Mostrando postagens com marcador ditadura civil-militar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador ditadura civil-militar. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 15 de abril de 2015

História, memória, contradições

14/04/2015 às 14:11

Em evento da Globo, manifestante é preso no Congresso depois de gritar que emissora apoiou a ditadura

Escrito por: Redação
Fonte: Viomundo

O militante Pedro Rafael, da Frente Nacional pelo Direito à Comunicação, foi preso hoje cedo no Congresso depois de gritar 'A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura' durante sessão solene em homenagem aos 50 anos da Globo.

O militante Pedro Rafael, da Frente Nacional pelo Direito à Comunicação, foi preso hoje cedo no Congresso depois de gritar “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura” durante sessão solene em homenagem aos 50 anos da Globo.
O evento foi convocado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, atendendo a requerimento dos deputados Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) e Rômulo Gouveia (PSD-PB).
O FNDC, coordenado pela secretária de comunicação da CUT, Rosane Bertotti, é uma das principais entidades envolvidas na luta pela democratização da mídia.
Em recente evento em Belo Horizonte, cobrou ação do governo Dilma.
Diante das cobranças, o secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Emiliano José, garantiu que o governo irá promover neste ano o debate sobre a regulação da mídia no Brasil. “Todos os setores da sociedade serão chamados a participar dos espaços de discussão e ali poderão responder qual marco regulatório querem para o País”, afirmou. Emiliano fez referência à mídia hegemônica brasileira, também considerando-a como um polo político. “Eu não acredito na auto-regulação da mídia sobre si mesma. O estado democrático é quem deve regular a mídia”, acredita. Em ironia às críticas feitas ao Brasil e a países da América Latina por setores de direita da sociedade, o representante do Ministério das Comunicações fez menção à América do Norte. “Os EUA têm uma legislação muito mais rigorosa do que a nossa no setor e por que, então, não são chamados de bolivarianos ou censuradores?”, questionou.
Durante o evento da Globo, Pedro Rafael tentou estender uma faixa com os mesmos dizeres, mas foi retirado por seguranças do Congresso.
A homenagem de Eduardo Cunha à Globo acontece apesar de um incidente constrangedor envolvendo o deputado e a empresa no passado.
No final dos anos 90,  a esposa do atual presidente da Câmara, Cláudia Cordeiro, era apresentadora do RJTV, no Rio, quando foi demitida. Moveu ação trabalhista e teve vínculo empregatício reconhecido com a emissora, já que era contratada como Pessoa Jurídica. Na época, o site da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) noticiou:
Pejotização Condenada 28/10/2008 | 11:30
Em decisão proferida recentemente, a Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício da jornalista Claudia Cordeiro Cruz com a TV Globo. Relator do recurso da emissora, que já havia sido condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), o ministro Horácio Senna Pires constatou que havia evidências de fraude nas relações de trabalho no contrato de locação de serviços mantido entre a Globo e a jornalista no período de maio de 1989 a março de 2001.
Num período de mais de 10 anos, Claudia trabalhou para a Globo sem anotação em sua carteira de trabalho. A emissora condicionou a contratação à constituição de Pessoa Jurídica e ela criou a C3 Produções Artísticas e Jornalísticas Ltda.
O Agravo de Instrumento AIRR – 1313 /2001-051-01-40.6 entrou na pauta de votações da Sexta Turma do TST no dia 22 de outubro e teve a decisão divulgada pela assessoria do órgão no dia 24. Nela, o relator registrou que “se tratava de típica fraude ao contrato de trabalho, caracterizada pela imposição feita pela Globo para que a jornalista constituísse pessoa jurídica com o objetivo de burlar a relação de emprego”.
A profissional entrou com ação na Justiça do Trabalho após ser informada, em julho de 2000, que seu contrato não seria renovado, e após, segundo ela, ter contraído doença ocupacional. Claudia teve seus pedidos indeferidos pela 51ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, mas recorreu e, após avaliar provas periciais e depoimentos, o TRT da 1ª Região modificou a sentença, que foi confirmada pela Sexta Turma do TST, condenando a Globo à anotação da carteira de trabalho da jornalista, no período de maio de 1989 a março de 2001, com o salário de R$10.250,00.
Detalhe: Cunha é sócio de Claudia na empresa. Se a ação tivesse sido movida sob as regras do PL 4330, recentemente aprovado com esforço extraordinário do presidente da Câmara, tudo indica que o resultado da ação na Justiça teria sido diverso, já que o projeto autoriza a terceirização de atividades-fim das empresas.
Quando presidiu a Telerj, no Rio, Eduardo Cunha foi acusado de favorecer a NEC do Brasil, então controlada pelo dono da Globo, Roberto Marinho, ao assinar um aditivo de R$ 92 milhões num contrato, quando deveria ter promovido uma nova licitação.
Entidades de todo o Brasil organizam manifestações para “descomemorar” o aniversário de 50 anos da Globo no próximo dia 26 de abril.

sábado, 20 de setembro de 2014

Wikipedia, wikiconhecimento, wiki-informação: um histórico registro público


Artigo em destaque

Rede Globo logo.svg



As críticas à Rede Globo referem-se ao extenso histórico de controvérsias nas relações da rede de televisão brasileira supracitada com a sociedade do país. A emissora possui uma capacidade sem paralelo de influenciar a cultura e a opinião pública. A principal polêmica histórica da estação televisiva e as Organizações Globo está ligada ao apoio dado à ditadura militar e a censura dos movimentos pró-democracia nos noticiários do canal. O regime, segundo os opostos à emissora, teria rendido benefícios ao grupo midiático da família Marinho, em especial para o canal de televisão que, em 1984, fez uma cobertura omissa das Diretas Já. A própria Globo reconheceu em editorial lido no Jornal Nacional, 49 anos depois e pressionada pelas manifestações de junho de 2013, que o apoio ao golpe militar de 1964 e ao regime subsequente foi um "erro".

No final dos anos 1980, a emissora novamente foi alvo de críticas devido à edição que promoveu do último debate entre os candidatos a presidente na eleição de 1989, o que teria favorecido Fernando Collor de Mello. No final da década de 1990, as Organizações Globo enfrentaram diversos problemas financeiros que teriam sido aliviados pelo Estado apesar de se tratar de uma empresa privada. Durante o período, a emissora utilizou sua influência entre os políticos para conseguir mudar um artigo da Constituição Federal para permitir a entrada de 30% de capital estrangeiro nas empresas de mídia. Em 2002, o governo federal ofereceu ajuda de R$ 280 milhões à Globocabo através de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A emissora voltou novamente a ser alvo de críticas pela cobertura supostamente tendenciosa das eleições de 2006 e 2010. (leia mais...)

Fonte: Wikipedia, em 20 de setembro de 2014.

sábado, 19 de abril de 2014

Cinemão!

18/04/2014 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

A ditadura civil-militar em 10 filmes

Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.


DivulgaçãoEsta lista não se pretende definitiva, muito menos apontar quais os dez melhores filmes sobre a ditadura civil-militar.

Trata-se de um panorama que busca abarcar grande parte da produção cinematográfica brasileira a respeito do tema. Há filmes de todas as décadas desde o golpe. Há cinema novo, cinema marginal, documentário, curta-metragem, cinema contemporâneo, filmes icônicos e filmes pouco conhecidos.

Imaginamos que os filmes dessa lista deem conta da maioria dos processos que envolveram a ditadura. Mas mais importante, esperamos que deixem evidente a capacidade do cinema em se colocar como documento de uma época das mais diversas maneiras.

O Desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965)

Impressiona que um filme feito no "calor da hora" tenha um grupo de personagens que dê conta das mais diversas posturas em relação ao golpe. Há o empresário que quer a manutenção da ordem, sua mulher alienada que continua vivendo como se nada tivesse acontecido, e o amante desta, o jornalista idealista em completa crise existencial.
 
Saraceni vê o golpe dentro de um processo histórico e não como evento isolado, fora de contexto, tendo assim sucesso na construção de tal panorama.

Terra em Transe (Gláuber Rocha, 1967)



Em 1964, um mês antes do golpe, Deus e o Diabo na Terra do Sol já estava finalizado e pronto pra chegar aos cinemas. Enquanto tratava das condições de exibição e distribuição do filme, Gláuber assistia a tomada de poder pelos militares. Três anos depois, é em Terra em Transe que temos retratado sua visão deste processo.

Paulo Martins é o protagonista que carrega em si o conflito entre conservadorismo e engajamento, quer ser poeta e tratar de temas políticos ao mesmo tempo.

Há uma certa análise superficial do filme, que acusa Gláuber de criticar todos os lados. No entanto, trata-se de um raro olhar dialético das contradições da época, concentradas em um personagem. Sem dúvida, um olhar bastante cético em relação às perspectivas futuras. Um ano depois, era decretado o AI-5.

A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla, 1969)



Pode parecer estranho para alguns a presença deste filme numa lista como essa, mas é essencial retomar a postura de um dos mais importantes cineastas brasileiros em relação ao momento histórico de que tratamos aqui. E neste caso, é do total deboche e sarcasmo.
As desventuras de Angela Carne e Osso pela Ilha dos Prazeres retratam a mediocridade e alienação da classe média paulistana. E Sganzerla utiliza de todos os artifícios e referências da Boca do Lixo, das chanchadas e dos quadrinhos para isso.

E como grande momento, o discurso final do empresário traído interpretado por Jô Soares, prenhe de simbolismo em relação ao contexto histórico, quando diz: “Eu não calculo nunca, mas quando faço uma besteira, eu vou até o fim”.

Manhã Cinzenta (Olney São Paulo, 1969)



Censurado em 1969 por ser considerado “altamente subversivo”, o filme foi confiscado e nunca chegou a ser exibido comercialmente. Uma de suas cópias foi salva e ficou escondida na Cinemateca do MAM por 25 anos.

Olney São Paulo é o único cineasta brasileiro a ser preso e torturado pela produção de um filme.

Manhã Cinzenta retrata a prisão e tortura de estudantes que participavam de uma manifestação. Eles são interrogados por um robô e um cérebro eletrônico, situação absurda que Olney usa como metáfora, tanto para mostrar os extremos do regime quanto para tratar com escárnio a alienação de parte da sociedade na época.

Você Também Pode Dar um Presunto Legal (Sérgio Muniz, 1973)



Feito em 1971 e finalizado dois anos depois, o filme de Sérgio Muniz só foi exibido no Brasil em 2006. Esse hiato de 33 anos ocorreu pois, na época, amigos do diretor recomendaram que ele não passasse o filme no país, temendo por sua segurança.

O documentário foca nas ações do delegado Sérgio Fleury e do Esquadrão da Morte durante a ditadura, alternando matérias de jornal e imagens da época com depoimentos de torturados e fragmentos das peças "A Resistível Ascenção de Arturo Ui" (Bertold Brecht) e "O Interrogatório" (Peter Weiss).

E Agora, José? – Tortura do Sexo (Ody Fraga, 1979)



O filme Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) é muitas vezes considerado pioneiro em retratar as torturas que ocorriam nos porões dos órgãos policiais da ditadura. No entanto, tal “honraria” pertence, na verdade, a este filme, produto da Boca do Lixo paulistana. Assim como o sucesso de bilheteria estrelado por Reginaldo Faria e Antonio Fagundes, E Agora, José? também trata de um sujeito apolítico que é preso por engano e torturado pelo regime.

Enquanto Pra Frente Brasil pretende-se denúncia histórica – e acaba sendo reprodutor da “teoria dos dois demônios”, a qual defende que direita e esquerda estavam erradas – o filme de Ody Fraga tenta se equilibrar entre o engajamento e o escárnio, embora acabe derrabando em vícios do gênero e da época, como o erotismo misógino.

De qualquer forma, uma obra normalmente esquecida e que vale a revisão pelo pioneirismo e possibilidades que origina.

Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984)  



Em fevereiro de 1964, Eduardo Coutinho foi até a Paraíba para contar a história da morte do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado dois anos antes. O diretor buscava mostrar como as Ligas Camponesas, que tinham como objetivo a mobilização do trabalhador rural pela reforma agrária, estavam sendo reprimidas pelos latifundiários.

No entanto, o filme foi interrompido pelo Golpe. Membros da equipe de filmagem foram presos, acusados de estarem ensinando táticas de guerrilha para os camponeses, e parte do rolo do filme confiscado. Coutinho volta ao Engenho da Galileia dezessete anos depois para encontrar Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e continuar o filme, que, iniciado como ficção, acabou se tornando o mais importante documentário do cinema brasileiro.

Cabra Marcado para Morrer talvez seja o único filme brasileiro que não possa ser excluído de uma lista como esta, pois é de fato um produto da repressão da ditadura. Não retrata um contexto, faz parte dele.

Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998)



Miguel (Zécarlos Machado) descobre o paradeiro do homem responsável pela sua tortura e de seus amigos. Ele engaja-se na busca desse acerto de contas e tenta convencer Elói, Paulo e Osvaldo a fazer o mesmo. A grande virtude do filme de Beto Brant está exatamente nessa batalha de argumentos a favor ou contra o enfrentamento com o carrasco, da onde emerge a necessidade da rememoração (um dos personagens diz que “já foi há tanto tempo, é melhor não mexer no passado”) e da busca pela justiça.

Paira sobre o filme, assim, a lógica de que, em um caso desses, quando não há ação do Estado, as consequências podem ser fatais.

Memória para Uso Diário (Beth Formaggini, 2007)



Produzido pelo grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, o documentário tem como cerne o exercício de memória em busca da reparação. Depoimentos explicam a história e as atividades do grupo. Familiares são levados às ruas que receberam o nome de seus parentes desaparecidos, onde explicam para os moradores quem foram aquelas pessoas. Uma senhora busca em arquivos do Estado uma prova de que seu marido desaparecido foi preso pelo regime. Um homem procura em um cemitério as ossadas de seu irmão.

No entanto, a grande virtude do filme é a relação que estabelece com a atualidade, bastante rara no cinema brasileiro contemporâneo. Vemos depoimentos de mães que tiveram seus filhos, negros e favelados, mortos sem razão aparente pela polícia militar. Relembrar, portanto, não serve apenas para resolver as questões passadas, mas também para expor a continuidade da truculência militar, agora com vítimas muito mais marginalizadas pela sociedade.

Hoje (Tata Amaral, 2013)



Acompanhamos a chegada da personagem Vera ao seu novo apartamento e todas as interações que uma mudança implica: conversa com a síndica do prédio, orientação sobre onde devem ir caixas e objetos etc.

De repente, surge Luiz, antigo companheiro de Vera nos tempos de guerrilha. Ele a questiona se o dinheiro daquele apartamento se deve a uma indenização, na qual o Estado reconhece que se trata de um cidadão desaparecido em razão de ações do regime.

O roteiro de Jean-Claude Bernardet, Felipe Sholl e Rubens Rewald (do ótimo Corpo, que também tem a memória e o direito à verdade como plano de fundo) faz dessa ambiguidade entre o real e a fantasioso instrumento para expor um trauma que precisa ser encarado a fim de ser resolvido.

sábado, 29 de março de 2014

50 anos do golpe civil-militar no Brasil: por que há tanta resistência em "abrir o baú"

As filhas e os filhos das vítimas da ditadura militar no Brasil

A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil de cair nas mãos de torturadores e da repressão.



Milton Pomar Arquivo do SNI

Quando Carlos Alexandre Azevedo, filho de Dermi Azevedo e Darcy Andozia, suicidou-se em fevereiro de 2013, e sua trágica história foi amplamente divulgada, muita gente se espantou ao saber que no Brasil, na década de 1970, crianças foram levadas para os locais (DOPS, DOI-CODI etc.) onde seu pai ou sua mãe (ou os dois) estava(m) sendo torturado(s), para assistirem o sofrimento e servirem de pressão adicional – a ameaça de também serem torturadas desmontava de vez os presos, que acabavam falando o que os criminosos queriam saber.
 
Milhares de militantes políticos de esquerda, em março de 1964, tinham filhas e filhos ainda pequenos. Vários, dentre os mais conhecidos, tinham também netos e netas. Quando ocorreu o golpe militar, de 31 para 1º de abril, essas milhares de crianças  tornaram-se alvo da repressão, e ingressaram em um mundo novo, de medo, fuga e perseguições – cheio de segredos sussurrados, senhas, codinomes, “ponto”, “aparelho”, “queda” e outras variáveis importantes, que constituíam a terminologia da clandestinidade, espécie de universo paralelo ao qual a maioria desses militantes e suas famílias submeteram-se para poder continuar vivendo e atuando no país.

Pouco depois do golpe, meu pai e outros militantes foram presos em Iaçu, interior da Bahia, e levados para um quartel do Exército em Salvador, no bairro de Amaralina. Minha mãe conseguiu um habeas-corpus para ele, superando enormes dificuldades, e algum tempo depois nos reencontramos. Eu estava com cinco anos de idade, e havíamos regressado (minha mãe, meu irmão mais velho e eu) de Iaçu, na Bahia, para o Rio de Janeiro, pouco antes dos generais e coronéis derrubarem o presidente eleito João Goulart.

Vivemos daí em diante para lá e para cá, em casas de parentes e amigos, nunca muito tempo em lugar nenhum. Já havíamos passado pelo Rio, Minas, Bahia e São Paulo, quando, em 1966, fomos morar em Goiânia. Foi lá que fiquei sabendo por meus pais que teria um novo nome: Milton, bem mais adequado aos tempos de intensa perseguição que sofríamos, do que o meu nome original (Vladimir).

Mudaram nossos nomes e sobrenomes e locais de nascimento, e assim passei a ser natural de Goiânia, e, aos sete anos de idade, totalmente clandestino.

A clandestinidade salvou, talvez, milhares de filhas e filhos de vítimas da ditadura militar no Brasil. Quem já leu a respeito do que os militares argentinos fizeram durante a ditadura de 1976/82 com as crianças (inclusive centenas de bebês) e adolescentes, filhas e filhos de militantes políticos, presos, torturados, assassinados e/ou desaparecidos, pode estimar o que teria sido de nós, se não estivéssemos clandestinos.

Os militares argentinos tinham como lema matar os comunistas, seus parentes e amigos.

(Ler sobre os feitos da repressão promovida pelas ditaduras militares no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Perú, ... é traumatizante, tal a covardia e crueldade dos torturadores e assassinos – todos servidores públicos, com salários e previdência pagos pelo Estado – e a quantidade de casos de sofrimentos inacreditáveis de militantes políticos de esquerda.)

Quando meu pai foi preso pela segunda vez, em dezembro de 1976, meu avô Pedro Pomar foi assassinado, em episódio (conhecido como Massacre na Lapa) no qual morreu também Ângelo Arroyo, dirigente operário e líder da guerrilha do Araguaia. Durante os interrogatórios (e as torturas) a que meu pai foi submetido, uma das questões nas quais os militares insistiam era justamente onde nós (os filhos) estávamos.

Fiquei um ano sem vê-lo, e quando consegui visitá-lo, em dezembro de 1977, no presídio do Barro Branco, em São Paulo, onde ficavam presos os militantes políticos de esquerda julgados pela ditadura militar, eu estava às vésperas de cumprir serviço militar obrigatório. No início de janeiro de 1978, ingressei como recruta em um quartel do Exército, no qual permaneci (clandestino...) até o início de 1979.

Quando veio a Anistia, em 1979, algumas pessoas voltaram à identidade original, mas a maioria não acreditou que a ditadura acabara, e preferiu aguardar até considerar seguro sair da clandestinidade – eu inclusive, que defini como critério na época somente acreditar no fim da ditadura quando votasse para presidente da República, algo que demorou dez anos para acontecer. Em 1990, entrei com ação judicial para recuperar a minha identidade. Recebi a sentença favorável somente em 1993, e assim, 27 anos de clandestinidade depois, voltei a utilizar a minha certidão de nascimento verdadeira.

Mas muitos descendentes das milhares de vítimas da ditadura brasileira não conseguiram recuperar suas identidades; por receio, dificuldade de provar a clandestinidade, falta de recursos para a ação judicial, e até por não acreditarem que conseguiriam.

Todos(as) que sobrevivemos à ditadura militar de 1964/1985, militantes e descendentes, convivemos até hoje com os traumas adquiridos naquela época, independentemente de terem sofrido torturas físicas. Foram tantas as pessoas conhecidas atingidas, presas, torturadas, exiladas, assassinadas e desaparecidas, que a vida continuou, mas marcada pela ditadura militar. E a vida, naqueles longos 21 anos, foi uma tensão permanente. Viver sob terror de Estado, por tanto tempo, é algo realmente difícil de suportar e de descrever.

Adquire-se hábitos de segurança que o tempo não desfaz, de sempre olhar à sua volta, para avaliar quem está em qualquer ambiente, prestar atenção a todas as pessoas em qualquer ambiente, a prestar atenção, quando voltava para casa, se a luz da varanda estava acesa, ou em outro detalhe

 A propaganda permanente contra nós, estilo “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, perturbava, não era fácil ser criança e sentir-se criminoso, portador de um segredo perigoso etc. Além dela, havia também a propaganda anti-comunista boçal, disseminada entre a população, que a repetia com freqüência, obrigando-nos a manter-se em alerta total, para não despertar suspeitas. Alguém que fosse chamado de “melancia” (vermelho por dentro...), em alguns ambientes, corria o risco de ser detido e torturado, até provar que não era “vermelho”.

O estresse resultante daquela situação opressiva, certamente contribuiu para adoecer muitas mães, filhos e filhas, não diretamente envolvidas, mas de fato na linha de frente, se fossem pegas sofreriam muito – como ocorreu com centenas delas.

Muitos desses filhos e filhas nasceram durante a ditadura. Já nasceram clandestinos, sem ao menos saber que seu pai e sua mãe levavam uma vida “diferente” da dos vizinhos, e que seus parentes tinham outras identidades. Muitos(as) não possuem amigos(as) daquela época, tal a frequência com que mudavam de casa e escola, e a impossibilidade de contar a verdade e fornecer o novo endereço a tais amigos(as) ou namoradas(os).

Durante o período em que a ditadura espalhava cartazes de “procurados”, com dezenas de fotos de militantes políticos que ela acusava de “terroristas”, o terror de muitas dessas crianças era encontrar ali a foto de seu pai, mãe, avô ou avó.

Há o trauma de dezembro, mês preferido pela repressão para atacar quem tentava visitar suas famílias: muitos militantes foram capturados assim. E naquela época, capturados significava presos, torturados, mortos, desaparecidos. Por isso, o Natal sempre nos deixa tristes, tanto tempo depois.

Essas questões voltaram agora com força, dada a proximidade dos 50 anos do golpe militar no Brasil. É emocionante ver nas redes sociais as fotos de muitas das vítimas da ditadura militar, algumas das quais conhecemos, nos anos 1960/70. Dói lembrar que há muitas vítimas que permanecem anônimas, ou das quais muito pouco se sabe. Pessoas corajosas, determinadas, generosas, que enfrentaram a ditadura militar como puderam, e por isso não estão aqui conosco, vivenciando o país muito melhor que nos legaram. Para pessoas como eles e elas, o poeta alemão Bertold Brecht  escreveu “Aos que virão depois de nós”, uma bela homenagem a quem tombou na luta por um mundo melhor.

Nós, os milhares de filhas, filhos, netos e netas desses(as) militantes, que sobrevivemos aos 21 anos de terror de Estado, e até hoje continuamos na batalha, apesar do sofrimento, dos traumas, e da saudade de nossos parentes, mortos e desaparecidos pela ditadura militar, não aceitamos a impunidade dos torturadores e assassinos.

A ditadura militar no Brasil foi cruel e covarde, como todas são, mas foi derrotada. E agora em 2014, coincidindo com os 50 anos do golpe militar, há de ser também a eleição do 4º mandato consecutivo das esquerdas na Presidência da República, e, por ironia da história, a reeleição de uma ex-presa política da ditadura, barbaramente torturada.

Adiante, que ainda há muito o que fazer para melhorarmos a vida do povo.

sábado, 30 de novembro de 2013

Ler uma página de jornal: história, memória, discurso

Jango, JFK e Globo

Dois acontecimentos de densidade histórica, como a exumação dos restos de Jango e sua recepção em Brasília foram relegados à parte inferior de O Globo.


@DarioPignotti
 
Arquivo
São Borja e Brasília - Para ler o jornal O Globo em São Borja “geralmente temos que esperar até o meio-dia quando ele vem pelos ônibus que chegam de Porto Alegre”, diz um taxista que me leva até o centro da cidade, na praça 15 de Novembro, em frente à Igreja Matriz, onde o presidente João Goulart foi velado com o caixão aberto em dezembro de 1976. Naquela noite os saoborjenses desafiaram a ditadura lotando a igreja para dar um adeus (não sabiam que era só o primeiro) ao seu líder, apesar de as autoridades do III Exército terem ordenado que ele fosse enterrado imediatamente após chegar da Argentina, onde faleceu no dia 6 de dezembro de causas até hoje não esclarecidas.

“Eu me lembro do velório de Jango, quando o povo quis ir se despedir do presidente. Ele era muito querido aqui, havia uma multidão de gente na Igreja”, recorda outro taxista, coincidentemente apelidado de Jango, que veste uma camiseta colorada do Internacional enquanto me conduz até o Cemitério Jardim da Paz onde os restos do ex-mandatário foram exumados na madrugada de 14 de novembro para, horas mais tarde, serem recebidos pela presidenta Dilma em Brasília com honras de Estado.

Na cidade de São Borja a memória da ditadura continua tão viva que impregna a vida cotidiana: as suspeitas sobre o envenenamento de Jango são compartilhadas pelo ancião com bombachas e chapéu de gaúcho parado em frente ao cemitério e pelos estudantes de Ciências Políticas da Universidade Federal participantes da audiência pública onde se exigiu do governo federal que seus restos sejam devolvidos logo depois dos estudos que se realizam em Brasília.

O país visto desde São Borja, onde Goulart é uma espécie de Camelot mitológico, é diferente do narrado no jornal O Globo e outros veículos de propriedade dos herdeiros de Roberto Marinho.

A exumação do presidente morto no exílio quando estava na mira do Plano Condor, responsável pelos assassinatos (alguns por envenenamento) de vários líderes da região, possivelmente seja o acontecimento mais consistente ocorrido no Brasil no caminha na direção do resgate da memória e da verdade sobre o que ocorreu sob a ditadura, a menos investigada da América Latina.

Fatos similares, como a exumação sob a supervisão de especialistas internacionais (como ocorreu com Goulart) do ex-presidente Salvador Allende e, posteriormente, do prêmio Nobel Pablo Neruda, no Chile, absorveram a atenção pública e o interesse da imprensa por semanas. Aqui não foi assim.

Dois acontecimentos de densidade histórica, como a exumação dos restos de Jango e sua recepção em Brasília por Dilma, Lula e outros ex-presidentes, foram relegados à terça parte inferior da capa do jornal O Globo, no dia 15 de novembro. A parte superior foi dedicada à notícia da possibilidade de que o ministro Joaquim Barbosa ordenasse a detenção dos condenados pelo mensalão. A Folha de S.Paulo adotou uma perspectiva similar. Para a empresa de Frias Filho, o fato de maior destaque foi o engarrafamento de 309 quilômetros ocorrido em São Paulo, publicado como manchete com uma generosa foto, muito acima do retorno de Goulart a Brasília, 37 anos depois de sua morte e 49 do golpe de Estado que o destituiu para estabelecer uma “ditabranda”.

Nada se fará até 2029

Os crimes de Estado, de Júlio César até John Fitzgerald Kennedy, foram perpetrados por uma teia de interesses nunca revelados por completo, disse o procurador norte-americano Jim Garrison em sua intervenção perante uma corte de Nova Orleans em 1969, quando apresentou vasta informação sobre a participação de agentes da CIA combinados com mafiosos anticastristas no assassinato do presidente dos EUA, no dia 22 de novembro de 1963. A grande imprensa, denunciou Garrison em sua batalha solitária, foi cúmplice do encobrimento excitando o público com mentiras sonoras, campanhas patrióticas e outras artimanhas de desinformação, para desviar a atenção da verdadeira trama escondida debaixo dos disparos que destroçaram o crânio do presidente a bordo do Lincoln preto na sulista e racista Dallas.

A autópsia de Kennedy foi manipulada por peritos militares, testemunhas incômodas e cúmplices suspeitos da conspiração morreram em circunstâncias estranhas. Uma comissão tutelada pela Casa Branca concluiu que o magnicídio havia sido urdido e executado por um mitômano Lee Oswald, caracterizado como um sujeito antissocial e pervertido pelo ideário comunista da União Soviética. Uma tese tão discutível como a que assegura que foram naturais as causas da morte de João Goulart e ridiculariza a suspeita de um plano para envenená-lo, como denunciou o ex-agente dos serviços uruguaios Mario Neira Barreiro, preso na penitenciária de Charqueadas, no Rio Grande do Sul.

Questiona-se, e é correto fazê-lo, a credibilidade de alguém como Neira Barreiro que foi parte da organização terrorista Condor e confessa ter participado na morte de Goulart e no plano para eliminá-lo.

Os anais dos crimes políticos estão repletos de personagens como Neira Barreiro, cujas confissões (se verdadeiras) são chave para descerrar o véu da mentira. Um exemplo é o colaborador da CIA, David Ferrie, membro da organização que teria matado Kennedy, que, ao ver-se cercado por seus companheiros, aceitou colaborar com o promotor Garrison. Antes de depor perante o júri, o anticastrista e anti-Kennedy Ferrie apareceu morto em seu apartamento. Derrotado na corte e ridicularizado pela indústria midiática, Garrison se limitou a dizer que essa derrota jurídica era o primeiro passo para uma vitória política que chegaria em 2029, quando serão liberados os arquivos da Casa Branca.

O glamour do golpista

Em São Borja já se fala do segundo enterro de Jango previsto para 6 de dezembro (37 anos depois do primeiro) quando seus restos retornarão ao jazigo familiar do Cemitério Jardim da Paz depois de terem sido analisados no Instituto de Criminalística de Brasília e suas mostras enviadas a laboratórios estrangeiros onde se procurará, se ainda for possível, determinar a causa de sua morte.

Em uma audiência pública realizada no centro de tradições gaúchas, a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e seu colega da Justiça, José Eduardo Cardozo, firmaram, ante a comunidade de São Borja, uma ata de compromisso que garante o retorno do corpo de Jango a sua terra. Surpreende o contraste entre a memória ainda viva do povo de São Borja e a imprensa que ainda domina, com menos hegemonia que outrora, as estruturas de formação da opinião de massas.

Aguardei sem sucesso durante dois finais de semana a publicação de grandes suplementos históricos sobre a saga de Goulart, de volta à vida política 36 anos depois do enterro. Supus que seriam editados extensos cadernos com reportagens investigativas e ensaios sobre o líder democrático das reformas de base deposto, de modo similar ao que ocorreu na imprensa do Chile em setembro deste ano por ocasião dos 40 anos do golpe e da morte de Salvador Allende, ou na imprensa dos EUA, nos 50 anos do assassinato de Dallas.

Nada ou quase nada foi publicado nos grandes jornais do eixo Rio-São Paulo, no formato de caderno especial, sobre João Goulart reposto em sua condição de presidente em Brasília. Por outro lado foram editadas páginas especiais dedicadas a John Fitzgerald Kennedy.

O ápice do despropósito editorial, além de condenar Goulart à morte noticiosa, foi ter tratado o mandatário norte-americano como um personagem fascinante ou, para citar O Globo de 22 de novembro, “Presidente Celebridade”. Em rigor, para os brasileiros, Kennedy foi algo muito distinto ao galante democrata de acordo com o olhar do diário da família Marinho, provincianamente fascinado com o mito de Camelot.

Longe dessa leitura forjada pela Globo, a realidade histórica brasileira, materializada no golpe de 1964, ensina que JFK, na verdade, foi um anticomunista primário, um conspirador que avaliou desde o Salão Oval da Casa Branca, durante um encontro com o embaixador Lincoln Gordon, a progressão da desestabilização contra Jango, como ficou refletido no notável documentário “O Dia que durou 21 anos”.



Para download:
"o dia que durou 21 anos"

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

terça-feira, 2 de abril de 2013

Memória discursiva, processos de edição e circulação dos discursos


Arquivo Público do Estado publica acervo do Deops na internet

02/04/2013
Revista Fapesp
Por Frances Jones
Documentos produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo e outros órgãos de vigilância, em duas ditaduras brasileiras, são digitalizados e disponibilizados em site (foto: Mauricio Rummens/GESP)

Agência FAPESP – O Arquivo Público do Estado de São Paulo lançou oficialmente na segunda-feira (01/04) uma parte importante do seu acervo digitalizado na internet, no site “Memória Política e Resistência”. O material inclui mais de 274 mil fichas e 12,8 mil prontuários produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), pelo Departamento de Comunicação Social e pelo Dops de Santos ao longo de um período que abrangeu duas ditaduras brasileiras.

O projeto teve apoio da FAPESP, que auxiliou a compra de equipamentos para a digitalização, do Ministério da Justiça (projetos "Marcas da Memória") e da Casa Civil da Presidência da República (projeto "Memórias Reveladas").

O Deops-SP, denominado Delegacia de Ordem Política e Social em sua origem e, posteriormente, como última denominação, Departamento Estadual de Ordem Política e Social, foi criado em 30 de dezembro de 1924, por meio da Lei nº 2.034/24, que visava reorganizar a polícia do Estado.

"O órgão tinha como objetivo prevenir e reprimir delitos considerados de ordem política e social contra a segurança do Estado. Para isso, desenvolveu um grande aparato para monitoramento das atividades de pessoas e grupos considerados potencialmente perigosos à ordem vigente. Um dos principais instrumentos utilizados por essa vigilância foi a documentação: o acervo Deops-SP foi constituído, ao longo dos anos, pela documentação produzida por esse órgão e também de documentos apreendidos pelos órgãos de repressão. Sendo assim, podemos entendê-la como um espelho da forma de funcionamento das estruturas repressivas no Estado de São Paulo", destacam os organizadores do site.

O acervo do Deops é composto por quatro conjuntos principais: Ordem Social, Ordem Política, Dossiês e Prontuários. Também conta com publicações como os Livros de Portaria do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo e Livros de Inquéritos. 

"O esforço de digitalização e publicação dos documentos do Deops, assim como nosso trabalho de gestão documental, garante o acesso da população às informações que lhe dizem respeito”, disse o coordenador do Arquivo Público do Estado, Carlos Bacellar.

Lauro Ávila Pereira, diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, lembrou outro aspecto da publicação online desses documentos. “Esta iniciativa pode ajudar a identificação daqueles agentes públicos que, durante a época da ditadura, cometeram violações dos Direitos Humanos. Temos que lembrar que o Brasil é um dos poucos países da América do Sul onde esse tipo de crime jamais foi punido”, disse. Pereira ressaltou também a importância didática do acervo na internet, que pode ser utilizado pelos professores em sala de aula com mais facilidade. 

O governador Geraldo Alckmin participou da cerimônia de lançamento. "As pessoas podem ter acesso de casa, não tem nenhuma senha, é tudo público. É muito importante no sentido de transparência e de informação para as famílias das vítimas do período da ditadura", disse.

Projetos Temáticos
Entre 1924 e 1983, o Deops vigiou pessoas, instituições e movimentos políticos e sociais, funcionando como um dos principais braços da repressão do Estado brasileiro, em especial durante o primeiro governo Vargas (1930-1945) e do regime militar de 1964 a 1985.

O site é a segunda etapa de um projeto maior iniciado pelo Proin - Projeto Integrado Arquivo do Estado/Universidade de São Paulo (USP) em 1999. O material sobre o órgão foi liberado para consulta pública apenas em 1994, quase dez anos após o fim da ditadura. Os documentos, no entanto, eram de difícil acesso. "Não havia ainda uma base de dados que facilitasse a busca de processos por cidadãos fichados e/ou presos por crime político", disse a pesquisadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pioneira no estudo do material.

Depois de desenvolver entre 1995 e 1996 com outros seis pesquisadores um projeto financiado pelo Instituto Goethe sobre a presença de nazistas e refugiados judeus no Brasil depois da 2ª Guerra Mundial, Tucci Carneiro obteve apoio da FAPESP por meio da modalidade Projetos Temáticos para a criação de um arquivo virtual dos documentos do Deops – contribuindo com um inventário para o site que foi lançado agora.

O trabalho desenvolvido ao longo de cerca de oito anos pode ser conferido no site do Proin, que ainda hoje publica os resultados de suas pesquisas. Sob a orientação de Tucci Carneiro, uma equipe de 30 pesquisadores digitou a partir de 1999 as mais de 185 mil fichas da delegacia. “Na época não tínhamos equipamentos nem uma base de dados capazes de efetuar uma busca avançada junto às fichas policiais”, disse a coordenadora do projeto.

Desde o ano 2000, as fichas nominais dos prontuários podem ser consultadas pela internet, com a identificação do nome do "prontuariado" e o número do processo.

Além disso, foram digitalizadas e colocadas no site as primeiras páginas dos jornais, panfletos e livros confiscados durante os autos de busca nas residências dos suspeitos ou das associações. Sob a coordenação do professor Boris Kossoy, da Escola de Comunicação e Artes da USP, o Proin desenvolveu ainda um inventário de fotografias confiscadas dos álbuns de família ou produzidas pelo Laboratório de Fotografia do Gabinete de Investigação/Deops, que eram anexadas aos prontuários.
“Através do projeto de digitalização do Fundo Deops entre 1999-2010, conhecemos não apenas o documento/artefato, mas também conseguimos recuperar a lógica da polícia naquela época”, disse.

Além de Tucci Carneiro e Kossoy, participaram do projeto do Proin as professoras Elizabeth Cancelli (FFLCH-USP), Priscila Perazzo (Universidade Santo André), Regina Pedroso (Universidade Mackenzie), os professores Carlos Alberto Boucault, Pádua Fernandes e Álvaro Andreucci (Uninove).  Outro projeto temático com apoio da FAPESP foi desenvolvido por Maria Aparecida Aquino, hoje da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ue mapeou a série Dossiês/Deops.
Nos prontuários, tem-se acesso a ficha policial, relatórios de investigação, ordens de prisão, relação de impressos apreendidos (livros, jornais, panfletos), tudo o que ajudasse a “provar” que a pessoa vigiada era criminosa, incluindo fotos de álbuns de família e as produzidas pela própria polícia. “Os prontuários têm documentação valiosíssima”, disse Tucci Carneiro.

Se na primeira etapa as fichas foram digitadas e apenas parte do material digitalizado, agora o prontuário poderá ser consultado online na íntegra, facilitando o trabalho de pesquisadores.
O material já rendeu muitas dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de livros, como A Imprensa Confiscada pelo Deops, 1924-1983, escrito por Tucci Carneiro em coautoria com Boris Kossoy (Ateliê Editorial; Imprensa Oficial e Arquivo do Estado, 2003), que foi premiado com o Jabuti em 2004, na categoria Ciências Humanas. Dois novos inventários estão prestes a ser lançados, sob a organização de Tucci Carneiro:“Panfletos sediciosos” e "É proibido ler: livros e as bibliotecas proibidas".

Agora, o material está sendo disponibilizado na íntegra, mas por partes. Calcula-se que o conteúdo que já está no ar forma 10% do que virá a ser disponibilizado.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

49 anos depois do golpe



Mídia

O Millenium e as lembranças

O Millenium e as lembranças Organização que une empresários, imprensa e oposição ao governo lembra cenário do golpe de 1964. Seu poder de propagar intrigas e más notícias, porém, não tem sido capaz de superar a solidez e os resultados do projeto político em vigor

Por: Lalo Leal 


Publicado em 18/03/2013

Kamel, da Globo, e Serra durante debate eleitoral: mídia conservadora perdeu no campo democrático (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress) 

 
O economista Cristiano Costa foi recebido em fevereiro pelo pessoal do grupo A Tarde, em Salvador. A companhia de comunicação, que tem provedor e portal na internet, agência de notícias, jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus profissionais para servirem-se de uma palestra da série Millenium nas Redações. Blogueiro e professor de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é também colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”.

A base de sua explanação são seus artigos reproduzidos no site do instituto, em que critica duramente a política econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Em um deles, cita o programa Minha Casa, Minha Vida como um dos responsáveis por inflacionar o setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de imóveis de alto padrão dispararam. As pessoas estão mais seguras no emprego e foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter acesso a crédito, ou mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para investir em imóveis. Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal destinado a famílias de baixa renda pagar o pato da especulação.

Outras redações de jornais e revistas foram brindadas pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados, da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”. O currículo dos palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia brasileira.

Há algum tempo os ambientes de redação eram conhecidos por ter profissionais críticos, independentes, e o direcionamento da informação era resultado da sintonia dos editores com os donos dos veículos. Não era incomum a conclusão do jornal ou da revista acabar em atrito entre repórter e superiores. Agora, os donos dos veículos preferem formar “focas” que já cheguem às redações comprometidos com suas crenças.

Essas crenças, recheadas de interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira afinada pelos meios de comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto desse trabalho pôde ser visto neste início de ano. Três assuntos, alardeados como ameaças ao país, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e foram amplificados pelo rádio e pela TV: apagão, inflação e crise na Petrobras.

Além do noticiário parcial, analistas emitiam previsões catastróficas. Como elas não se confirmavam, o assunto era esquecido e logo substituído por outro. No dia 8 de janeiro, o jornal O Estado de S. Paulo estampou na capa: “Governo já vê risco de racionamento de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de S.Paulo Eliane Cantanhêde chamava uma reunião ordinária, agendada desde dezembro, de “reunião de emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico convocada às pressas por Dilma para tratar do risco de racionamento. Diante da constatação de que a reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada correção. Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco do “racionamento” desapareceu.

Pularam para o “descontrole” da política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário. “Especialistas” tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma inflação futura capaz de desestabilizar a economia. Aproveitavam para crucificar o ministro Mantega, artífice de uma política que contraria interesses dos rentistas nacionais e internacionais: a redução dos juros bancários está na raiz da gritaria.

Não satisfeitos, colocaram a Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade administrativa” dos dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos acionistas. Sem considerar que, dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de parte dos dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do país na forma de novos investimentos.

Variações de uma nota só

Aparentemente isoladas, essas versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns que permeiam as pautas dos principais veículos. No site do Instituto Millenium elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz ter como valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, Estado de direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade individual, eficiência e transparência”. Faz lembrar a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que chegou a dizer que só o indivíduo existe, a sociedade é ficção.

Fundado em 2005, o Millenium foi oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes empresas e entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo grupo Gerdau. Trata-se de uma liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e valores e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do país. A elas juntam-se a locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa Statoil, a companhia de papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de mídia que opera no sul do Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não aparece na lista, mas um dos seus donos, João Roberto Marinho, colabora.

Essa integração entre empresas de mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de formular e difundir programas de ação política em larga escala, com maior capacidade de convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição partidária ao governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura.

Apesar do apego declarado à democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de combater o governo de qualquer forma. É o que está explícito na fala de outro de seus colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor, quando num dos eventos promovidos pelo instituto disse: “A questão é: como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?”

Essa articulação faz lembrar a de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), nascido em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora na formulação e divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964.

“Ipes e Ibad não eram apenas instituições que organizaram uma grande conspiração para depor um governo legítimo. Elaboraram um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma série de reformas no Estado para favorecer o grande capital”, lembra o pesquisador Damian Bezerra de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No cenário atual, de decadência do modelo neoliberal e de consolidação de políticas desenvolvimentistas no Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para dar combate a esse processo transformador. “Nos anos 1990 ocorreu a disseminação da ideologia do pensamento único, de que o capitalismo triunfou, o socialismo deixou de existir como projeto político”, lembra a historiadora Carla Luciana da Silva, da Universidade do Oeste do Paraná. “Quando surgem experiências concretas que podem desafiar essas ideias, aparece em sua defesa uma organização como o Millenium para manter vivo o ideal do pensamento único.”
castelo branco A difusão dessas ideias não é feita por meio de manifestos ou programas partidários, como observa a pesquisadora. “É muito difícil pegar uma revista como a Veja ou um jornal como a Folha de S.Paulo e conseguir visualizar os sujeitos que estão produzindo as ideias defendidas ali. Cria- se uma imagem do tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem sujeitos com vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que projeto falam, como se falassem em nome de todos.”
 
***
Memórias de um golpista: Lincoln Gordon com o general Castelo branco: a Cia patrocinou a ação de 1964

 

 Contra as versões, fatos

Conhecendo as ações do instituto e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional. E fica difícil contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas ideias.

Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?

Não é mera coincidência a preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do Brasil aos grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das relações harmônicas entre governos latino-americanos. Trata-se de uma tentativa de ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura que só passou a ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com a posse do governo Lula.

Mas parece não haver espaço para uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a professora Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de relações públicas da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos ganhos da crise política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter forçado análises e estudos em busca de explicações de como o então presidente Lula conseguiu suportar tanta notícia negativa e manter elevados índices de aprovação.

“Não era só carisma. Desde 2003, havia uma gestão de governo em funcionamento. Não existia somente aquilo de que os jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra proposta política estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os avanços sociais alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura institucional. “O Millenium é um agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates, mas não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que chega lá na ponta e inclui quem estava fora.” Damian Melo, da UFF, tem visão semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje estratégia golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via eleitoral mesmo. Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos atentos”.


Colaborou Rodrigo Gomes

***

O Ibad como modelo
Por Mauro Santayana


O Ibad foi a mais descarada forma de intervenção norte-americana no processo político brasileiro, mas não a primeira. No governo Dutra (1946-1951), o grande desembarque econômico norte-americano no Brasil, os ianques agiam com desenvoltura na vida brasileira. Nessa fase, denominada pelo historiador Gerald K. Haines como “americanização do Brasil”, editoriais dos grandes matutinos cariocas chegaram a ser redigidos na Embaixada dos Estados Unidos.

O Ibad nasceu da esperteza de um negocista, Ivan Hasslocher. Ele criou a agência de publicidade Incrementadora de Vendas Promotion para servir como operadora do sistema e levantou milhões de dólares da CIA e de empresas norte-americanas, a fim de eleger parlamentares de direita – já no fim do governo Juscelino, em 1959. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passou a atuar descaradamente.

Clandestinamente, o instituto financiou, com a cumplicidade do deputado de extrema direita João Mendes, a formação de sua própria bancada de parlamentares comprometidos com sua orientação ideológica. O embaixador norte-americano no Brasil naquele período, Lincoln Gordon, confessou, depois, que a CIA fora a principal fonte pagadora de Hasslocher.

Uma CPI foi instalada em 1963 para investigar o instituto, mas não pôde ir adiante. Seus membros mais ativos – Eloy Dutra, José Aparecido de Oliveira, João Dória, Benedito Cerqueira, Bocaiúva Cunha – foram cassados em 1964. Outro membro ativo, Rubens Paiva, seria assassinado pelo DOI-Codi em 1971.

Jango foi corajoso ao suspender as atividades do Ibad duas vezes, por 90 dias, até que a Justiça mandou fechar a instituição. Mas já era tarde. Hasslocher e seus assalariados continuaram a atuar clandestinamente, em associação com o Ipes. O Ibad tinha também em sua folha de pagamentos a jornalistas, sem falar na adesão “gratuita” dos donos dos grandes jornais – com exceção do Última Hora.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Matar = tirar a palavra

Mídia e ditadura: a primeira morte de Jango

 


O atestado de óbito do ex-presidente João Goulart que atribui a sua morte, em 1976, a um ataque cardíaco pode ter a mesma consistência daquele que, durante décadas, afirmou que o jornalista Vladimir Herzog cometera suicídio, atirando-se de uma cadeira numa cela do Dops.

As suspeitas, antigas, no caso de Jango ancoram-se em indícios, sendo o maior deles o mais óbvio.

A desconfiança que lateja há pelo menos uma década, ainda não foi submetida à prova da autópsia, vetada pela ditadura na época.

Há outros sinais.

Um ex-espião uruguaio, Mario Neira Barreiro, denunciou o assassinato no passado. Barreiro não é propriamente um cidadão acima de qualquer suspeita.

Mas ampara suas revelações em detalhes de quem, ao menos, conhecia minuciosamente a rotina de Jango.

A ditadura só permitiu o sepultamento do ex-presidente, em São Borja, a 40 metros do túmulo de Getúlio Vargas, com féretro blindado.

Ainda assim, na última hora, o então ministro do Exército, Sylvio Frota, da extrema direita militar, tentou anular a autorização expedida pela cúpula do governo Geisel.

O caixão lacrado, conduzido em carro a alta velocidade, cruzou a fronteira de Uruguaiana a 120 km por hora, vindo de Mercedes, na Argentina, onde ficava a estância dos Goulart.

Ladeava-o um aparato militar com ordens expressas de não permitir manifestações populares.

Inútil.

Quando chegou à cidade, a população em peso estava nas ruas e cercou o cortejo; o caixão foi conduzido à catedral e daí cruzou São Borja em marcha solene até o cemitério.

'Jango, Jango, Jango!' Gritos guardados no fundo do peito desafiaram a tensão de um enterro vigiado por tropas vindas de vários pontos do Estado.

A obscuridade em torno desse episódio remete a questões de atualidade incontornável.

Uma parte das sombras que pairam sobre este e outros acontecimentos envolvendo a ditadura brasileira deve-se à ambiguidade de quem deveria liderar as investigações.

As relações entre a mídia e ditadura no Brasil nunca foram pautadas pelo distanciamento crítico que rege o olhar do cronista sobre seu objeto.

A história, ressalve-se, não é feita em preto e branco. O cardeal Bergoglio que o diga. Diretores de redações que apoiaram o golpe, em diferentes momentos, estenderam a mão a perseguidos pelo regime militar.

Importa, todavia, avaliar o papel das instituições.

A mídia, enquanto instituição, foi – é – parte interessada no assalto ao poder que interrompeu um governo democrático, suspendeu as liberdades e garantias individuais e censurou a própria liberdade de expressão.

Foi dela a iniciativa de convocar o medo e a mentira e alimentar o linchamento de reputações.

O conjunto foi decisivo para levar uma parte da classe média a apoiar a ação golpista.

E mesmo assim, apenas uma parte.

O acervo do Ibope, catalogado pelo Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, reúne pesquisas de opinião pública feitas às vésperas do golpe.

Os dados, cuidadosamente ocultados pela mídia então, assumem seu real significado cotejados com a atuação do parato midiático, ontem e hoje.

As enquetes levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa, mostram que:

a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%), bom (30%) e regular (24%). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco dos jornais.

b) 49,8% cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição, em 1965 (seu mandato expirava em janeiro de 1966); 41,8% rejeitavam essa opção.

c) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março.


Em um comício que reuniu 150 mil pessoas na Central do Brasil (o país tinha 72 milhões de habitantes) Jango assinou, então, decretos que expropriavam as terras nas margens das rodovias para fins de reforma agrária, bem como nacionalizavam refinarias de petróleo.

As pesquisas sigilosas do Ibope formam apenas o arremate estatístico de um jornalismo que ocultou elementos da equação política, convocou, exortou, manipulou, incentivou e apoiou a derrubada violenta do Presidência da República, em 31 de março de 1964.

Não se deduza disso que a democracia brasileira espelhava a placidez de um lago suíço.

Num certo sentido, vivia-se, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do seguinte.

As reformas de base – a agrária, a urbana, a fiscal, a educacional — visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema econômico exaurido.

O impulso industrializante de Vargas, dos anos 30 a meados dos anos 50, e o do consumo , fomentado por Juscelino, mostravam claros sinais de esgotamento.

Trincas marmorizavam todo tecido social e produtivo.

À vulnerabilidade externa decorrente da frágil capacidade exportadora, sobrepunha-se uma seca de crédito junto ao sistema financeiro internacional.

O déficit público era ascendente; idem, a espiral preços /salários; o PIB anêmico e a inflação de 25% no trimestre pré-golpe completavam a encruzilhada de uma sociedade em transe.

O conjunto tinha como arremate a guerra fria, exacerbada na América Latina pela vitória da revolução cubana, que desde 1959 irradiava uma agenda alternativa de desenvolvimento.

O efeito na vida cotidiana era enervante. Como o seria no Chile, nove anos depois; como o é hoje, em certa medida, na Venezuela do ex-presidente Chávez.

O mercado negro de produtos essenciais testava a paciência dos consumidores. Óleo, trigo, açúcar, carne faltavam ciclicamente nos grandes centros urbanos.

Fruto, em parte, de uma escassez provocada pela sabotagem empresarial.

As reformas progressistas de Jango estavam longe de caracterizar o alvorecer comunista alardeado pelos jornais. Tratava-se de superar entraves e privilégios de uma máquina capitalista entrevada em suas próprias contradições.

Jango pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social, ampliando o acesso à educação e aos direitos no campo.

O que importa reter, como traço de atualidade inescapável, é o comportamento extremado do aparato midiático diante desse projeto.

Convocada a democracia a discutir o passo seguinte da história brasileira, os centuriões da legalidade optaram pelo golpe.

Deram ao escrutínio popular um atestado de incapacidade para formar os grandes consenso, indispensáveis à emergência de um novo ciclo de desenvolvimento.

Jango foi assassinado aí, pela primeira vez,12 anos e oito meses antes de sua morte.

Se o fizeram, de novo, em setembro de 1976, cabe averiguar de uma vez por todas.

Mas, sobretudo, parece claro que o tema das relações entre mídia e ditadura não pode mais se restringir aos bastidores das comissões da verdade.

Não há revanchismo nessa agenda.

Pauta-a a necessidade de dotar a democracia das salvaguardas de memória, pluralidade e participação social, que a preservem de uma recaída da intolerância, como a de 1964, que subtraiu à sociedade a prerrogativa de decidir o seu próprio destino.

Os que derrubaram Jango festejaram seu feito em editoriais gordurosos de cinismo.

O de "O Globo, veiculado pela família Marinho, dois dias depois do golpe, expõe um ponto de vista que consagra um método.

A julgar pela experiência recente, não se pode dizer que caiu em desuso.

Leia abaixo, o editorial de “O Globo” de 02 de abril de 1964:


Ressurge a Democracia


' Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.

Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.

Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.

Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.

Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.

As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, “são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI.”

No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.

Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.

Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.

A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.

Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”

domingo, 17 de março de 2013

Mulheres, memória e fala pública

Direitos Humanos| 17/03/2013 | Copyleft

Ditadura na Amazônia – memória de uma mulher da frente de batalha

A professora de Ciência Política da Universidade Federal do Pará Hecilda Veiga foi presa e torturada nos quartéis do regime quando estava grávida de cinco meses. Ela havia ajudado a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos e militado no PCdoB e na Ação Popular. “Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos”, admite. Agora, ela conta sua história.

Belém – O estafe político ideológico estadunidense exerceu papel decisivo no século passado no processo de instalação de estados de exceção em países da América Latina. No continente a Argentina passa a limpo o período ditatorial, e puniu e continua a julgar os responsáveis pela violação de direitos humanos.

No dia 12 de março deste ano condenou à prisão perpétua Reynaldo Bignone, o último presidente da ditadura militar (1976-1983). O ex-presidente foi condenado por crimes contra a humanidade cometidos no centro clandestino Campo de Mayo. Junto com Bignone irão cumprir a mesma pena os ex-militares Omar Riveros, Luis Sadi, Eduardo Oscar Corrado e Carlos Tomás Macedra.

O Chile tenta fazer o mesmo caminho, mas tem enfrentado resistência. O Brasil instalou em maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com vistas a apurar no prazo de dois anos as violações dos direitos humanos no período da ditadura civil militar (1964-1985). E, como no Chile, há situações de tensões, a exemplo do atentado a bomba ocorrido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do estado do Rio de Janeiro, no dia 07.

A Guerrilha do Araguaia, ocorrida no fim dos anos 1960 e nos anos iniciais de 1970, no sudeste do Pará e norte do Tocantins (antigo território de Goiás), com abrangência até o oeste do Maranhão é o caso mais significativo na Amazônia. O episódio foi protagonizado por militantes do PC do B. Um Grupo de Trabalho (GT) foi constituído dentro da CNV para investigar o caso. Cláudio Fonteles, José Carlos Dias e a psicanalista Maria Rita Khel são os responsáveis pelas investigações, enquanto Pedro Pontual e Vivien Ishaq os encarregados pela pesquisa.

Entre os militares o major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) desponta como o de maior visibilidade na repressão aos guerrilheiros e simpatizantes locais ao movimento e religiosos alinhados à Teologia da Libertação da região, entre eles o padre Roberto de Valicourt. Helenira Rezende de Souza Nazareth, Luisa Augusta Garlippe, Maria Lucia Petit da Silva e Suely Yuniko Kanayama, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha foram algumas das mulheres do PC do B tombaram em combate com o Exército.

Amazônia integrada
O contexto político, econômico e social é conhecido como integração da Amazônia ao resto do país. Naquele momento, em 1971, o decreto de nº 1.164 federalizou 100 km das terras consideradas devolutas das rodovias federais em construção e as projetadas. A militarização da Amazônia engendrou um mundo de quartéis na região.

Polos de produção baseados em madeira, pecuária e mineração regiam o cenário econômico, que buscou incrementar a instalação de empresas do Centro Sul do país a partir de uma política de incentivos fiscais, o braço civil do regime, sem falar na grande mídia e setores da Igreja Católica, em particular Dom Alberto Ramos, arcebispo de Belém da época, e responsável por artigos contra os comunistas no jornal ‘Voz de Nazaré’. O acreano tenente coronel Jarbas Passarinho, ex-governador do Estado e ex- ministro é considerado um personagem central da condução da ditadura no estado, e o responsável pela deposição do governador Aurélio do Carmo, que será homenageado numa cerimônia na Assembleia Legislativa no dia 18. Ironia? Passarinho é conterrâneo do ambientalista Chico Mendes. Ambos nasceram na mesma cidade, Xapuri.

CNV no Pará
No Pará as atividades da CNV iniciaram em agosto do ano passado com a realização de uma audiência pública em Belém, e outra na região do Araguaia. Em novembro do ano passado e no começo deste ocorreram visitas de campo à região no sudeste do Pará para ouvir camponeses e indígenas Suruí. Na ocasião foi criada a Associação de Torturados na Guerrilha do Araguaia (Atga). Paulo Fontelles Junior, ex-vereador pelo PC do B em Belém é um dos membros da CNV no estado. O ativista é filho do ex-deputado estadual e advogado Paulo Fontelles e da professora Hecilda Veiga. Ambos militaram em defesa dos direitos humanos.

Hecilda Veiga – uma das mulheres no fronte
Ela tem pouco mais de um metro e meio. Corpo franzino e cabelos ralos. O físico frágil não a impediu de integrar um grupo de ativistas em defesa dos direitos humanos em Belém, capital do Pará, no período conhecido como de exceção na história política brasileira (1964-1985). O raciocínio articulado que recompõe com entusiasmo fatos históricos, ganha forma a partir de uma voz suave.

Ao lado de outras mulheres como Marga Rothe, Eneida Guimarães, Rosaly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, Isabel Cunha, a professora do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hecilda Mary Ferreira Veiga ajudou a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), e militou no PC do B e na Ação Popular (AP). Num instante em que o PCdoB e a AP rivalizavam a hegemonia da esquerda com o PCB.

Além de Hecilda e seus pares mais próximos, é conhecida na história do Pará a atuação do ex-deputado e escritor Benedito Monteiro, o professor e escritor Joao de Jesus Paes Loureiro, Cláudio Barradas, Ronaldo e Ruy Barata e Raimundo Jinkings contra o regime. A pessoa que se depara com a educadora nos corredores da UFPA não imagina as agruras que a mesma passou nos cárceres durante a ditadura militar.

“Eu acho que meu coração ainda é de estudante, como diz a música de Milton Nascimento.” Assim a professora começa a narrar a experiência que viveu durante o período da ditatura civil militar. Antes, tira da bolsa um lenço branco decorado nas bordas com pequenas flores coloridas. Põe em seu colo, lugar mais acessível às mãos, que livres poderá usá-lo caso precise.
O narrar da história se faz a partir da construção de fatos. É um desenrolar de lembranças de homens, mulheres e crianças que fazem parte desse enredo, mas o que se observa é que o protagonista da memória oficial, ao longo de muito tempo, teve um narrador, a figura masculina.

Elas não são de Atenas
“Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. A música de Chico Buarque, em tom irônico, demonstra como a sociedade define o papel da mulher. Ao longo dos tempos, elas foram relegadas ao anonimato e ao esquecimento, o que se observa em um dos episódios mais recentes e brutais da história brasileira.

Mulheres que transgrediram a ordem e o progresso ditado pelo governo foram torturadas. Por serem mulheres, as torturas tinham o objetivo de degradar a alma feminina. O corpo nu ficou à mercê do torturador, as humilhações, a violência psicológica e sexual não pouparam mães, freiras, jovens, nem mesmo grávidas.

Sim, grávidas. Foi o caso da paraense Hecilda Veiga. “Quando fui presa, minha barriguinha de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à Delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer.”

O testemunho está no livro “Luta, substantivo feminino”. A obra faz parte do relatório “Direito à memória e à verdade”, realizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres. Nele, há histórias de vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditatura militar e o testemunho de 27 sobreviventes que narram com coragem os horrores que sofreram nos porões da ditatura.

Hecilda Veiga lutou contra o regime juntamente com seu esposo Paulo Fontelles, assassinado em 11 de junho de 1987, a mando da União Democrática Ruralista (UDR). Paulo, nessa época, advogava as causas camponesas e estava à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no sul do Pará.

Marido e mulher eram militantes na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O casal foi para Brasília, onde ficaria mais próximo dos acontecimentos políticos. Ela estudava Ciências Sociais, ele Direito na Universidade de Brasília (Unb). Mas, em outubro de 1971, foram presos. Neste ano, começou a história de coragem e luta pela dignidade humana não só de Hecilda, mas de muitas Marias, Anas, Lúcias, Teresas...

Naquele momento havia um interesse e curiosidade em tudo que acontecia. Havia uma atmosfera contra as condições coloniais em vários cantos do mundo, e pela ampliação dos direitos civis. Havia substância. Preocupava-se com um caminho para uma revolução brasileira. Em Brasília causava estranheza para o pessoal que a gente da Amazônia conhecesse a última canção do Chico Buarque. Os debates eram candentes e acalorados. Tive dificuldades em voltar para a universidade depois da experiência do cárcere. As coisas que sofri e vi foram terríveis.

1971 – prisão em Brasília
“Fomos convidados pela direção do partido para ajudar a oxigenar a luta. Morávamos na própria universidade, num alojamento destinado a casais. Não tardou, eu e o Paulo assumimos a condição de lideranças para reavivar os centros acadêmicos livres. As medidas encaminhadas pelo professor Darci Ribeiro haviam sido refreadas, e parte do quadro de professores demitida, e outra seguiu para o exílio no exterior” rememora Veiga.

A professora pondera que em Belém ocorria uma gravitação de pessoas em torno da Faculdade de Ciências e Letras da UFPA, e que havia uma série de representações estudantis em Belém que agitavam a mobilização em oposição do regime. “A Escola Paes de Carvalho tinha tradição de pessoas articuladas, entre elas recordo da Zélia Amador, Cristóvão, Pipira (Medicina), Mauro Brasil, Ubiratan Barbosa. Promoveram ocupações de alguns prédios públicos aqui em Belém em protesto contra a violência da ditadura. Neste momento recuperamos o Centro popular de Cultura (CPC),” recorda.

Sobre a prisão e tortura, em relato publicizado na internet, a professora narra que:
“Fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.

Noutro momento ilustra que “Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à 'tortura cientifica', numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.”

“As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei, encerra Hecilda.”

Lenço branco
Contar o que foi 1968 faz parte da memória coletiva. Enfrentar o passado é o primeiro passo para que a sociedade entenda os fatos ocorridos e, assim, não permita que crimes contra a humanidade voltem a acontecer, argumenta Hecilda.

“Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos. Mas eu acho que é preciso que a gente conte tudo isso para que não se repita mais. Poxa, quantas vidas interrompidas! A vida de uma geração. Até hoje fico muito comovida quando ouço a música 'Coração de estudante': ‘Podaram seus momentos, desfiaram seus destinos’. A sensação que eu tenho até hoje é essa, de que eu estou correndo contra o tempo, por que eu tive a minha vida acadêmica interrompida. Eu concluí meu curso depois de 15 anos. E, apesar disso, eu ainda posso dizer ‘ah, eu sobrevivi’, mas quantos outros não sobreviveram?”

Hecilda Veiga hoje é professora de Ciência Política na UFPA, local em que, por coincidência ou não, iniciou a carreira de militante antes de ir a Brasília, em 1968. Como ela, muitas mulheres lutaram e buscaram um país mais justo para todos os brasileiros, especialmente para as mulheres.

Hoje, ela conta sua história. Outras tiveram destinos parecidos, como Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da “Casa da Morte”, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. E, ainda, outras tiveram suas vidas interrompidas durante um dos momentos mais obscuros da história brasileira, como a sindicalista rural Margarida Maria Alves, morta em 1983 na Paraíba por pistoleiros, a mando de fazendeiros da região.

O que tiramos de tudo isso? Que os direitos das mulheres no Brasil foram conquistados em meio à luta, à dor e resistência e, em muitos casos, sob julgo e morte. O que moveu essas mulheres? O espírito de transformação, da indignação ante a barbárie e a injustiça. E de todas essas histórias ficará o ensinamento da professora Hecilda: é preciso contar sempre, para que episódios como esses nunca mais se repitam. Ao final, a professora devolveu o lenço à bolsa. Não precisou usá-lo.

*Lilian Campelo é jornalista; Rogério Almeida é autor do livro Pororoca pequena – marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de Cá\2012 e anima o blog Furo. Entrevista: Lilian Campelo e Luena Barros (jornalistas) Dilermano Gadelha (estudante de jornalismo da UFPA).