá pra generalizar, nem todos os homens são assim” apenas mascaram
o que importa: as vítimas e sua dignidade enquanto seres humanos,
sujeitos de direitos. Nossa opinião é irrelevante. Fato é que todas as
meninas e mulheres estão sujeitas à violência, diariamente. Isso sim
pode ser generalizado. É por isso que temos que falar sobre gênero e
sexualidade das escolas. É por isso que não avançaremos enquanto
estivermos ensinando a nossas meninas a “se comportarem” – não usar
saia, falar baixo, não beber, não sair à noite, não descobrir sua
sexualidade, basicamente, não viver – e não a nossos meninos a não
estuprarem as mulheres. Todas as mulheres estão sujeitas à violência, ao
assédio e ao abuso e os “lobos” estão sempre mais próximos do que se
imagina. São o pai, o tio, o padrasto, o primo, o vizinho, o colega de
trabalho, o amigo da escolar, o moço do bar, o cara da televisão, a
propaganda do desenho, uma brincadeira inocente ou aquela piada
inofensiva.
* Marina Ganzarolli é advogada,
co-fundadora do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP,
pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia (NDD) do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), e foi Conselheira
Municipal da Criança e do Adolescente da Cidade de São Paulo.