Paulo Kliass
25/02/2013
Fonte:
ARede
As propostas de grupos como o Wikileaks e as ações mais recentes de
Julian Assange, a partir do asilo concedido na Embaixada do Equador em
Londres, recolocam no centro do debate político internacional questões
essenciais que relacionam economia, poder e informática, nestes tempos
de mudanças profundas nos padrões tecnológicos e culturais da sociedade
contemporânea. A era da emergência das chamadas tecnologias da
informação e comunicação (TICs).
No Brasil, o movimento pela democratização das condições de “ciência,
tecnologia e inovação” encontra um espaço importante no movimento para
disseminação do software livre. Afinal, convenhamos que é mesmo um
absurdo ficarmos, todos nós, reféns das vontades e dos interesses de um
punhado de poderosas mega-empresas da tecnologia virtual. É o caso da
Microsoft e similares, que ganham fortunas apenas com os direitos
autorais e de propriedade de seus programas, os chamados produtos
software e aplicativos. Isso sem contar o enorme faturamento obtido
também com a produção de máquinas e equipamentos, os produtos hardware.
Usam e abusam de sua imensa influência para impedir o surgimento de
outros caminhos. Escondem a 7 chaves os segredos de sua linguagem e de
seus códigos, as fontes de seu poder no mercado e na sociedade.
Independência frente aos grandes grupos
Em razão
desse tipo de constrangimento, é crescente o movimento de constituição
de alternativas que não dependam desse tipo de amarração jurídica e
financeira aos grandes grupos. Por todos os continentes são
constituídos, a todo momento, grupos formais e comunidades informais de
pesquisadores, profissionais e demais interessados, cujo objetivo é
criar e oferecer, para toda a sociedade, o livre acesso aos mesmos tipos
de programas de informática sem a necessidade de remunerar
monetariamente direitos autorais ou de propriedade. São os chamados
“free software”. Pra além do não pagamento, a idéia de “free” deve ser
associada à liberdade para os usuários dominarem e abrirem a “caixa
preta” dos sistemas. Com isso, os mesmos poderiam ser aperfeiçoados e
reproduzidos de forma generalizada. O objetivo maior sendo a
democratização do acesso e do uso dos programas.
No entanto, para que essa alternativa se viabilize e seja aceita de
forma ampla, dentre os inúmeros universos de usuários existentes, é
essencial que tais iniciativas contem com o apoio do Estado, por meio da
formulação e implementação de políticas públicas para o setor. Afinal,
as medidas estratégicas visando a universalização da inclusão digital
deveriam incorporar a noção implícita de que o direito ao acesso ao
mundo virtual é condição fundamental do exercício pleno da cidadania.
Apoio do Estado e políticas públicas
O apoio da
Administração Pública pode vir sob diversas formas. A primeira delas é
por meio de políticas de incentivo e financiamento ao desenvolvimento de
software livre, tanto nas universidades e nos centros de pesquisa,
quanto nos grupos informais e comunidades de ativistas. Com isso,
contribuindo para criar massa crítica e para tornar permanente a
formação de profissionais com esse perfil. Em segundo lugar, o Estado
pode atuar de forma mais incisiva ao estabelecer que suas necessidades e
solicitações de produtos e serviços de informática sejam direcionadas
para o software livre. Com isso, ficaria assegurada uma demanda
significativa para esse tipo de alternativa de programas e os orçamentos
da União, dos estados e dos municípios deixariam de ser onerados pelos
encargos com pagamento de direitos às grandes empresas de TICs. Em
terceiro lugar, o Estado deve constituir fundos de financiamento
específicos para o desenvolvimento desse tipo de programa, com o
objetivo de disseminar sua utilização e oferecer condições de pesquisa e
empreendedorismo para todos que desejem atuar com esse tipo de projeto.
Finalmente, cabe aos órgãos governamentais exercer de forma mais
incisiva seu papel de regulamentador e fiscalizador das condições de
concorrência no mercado, para evitar as conhecidas práticas sob a forma
de cartel ou abuso de poder econômico.
Ascensão e queda no governo Lula
Como se pode
perceber a tarefa é árdua e as oportunidades políticas não podem ser
desperdiçadas. Assim, o processo da vitória de Lula nas eleições
presidenciais e o início de seu mandato em 2003 foram vistos pelas
entidades, grupos e indivíduos que atuavam na área como o grande momento
para colocar o processo em marcha e transformar o sonho em realidade. O
lema generalizado era: “Sim, é possível!”. Durante os primeiros anos de
governo houve até mesmo um esboço de incentivo à ampliação do uso do
software livre e de sua propagação como política pública federal.
Diversos grupos de trabalho foram constituídos para implementação de
medidas em áreas como: i) inclusão e acesso digitais; ii) aprofundamento
da estratégia do governo eletrônico; e iii) universalização da produção
e acesso ao software livre, dentro e fora dos órgãos governamentais.
Porém, a força das empresas do setor não esperou muito para se
manifestar. E, pouco a pouco, os poderosos das TICs foram reconquistando
o terreno, articulando junto a políticos influentes no Executivo e
reforçando seu “lobby” junto ao Legislativo. O objetivo central era
minar, ainda no nascedouro, essa chamada “aventura irresponsável” do
software livre. Apesar de perder força no interior do governo, a
iniciativa ainda se mantinha acesa na esfera de poder da Presidência da
República. Tanto que o próprio Lula assinou, em 2005, a apresentação de
uma importante diretiva para que o software livre fosse adotado como
regra para o uso das políticas de informática no interior da
Administração Pública.
O documento “Guia Livre: Referência de Migração para Software Livre
do Governo Federal” estabelece uma estratégia para completar um processo
que teve início logo no início do governo: romper a dependência
tecnológica e financeira em relação aos grandes grupos. O texto assinado
pelo Presidente não poderia ser mais claro a respeito de um engajamento
com tal opção de política pública:
“Nos últimos três anos, implementamos uma forte política de
independência tecnológica, de fortalecimento da pesquisa em computação
de alto desempenho, de inclusão digital e de adoção do software livre.
Elementos que compõem uma política industrial e uma estratégia de
desenvolvimento nacional para esse setor.”
O texto de Lula refletia, com toda a certeza, o pensamento e a
vontade da maioria dos integrantes de sua equipe de governo a respeito
do assunto até o ano de 2005. O software livre era encarado como
política pública e merecia o tratamento de prioridade. Vejamos outro
trecho carregado de recados e significados:
“Quero agradecer a todos os que defendem o software livre e lutam
pelo aprofundamento e ampliação dos direitos de cidadania em todo o
mundo. As potencialidades e os desafios das novas tecnologias da
informação têm cada vez mais importância para o efetivo exercício desses
direitos. Em nosso ponto de vista, o acesso a esses avanços
tecnológicos deve ser direito de todos e não privilégio de poucos. Por
isso, o governo federal tem intensificado o diálogo democrático com a
sociedade e tratado o software livre e a inclusão digital como política
pública prioritária. Entre os resultados desse diálogo estão programas
importantes em curso no País.” (grifo nosso)
Apesar dessa diretriz inequívoca, a questão do software livre foi,
pouco a pouco, perdendo espaço na pauta de governo. O jogo de pressão
das grandes empresas terminou por vencer a disputa, pois os dirigentes
políticos não tiveram a coragem necessária para levar à frente esse
importante projeto. O roteiro foi muito semelhante ao do que ocorreu com
a submissão aos interesses dos banqueiros e do financismo, aos
interesses das empreiteiras e das construtoras, aos interesses dos
representantes do agronegócio e do latifúndio, aos interesses das
empresas de telecomunicações e aos interesses dos grandes meios de
comunicação. Neste caso, em particular, o governo terminou cedendo aos
interesses dos grandes grupos de TICs. Tudo em nome da suposta
necessidade de governabilidade. Tudo plenamente justificado pela busca
de um modelo de realismo e pragmatismo políticos, que sempre termina por
distorcer o sentido primeiro da conquista do poder: a transformação
social.
Urgência em retomar o tema e o potencial do Brasil
O
Brasil tem uma história recente que confirma seu potencial para
alavancar um setor de computação competente e eficaz. Isso vem desde a
antiga política nacional de informática, quando se pretendia desenvolver
um setor nacional, com incentivos fiscais e estímulo governamental.
Apesar dos problemas apresentados por tal estratégia, o fato é que o
ingresso nos anos 1990, a adoção do receituário neoliberal e o mito da
globalização acabaram por inviabilizar tal opção. Quando Collor
escancarou de forma generosa e irresponsável o mercado brasileiro à
concorrência internacional, não havia meios de resistir.
E, apesar da enorme pressão contra tudo o que fosse público, mesmo no
interior da administração do Estado sempre houve ilhas excelência para
desenvolvimento de programas e processos na área de informática. Era o
exemplo do CPQD na Telebrás, antes de sua privatização. Ou então o caso
do SERPRO, ainda operando para o governo federal no âmbito do Ministério
da Fazenda. Isso significa que, caso o setor público venha a confirmar
sua demanda por esse tipo de serviço, a sociedade brasileira pode criar
as condições para sua implementação. O que falta, porém, é uma garantia
de continuidade na política pública e o estímulo para que as novas
gerações de profissionais e usuários sejam educadas e formadas em
ambiente favorável ao uso do software livre.
Para além da questão da economia de recursos do orçamento - aspecto
que não deve ser negligenciado de forma nenhuma, a política pública de
software livre carrega consigo a noção de inclusão digital, de política
industrial e de estratégia de desenvolvimento nacional. O
desenvolvimento de capacitação econômica e profissional no setor de TICs
internamente é essencial para um projeto de País. Um território de
dimensões continentais como nosso, uma sociedade complexa como a
brasileira, uma população tão numerosa como a que atingimos e uma
estrutura econômica tão diversa e dispersa como a que temos não podem
prescindir de uma política de tecnologia de comunicação e informação
também autônoma, e que seja adaptada e voltada para os nossos problemas e
desafios.
O monitoramento da Amazônia verde, o acompanhamento da Amazônia azul
(o Oceano Atlântico de 200 milhas por quase 8.000 km de costas), os
desdobramentos do Pré-Sal, o monitoramento das situações de riscos, os
mecanismos de defesa de nossas fronteiras e tantos outros itens vitais
não podem ser deixados para tratamento pelas grandes empresas do setor.
Na verdade, trata-se de afirmar um desejo e uma necessidade de
independência tecnológica e de soberania nacional. A política de
software livre é tão somente a ponta do iceberg de um conjunto mais
amplo de medidas para que o Brasil tenha condições de enfrentar de forma
competente e robusta os desafios desse mundo cada vez mais multipolar.
A institucionalidade da Presidência da República ainda manteve a
estrutura responsável por esse tipo de ação, o Instituto Nacional de
Tecnologia da Informação. O governo possui até mesmo um Plano Plurianual
para o setor. Mas o quadro atual é muito distante daquele descrito por
Lula há 7 anos atrás. Uma das evidências mais carregadas de simbolismo é
que a página específica da internet parece que parou no tempo. É
necessário que o governo se dê conta da importância do tema e recupere o
espaço perdido, recolocando o software livre como prioridade em sua
agenda. Para tanto, é essencial que lembremos, a todo instante, à equipe
de Dilma Rousseff sobre a natureza estratégica dessa política pública:
não se esqueçam jamais do software livre!
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
complemento imperdível: entrevista recente de Assange "concedida na embaixada do Equador no Reino Unido,
Julian Assange fala sobre seu novo livro, que está sendo publicado no
Brasil, e analisa o atual momento da mídia mundial. 'O abuso que grandes
corporações midiáticas fazem de seu poder de mercado é um problema. Nos
meios de comunicação, a transparência, a responsabilidade informativa e
a diversidade são cruciais. Uma das maneiras de lidar com isso é abrir o
jogo para que haja um incremento massivo de meios de comunicação no
mercado', defende.