Pra pensar - a sério - sobre o funcionamento discursivo.
Profetas do pânico: os grupos que patrocinam a campanha anticopa
Antonio Lassance
Existe
uma campanha orquestrada contra a Copa do Mundo no Brasil. A torcida
para que as coisas deem errado é pequena, mas é barulhenta e até agora
tem sido muito bem sucedida em queimar o filme do evento.
Tiveram,
para isso, uma mãozinha de alguns governos, como o do estado do Paraná e
da prefeitura de Curitiba, que deram o pior de todos exemplos ao
abandonarem seus compromissos com as obras da Arena da Baixada,
praticamente comprometida como sede.
A arrogância e o elitismo
dos cartolas da Fifa também ajudaram. Aliás, a velha palavra “cartola”
permanece a mais perfeita designação da arrogância e do elitismo de
muitos dirigentes de futebol do mundo inteiro.
Mas a campanha anticopa não seria nada sem o bombardeio de informação podre patrocinado pelos profetas do pânico.
O
objetivo desses falsos profetas não é prever nada, mas incendiar a
opinião pública contra tudo e contra todos, inclusive contra o bom
senso.
Afinal, nada melhor do que o pânico para se assassinar o bom senso.
Como conseguiram azedar o clima da Copa do Mundo no Brasil
O
grande problema é quando os profetas do pânico levam consigo muita
gente que não é nem virulenta, nem violenta, mas que acaba entrando no
clima de replicar desinformações, disseminar raiva e ódio e incutir, em
si mesmas, a descrença sobre a capacidade do Brasil de dar conta do
recado.
Isso azedou o clima. Pela primeira vez em todas as copas,
a principal preocupação do brasileiro não é se a nossa seleção irá
ganhar ou perder a competição.
A campanha anticopa foi tão forte
e, reconheçamos, tão eficiente que provocou algo estranho. Um clima
esquisito se alastrou e, justo quando a Copa é no Brasil, até agora não
apareceu aquela sensação que, por aqui, sempre foi equivalente à do
Carnaval.
Se depender desses Panicopas (os profetas do pânico na Copa), essa será a mais triste de todas as copas.
“Hello!”: já fizemos uma copa antes
Até
hoje, os países que recebem uma Copa tornam-se, por um ano, os maiores
entusiastas do evento. Foi assim, inclusive, no Brasil, em 1950.
Sediamos o mundial com muito menos condições do que temos agora.
Aquela
Copa nos deixou três grandes legados. O primeiro foi o Maracanã, o
maior estádio do mundo – que só ficou pronto faltando poucos dias para o
início dos jogos.
O segundo, graças à derrota para o Uruguai
(“El Maracanazo”), foi o eterno medo que muitos brasileiros têm de que
as coisas saiam errado no final e de o Brasil dar vexame diante do mundo
- o que Nélson Rodrigues apelidou de “complexo de vira-latas”, a ideia
de que o brasileiro nasceu para perder, para errar, para sofrer.
O
terceiro legado, inestimável, foi a associação cada vez mais profunda
entre o futebol e a imagem do país. O futebol continua sendo o principal
cartão de visitas do Brasil – imbatível nesse aspecto.
O
cartunista Henfil, quando foi à China, em 1977, foi recebido com
sorrisos no rosto e com a única palavra que os chineses sabiam do
Português: “Pelé” (está no livro “Henfil na China”, de 1978).
O
valor dessa imagem para o Brasil, se for calculada em campanhas
publicitárias para se gerar o mesmo efeito, vale uma centena de
Maracanãs.
Desinformação #1: o dinheiro da Copa vai ser gasto em estádios e em jogos de futebol, e isso não é importante
O pior sobre a Copa é a desinformação. É da desinformação que se alimenta o festival de besteiras que são ditas contra a Copa.
Não
conheço uma única pessoa que fale dos gastos da Copa e saiba dizer
quanto isso custará para o Brasil. Ou, pelo menos, quanto custarão só os
estádios. Ou que tenha visto uma planilha de gastos da copa.
A “Copa” vai consumir quase 26 bilhões de reais.
A construção de estádios (8 bi) é cerca de 30% desse valor.
Cerca de 70% dos gastos da Copa não são em estádios, mas em infraestrutura, serviços e formação de mão de obra.
Os gastos com mobilidade urbana praticamente empatam com o dos estádios.
O
gastos em aeroportos (6,7 bi), somados ao que será investido pela
iniciativa privada (2,8 bi até 2014) é maior que o gasto com estádios.
O
ministério que teve o maior crescimento do volume de recursos, de 2012
para 2013, não foi o dos Esportes (que cuida da Copa), mas sim a
Secretaria da Aviação Civil (que cuida de aeroportos).
Quase 2 bi serão gastos em segurança pública, formação de mão de obra e outros serviços.
Ou
seja, o maior gasto da Copa não é em estádios. Quem acha o contrário
está desinformado e, provavelmente, desinformando outras pessoas.
Desinformação #2: se deu mais atenção à Copa do que a questões mais importantes
Os
atrasos nas obras pelo menos serviram para mostrar que a organização do
evento não está isenta de problemas que afetam também outras áreas. De
todo modo, não dá para se dizer que a organização da Copa teve mais
colher de chá que outras áreas.
Certamente, os recursos a serem
gastos em estádios seriam úteis a outras áreas. Mas se os problemas do
Brasil pudessem ser resolvidos com 8 bi, já teriam sido.
Em 2013, os recursos destinados à educação e à saúde cresceram. Em 2014, vão crescer de novo.
Portanto,
o Brasil não irá gastar menos com saúde e educação por causa da Copa.
Ao contrário, vai gastar mais. Não por causa da Copa, mas
independentemente dela.
No que se refere à segurança pública, também haverá mais recursos para a área. Aqui, uma das razões é, sim, a Copa.
Dados
como esses estão disponíveis na proposta orçamentária enviada pelo
Executivo e aprovada pelo Congresso (nas referências ao final está
indicado onde encontrar mais detalhes).
Se alguém quiser ajudar
de verdade a melhorar a saúde e a educação do país, ao invés de
protestar contra a Copa, o alvo certo é lutar pela aprovação do Plano
Nacional de Educação, pelo cumprimento do piso salarial nacional dos
professores, pela fixação de percentuais mais elevados e progressivos de
financiamento público para a saúde e pela regulação mais firme sobre os
planos de saúde.
Se quiserem lutar contra a corrupção, sugiro
protestos em frente às instâncias do Poder Judiciário, que andam
deixando prescrever crimes sem o devido julgamento, e rolezinhos diante
das sedes do Ministério Público em alguns estados, que andam com as
gavetas cheias de processos, sem dar a eles qualquer andamento.
Marchar
em frente aos estádios, quebrar orelhões públicos e pichar veículos em
concessionárias não tem nada a ver com lutar pela saúde e pela educação.
Os
estádios, que foram malhados como Judas e tratados como ícones do
desperdício, geraram, até a Copa das Confederações, 24,5 mil empregos
diretos. Alto lá quando alguém falar que isso não é importante.
Será
que o raciocínio contra os estádios vale para a também para a Praça da
Apoteose e para todos os monumentos de Niemeyer? Vale para a estátua do
Cristo Redentor? Vale para as igrejas de Ouro Preto e Mariana?
Havia
coisas mais importantes a serem feitas no Brasil, antes desses
monumentos extraordinários. Mas o que não foi feito de importante deixou
de ser feito porque construíram o bondinho do Pão-de-Açúcar?
Até
mesmo para o futebol, o jogo e o estádio são, para dizer a verdade, um
detalhe menos importante. No fundo, estádios e jogos são apenas formas
para se juntar as pessoas. Isso sim é muito importante. Mais do que
alguns imaginam.
Desinformação #3: O Brasil não está preparado para sediar o mundial e vai passar vexame
Se o Brasil deu conta da Copa do Mundo em 1950, por que não daria conta agora?
Se realizou a Copa das Confederações no ano passado, por que não daria conta da Copa do Mundo?
Se
recebeu muito mais gente na Jornada Mundial da Juventude, em uma só
cidade, porque teria dificuldades para receber um evento com menos
turistas, e espalhados em mais de uma cidade?
O Brasil não vai
dar vexame, quando o assunto for segurança, nem diante da Alemanha, que
se viu rendida quando dos atentados terroristas em Munique, nos Jogos
Olímpicos de Verão de 1972; nem diante dos Estados Unidos, que sofreu
atentados na Maratona Internacional de Boston, no ano passado.
O
Brasil não vai dar vexame diante da Itália, quando o assunto for a
maneira como tratamos estrangeiros, sejam eles europeus, americanos ou
africanos.
O Brasil não vai dar vexame diante da Inglaterra e da
França, quando o assunto for racismo no futebol. Ninguém vai jogar
bananas para nenhum jogador, a não ser que haja um Panicopa no meio da
torcida.
O Brasil não vai dar vexame diante da Rússia, quando o assunto for respeito à diversidade e combate à homofobia.
O
Brasil não vai dar vexame diante de ninguém quando o assunto for
manifestações populares, desde que os governadores de cada estado
convençam seus comandantes da PM a usarem a inteligência antes do spray
de pimenta e a evitar a farra das balas de borracha.
Podem
ocorrer problemas? Podem. Certamente ocorrerão. Eles ocorrem todos os
dias. Por que na Copa seria diferente? A grande questão não é se haverá
problemas. É de que forma nós, brasileiros, iremos lidar com tais
problemas.
Desinformação #4: os turistas estrangeiros estão com medo de vir ao Brasil
De
tanto medo do Brasil, o turismo para o Brasil cresceu 5,6% em 2013,
acima da média mundial. Foi um recorde histórico (a última maior marca
havia sido em 2005).
Recebemos mais de 6 milhões de estrangeiros. Em 2014, só a Copa deve trazer meio milhão de pessoas.
De
quebra, o Brasil ainda foi colocado em primeiro lugar entre os melhores
países para se visitar em 2014, conforme o prestigiado guia turístico
Lonely Planet (“Best in Travel 2014”, citado nas referências ao final).
Adivinhe qual uma das principais razões para a sugestão? Pois é, a Copa.
Desinformação #5: a Copa é uma forma de enganar o povo e desviá-lo de seus reais problemas
O Brasil tem de problemas que não foram causados e nem serão resolvidos pela Copa.
O
Brasil tem futebol sem precisar, para isso, fazer uma copa do mundo. E a
maioria assiste aos jogos da seleção sem ir a estádios.
Quem
quiser torcer contra o Brasil que torça. Há quem não goste de futebol, é
um direito a ser respeitado. Mas daí querer dar ares de “visão crítica”
é piada.
Desinformação #6: muitas coisas não ficarão prontas antes da Copa, o que é um grave problema
É
verdade, muitas coisas não ficarão prontas antes da Copa, mas isso não é
um grave problema. Tem até um nome: chama-se “legado”.
Mas, além do legado em infraestrutura para o país, a Copa provocou um outro, imaterial, mas que pode fazer uma boa diferença.
Trata-se
da medida provisória enviada por Dilma e aprovada pelo Congresso
(entrará em vigor em abril deste ano), que limita o tempo de mandato de
dirigentes esportivos.
A lei ainda obrigará as entidades (não
apenas de futebol) a fazer o que nunca fizeram: prestar contas, em meios
eletrônicos, sobre dados econômicos e financeiros, contratos,
patrocínios, direitos de imagem e outros aspectos de gestão. Os atletas
também terão direito a voto e participação na direção. Seria bom se o
aclamado Barcelona, de Neymar, fizesse o mesmo.
Estresse de 2013 virou o jogo contra a Copa
Foi
o estresse de 2013 que virou o jogo contra a Copa. Principalmente
quando aos protestos se misturaram os críticos mascarados e os
descarados.
Os mascarados acompanharam os protestos de perto e
neles pegaram carona, quebrando e botando fogo. Os descarados ficaram
bem de longe, noticiando o que não viam e nem ouviam; dando cartaz ao
que não tinha cartaz; fingindo dublar a “voz das ruas”, enquanto as ruas
hostilizavam as emissoras, os jornalões, as revistinhas e até as
coitadas das bancas.
O fato é que um sentimento estranho tomou
conta dos brasileiros. Diferentemente de outras copas, o que mais as
pessoas querem hoje saber não é a data dos jogos, nem os grupos, nem a
escalação dos times de cada seleção.
A maioria quer saber se o país irá funcionar bem e se terá paz durante a competição. Estranho.
É
quase um termômetro, ou um teste do grau de envenenamento a que uma
pessoa está acometida. Pergunte a alguém sobre a Copa e ouça se ela fala
dos jogos ou de algo que tenha a ver com medo. Assim se descobre se ela
está empolgada ou se sentou em uma flecha envenenada deixada por um
profeta do apocalipse.
Todo mundo em pânico: esse filme de comédia a gente já viu
Funciona
assim: os profetas do pânico rogam uma praga e marcam a data para a
tragédia acontecer. E esperam para ver o que acontece. Se algo
“previsto” não acontece, não tem problema. A intenção era só disseminar o
pânico e o baixo astral mesmo.
O que diziam os profetas do pânico sobre o Brasil em 2013? Entre outras coisas:
Que estávamos à beira de um sério apagão elétrico.
Que o Brasil não conseguiria cumprir sua meta de inflação e nem de superávit primário.
Que o preço dos alimentos estava fora de controle.
Que não se conseguiria aprontar todos os estádios para a Copa das Confederações.
O
apagão não veio e as termelétricas foram desligadas antes do previsto. A
inflação ficou dentro da meta. A inflação de alimentos retrocedeu.
Todos os estádios previstos para a Copa das Confederações foram
entregues.
Essas foram as profecias de 2013. Todas furadas.
Cada
ano tem suas previsões malditas mais badaladas. Em 2007 e 2008, a mesma
turma do pânico dizia que o Brasil estava tendo uma grande epidemia de
febre amarela. Acabou morrendo mais gente de overdose de vacina do que
de febre amarela, graças aos profetas do pânico.
Em 2009 e 2010,
os agourentos diziam que o Brasil não estava preparado para enfrentar a
gripe aviária e nem a gripe “suína”, o H1N1. Segundo esses especialistas
em catástrofes, os brasileiros não tinham competência nem estrutura
para lidar com um problema daquele tamanho. Soa parecido com o discurso
anticopa, não?
O cataclismo do H1N1 seria gravíssimo. Os videntes
falavam aos quatro cantos que não se poderia pegar ônibus, metrô ou
trem, tal o contágio. Não se poderia ir à escola, ao trabalho, ao
supermercado. Resultado? Não houve epidemia de coisa alguma.
Mas
os profetas do pânico não se dão por vencidos. Eles são insistentes (e
chatos também). Quando uma de suas profecias furadas não acontece, eles
simplesmente adiam a data do juízo final, ou trocam de praga.
Agora,
atenção todos, o próximo fim do mundo é a Copa. “Imagina na Copa” é o
slogan. E há muita gente boa que não só reproduz tal slogan como perde
seu tempo e sua paciência acreditando nisso, pela enésima vez.
Para enfrentar o pessoal que é ruim da cabeça ou doente do pé
O pânico é a bomba criada pelos covardes e pulhas para abater os incautos, os ingênuos e os desinformados.
Só
existe um antídoto para se enfrentar os profetas do pânico. É combater a
desinformação com dados, argumentos e, sobretudo, bom senso, a
principal vítima da campanha contra a Copa.
Informação é para ser usada. É para se fazer o enfrentamento do debate. Na escola, no trabalho, na família, na mesa de bar.
É
preciso que cada um seja mais veemente, mais incisivo e mais altivo que
os profetas do pânico. Eles gostam de falar grosso? Vamos ver como se
comportam se forem jogados contra a parede, desmascarados por uma
informação que desmonta sua desinformação.
As pessoas precisam
tomar consciência de que deixar uma informação errada e uma opinião
maldosa se disseminar é como jogar lixo na rua.
Deixar envenenar o ambiente não é um bom caminho para melhorar o país.
A
essa altura do campeonato, faltando poucos meses para a abertura do
evento, já não se trata mais de Fifa. É do Brasil que estamos falando.
É
claro que as informações deste texto só fazem sentido para aqueles para
quem as palavras “Brasil” e “brasileiros” significam alguma coisa.
Há
quem por aqui nasceu, mas não nutre qualquer sentimento nacional,
qualquer brasilidade; sequer acreditam que isso existe. Paciência. São
os que pensam diferente que têm que mostrar que isso existe sim.
Ter
orgulho do país e torcer para que as coisas deem certo não deve ser
confundido com compactuar com as mazelas que persistem e precisam ser
superadas. É simplesmente tentar colocar cada coisa em seu lugar.
Uma
das maneiras de se colocar as coisas no lugar é desmascarar
oportunistas que querem usar da pregação anticopa para atingir objetivos
que nunca foram o de melhorar o país.
O pior dessa campanha fúnebre não é a tentativa de se desmoralizar governos, mas a tentativa de desmoralizar o Brasil.
É
preciso enfrentar, confrontar e vencer esse debate. É preciso mostrar
que esse pessoal que é profeta do pânico é ruim da cabeça ou doente do
pé.
(*) Antonio Lassance é doutor em Ciência Política e torcedor da Seleção Brasileira de Futebol desde sempre.
Mais sobre o assunto:
A Controladoria Geral da União atualiza a planilha com todos os gastos previstos para a Copa, os já realizados e os por realizar, em seu portal:
Os dados do orçamento da União estão disponíveis na proposta orçamentária enviada pelo Executivo e aprovada pelo Congresso.
O “Best in Travel 2014”, da Lonely Planet, pode ser conferido aqui.
Sobre copa e anticopa, vale a pena ler o texto do Flávio Aguiar, “Copa e anti-copa”, aqui na Carta Maior:
Sobre o catastrofismo, também do Flávio Aguiar: “Reveses e contrariedades para a direita”, na Carta Maior.
Sobre os protestos de junho e a estratégia da mídia, leiam o texto do prof. Emir Sader, "Primeiras reflexões".
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domingo, 26 de janeiro de 2014
O perigo da desinformação e o rumor público de máscara "crítica"
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domingo, 23 de setembro de 2012
Discursivizações sobre a ditadura militar no Brasil: quem diz o quê, como, onde?
Direitos Humanos| 20/09/2012 | Copyleft

“Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada”, diz Hildegard Angel
Em entrevista, Hildegard Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart, conta um pouco de sua luta para preservar e honrar a memória de sua família. Além disso, fala sobre a Lei da Anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira. "Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país".
Especial para Carta Maior
Ela, que começou a sua carreira como atriz nos anos 1970, posteriormente se tornou jornalista e conquistou o posto de uma das maiores colunistas sociais do país. Hoje ela se dedica a um blog, cujos temas predominantes são moda e comportamento, e pretende inaugurar em breve um museu com vários documentos de sua família, guardados ao longo de anos.
Também fundadora do Instituto Zuzu Angel, Hildegard nunca foi militante como seu irmão. “As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso”, explica quando questionada se nunca pensou em juntar-se ao movimento de oposição ao governo. “O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus”, complementa, emocionando-se ao relembrar a história de combate de sua família.
Hilde, como é chamada pelos mais próximos, tira de sua trajetória posicionamentos precisos sobre a Lei da anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira, fazendo jus à frase com que se descreve em seu Twitter: “Vocês me conhecem. Sou aquela que pode não ter a melhor opinião, pode não ter a sua opinião, mas tem opinião!”. A partir de suas falas, que desvelam alguns episódios importantes desse período ainda nebuloso da história do nosso país, é possível conhecer um pouco mais quem é essa mulher chamada Hildegard Angel.
Antes de se dedicar ao jornalismo, a senhora teve uma carreira como atriz. Numa outra entrevista, a senhora declarou que queria ser a Joana D’Arc dos palcos, enquanto que o seu irmão queria ser a Joana D’Arc da vida real. Como foi esse seu início profissional? Ser a Joana D’Arc dos palcos também implicava alguns riscos, alguma exposição?
E ele foi, né? Ele foi a Joana D’Arc da vida real (risos).
Mas acabou que nos anos 1970, com o teatro engajado, houve uma exposição, sim. Eu, por exemplo, fiz algum teatro engajado, com o Grupo Oficina. O último espetáculo deles, em 1973, chamado Gracias, Señor, dirigido pelo Zé Celso Marinez Corrêa, foi uma peça engajada importante da qual eu participei. Ela era assistida toda noite pelo DOPS. Era um espetáculo longo, muito improvisado também. Havia riscos naquela época, que era época da censura, né? Houve também um risco também para as pessoas de teatro que tinham uma militância. Eu não fui uma militante, né? Eu fiz a militância por acaso em alguns espetáculos como esse.
A senhora nunca pensou em se juntar ao movimento de oposição ao governo?
Eu não tinha a estrutura ideológica do meu irmão. Eu sempre respeitei muito o embasamento ideológico e intelectual do meu irmão. Seria muito fácil para mim e até muito honroso pegar, empunhar e desfraldar a bandeira da esquerda brasileira. E seria também muito proveitoso para mim naquela época se eu tivesse tomado essa iniciativa. Mas eu sempre encarei de uma maneira muito séria e com muita responsabilidade e respeito a luta do meu irmão. Eu ficava muito envergonhada de ver pessoas vestirem de uma maneira até festiva o uniforme, a roupa, as vestimentas da militância sem terem conteúdo ideológico, apenas pelas vantagens que poderiam advir dessa proximidade com os nossos heróis. As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso. Eu sempre respeitei muito a luta legítima de quem fez por onde. Eu sempre considerei um atrevimento ver jornalistas, artistas, pessoas de comunicação sem conteúdo ideológico, mas com bom jogo de cintura, se aproveitarem do sangue, da luta, da ideologia, do conteúdo, da ingenuidade, da boa fé dos nossos jovens para tirar partido disso, para construir suas carreiras na base do oportunismo. Eu sempre tive esse pudor. Nunca quis.
O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus. Foi, em todos os momentos da minha vida, jamais negar-lhes todas as homenagens, desde o primeiro momento. Meu irmão e minha mãe são e foram as personalidades daquele momento político brasileiro mais homenageadas até hoje. Até durante a ditadura foram inauguradas ruas, praças escolas, exposições com os nomes deles. As pessoas ficavam até boquiabertas de isso acontecer porque ninguém tinha peito de fazer isso. E com meu olhar até singelo, meu jeito ingênuo – podem considerar até sonso –, eu fazia isso. Talvez as pessoas achassem que eu fosse amorfa porque eu não oferecia perigo. E eu fazia isso. Eu mantive a memória dos meus viva, respeitada, homenageada, e essa foi a minha maneira de prestar a minha homenagem, de fazer o meu bom combate e de manter essa luta e essa memória vivas para que esses fatos não se repetissem.
E a senhora fundou também o Instituto Zuzu Angel, uma forma de preservar a história da sua mãe...
Foi a primeira ONG de moda no país, ou seja, uma sociedade civil sem fins lucrativos, lembrando a memória de Zuzu, lembrando a sua luta e a luta do Stuart. Eu lembro que naqueles anos em que todos rasgavam documentos, jogavam fora qualquer coisa que os comprometesse, eu guardei tudo, tudo o que se possa imaginar: na minha casa, nas minhas costas, nas minhas malas, nos meus baús, nas minhas gavetas. Nunca tive medo. E hoje nós temos um conteúdo sensacional de documentos. Hoje nós estamos tentando levantar um museu aqui no Rio de Janeiro com a Secretaria de Estado. Se Deus quiser nós conseguiremos. Porque, você sabe, essas coisas de governo a gente nunca sabe, né? Várias promessas, vários governos sucessivamente... Nunca sabemos se será levado adiante. Uma hora dizem uma coisa, noutra hora outra. Eu quero ver pronto! Já estou cansada de promessas!
Mas eu tive a coragem de manter esse acervo sob as minhas asas numa época em que as pessoas tinham medo. Eu nunca me vangloriei da luta do meu irmão, da minha mãe e da minha cunhada porque é essa luta pertenceu a eles.
Que imagem a senhora acredita que o Brasil tenha da luta deles?
Acho que o Brasil tem a imagem de que os nossos jovens lutaram e de que os nossos políticos da época se omitiram. Os políticos da época, que podiam estar lá fora falando sobre isso, se omitiram.
Não me esqueço quando minha mãe, que era uma juscelinista de boa cepa, convicta, encontrou-se com o Juscelino numa festa onde estava toda a high society do Rio de Janeiro e lhe disse: “Você poderia ter denunciado as mortes, mas você se calou. Você teria recursos para falar na imprensa internacional das torturas. Eu não lhe perdoo, Juscelino Kubitschek!” E enfiou o dedo no nariz dele. Na ocasião, disseram: “Zuzu, você está louca! Fica calma!”.
Ela estava dizendo a verdade. No ano de 1976, foi aquela lavada geral, aquela limpeza diária: mataram a Zuzu, mataram o Juscelino, mataram o Carlos Lacerda, mataram o Jango. Porque ninguém me tira da cabeça que as mortes de Getúlio, Jango e Juscelino também fizeram parte dessa ação articulada. No Brasil, iniciava-se o processo de abertura e eles teriam que limpar a área para que tudo começasse zero-quilômetro, para que não ficasse resíduo, qualquer voz que pudesse se levantar para incomodá-los.
Mas, quando foi dada a voz às famílias desses antigos políticos para falar a respeito na época da Comissão dos Desaparecidos, elas não quiseram investigar. Elas negaram que os seus familiares tivessem sido mortos, talvez por receio, porque não acreditassem ou porque não tivessem a ideia de que elas estavam roubando a memória de seus familiares quando lhes sonegavam o direito do reconhecimento de um assassinato político.
A senhora apoiou a Dilma nas eleições presidenciais de 2010. Agora, no seu governo, finalmente foi instalada a Comissão da Verdade. O que a senhora espera dessa Comissão?
O assassinato da Zuzu foi reconhecido vinte e dois anos depois. Não foi no governo da Dilma, eu tenho que reconhecer. Foi no governo Fernando Henrique, quando o seu ministro, José Gregory, criou a Comissão dos Desparecidos Políticos. Foi feito um processo bem longo, em que houve recurso. O assassinato da mamãe foi reconhecido em segunda instância porque surgiram testemunhas oculares. Então não foi a presidenta Dilma. Mas eu acho que tudo anda muito vagarosamente.
Eu acho que a anistia foi a anistia que foi possível na época. Eu apoiei e o Brasil inteiro apoiou a anistia porque foi a anistia possível. Eu apoiei aquela abertura porque foi a abertura possível; aquele momento porque foi o momento possível, porque foi o momento em que não houve confronto, não houve novas vítimas, não houve sangue, não houve dor. Eu apoiei, sim, aquele momento porque foi um momento sem mortes. É muito importante que o Brasil lembre que nós tivemos uma passagem para a democracia sem mortes. Para quem já sofreu tantas mortes, como eu já havia sofrido, não queria mais em nome da política que houvesse mortes. Os nossos jovens, que já estavam velhos, retornaram ao Brasil, de todos os países, sequiosos para isso, sedentos para isso. E nós aqui esperançosos para isso. Então eu achava importante que a nossa passagem tivesse sido sem mortes.
E a senhora espera que seja feita a justiça com a Comissão da Verdade?
Eu espero que seja feita, mas eu acho tudo muito lento e eu fico muito cansada. Eu espero que sim. Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada. Você veja, esse livro (Memórias de uma guerra suja) em que é apontado o possível assassino da minha mãe... Por que eles não elucidam logo esse assassinato, quem foi o assassino? Que ela foi assassinada todos já sabemos. Por que eles não identificam logo, não abrem logo esse processo? Você vê que as famílias têm que ficar o tempo todo sofrendo esse martírio. Eu fico cansada.
Como a senhora acha que as novas gerações lidam com a política?
Se não forem as novas gerações, o que será de nós? As velhas gerações estão muito mais preocupadas com elas mesmas do que com o nosso passado. Graças a Deus temos as novas gerações.
A senhora acredita que o Brasil lide bem com o seu passado?
Eu acho que o Brasil lida bem com o passado na medida em que as novas gerações estão preocupadas com esse passado. Com a idade, as pessoas vão se acomodando, as pessoas vão perdendo seus postos de poder, a sua voz, a sua influência. E as pessoas também vão se revelando, né?
Pessoas que antes pareciam engajadas, preocupadas em esclarecer fatos, hoje se situam praticamente à direita e estão mais preocupadas em satisfazer seus patrões da mídia de direita do que esclarecer pontos importantes do nosso passado de esquerda.
Os filmes que falam sobre essa época da ditadura, como o filme do Sérgio Rezende que foi feito sobre a sua mãe, podem ajudar a resgatar esse passado?
A cultura está fazendo essa revolução. A cultura está fazendo essa denúncia. A cultura está prestando um grande serviço a essa luta brasileira, a esse resgate. Acho que há movimentos importantes também. O “Tortura Nunca Mais” de hoje é um movimento muito importante.
Hoje se discute e se faz com bastante frequência política na internet, em blogs e em redes sociais. O que a senhora pensa a esse respeito?
Redes sociais são importantes, mas eu vejo que há uma certa casta superior do jornalismo que se identifica como jornalismo de primeira linha, de primeiro grupo. É um jornalismo totalmente comprometido com seus patrões, que não está muito preocupado com nada, não...
A senhora acha que nós vivemos numa liberdade de expressão plena hoje?
Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país, que estão restritos a uma única opinião, refletindo os interesses de um pequeno grupo de empresários poderosos...
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
Os discursos que sustentam as práticas, e as práticas que sustentam os discursos
18/02/2012
Fonte: Blog do Emir
A lógica da loucura

(Shakespeare, Hamlet)
Entrevistas como a do ex-ditador argentino Jorge Videla à revista espanhola Cambio 16, expressam momentos de sinceridade em que se reproduzem, de forma precisa, a lógica que levou aos regimes de terror que imperaram no cone sul latino-americano há poucas décadas.
Olhada desde agora, tudo parece uma loucura, da qual todos tratam de se distanciar, como se fosse expressão da loucura de alguns, que precisa ser reduzida ao passado e a alguns personagens particulares, uma parte dos quais processada e condenada. Teria sido “um momento ruim”, do qual os países teriam virado a página. Esquecer o passado, curar as feridas, voltar-se para o futuro – essa a proposta dos que protagonizaram aquele “loucura”.
Por isso incomoda muito quando algum daqueles personagens que dirigiram, com representação deles, os regimes de terror, retomam a lógica que os uniu. A leitura da entrevista do Videla é muito saudável, porque reproduz a mesma lógica do bloco que se formou para dar o golpe e deu sustentação à ditadura militar. Bastaria mudar alguns nomes e circunstâncias concretas, para que se tivesse um documento adequado ao que aconteceu no Brasil. É o discurso que sobrevive em setores militares e civis saudosos dos tempos do terror contra a democracia e contra o povo. Escutemos o que disse Videla.
“Na Argentina não há justiça, mas vingança, que é algo bem distinto.” “Houve uma assimetria total no tratamento das duas partes enfrentadas no conflito. Fomos acusados como responsáveis, simplesmente, de acontecimentos que não fomos nós que desencadeamos.”
Desqualificação da Justiça, como revanchismo, para o que eles tem que aparecer como salvadores providenciais de um pais à beira do abismo, com “vazio de poder”, dominado pelo caos. A Justiça os trataria de forma desigual, porque assumem agora a teoria dos “dois demônios”, dos dois bandos em guerra, buscando descaracterizar que foram os agentes do golpe militar, da ruptura da democracia e da instauração de uma ditadura do terror.
Relata Videla que o principal dirigente da oposição, Ricardo Balbin, do Partido Radical, lhe telefonava para incentivar que dessem o golpe. Nada diferente da UDN no Brasil e da Democracia Crista de Eduardo Frei no Chile.
“Os empresários também colaboraram e cooperaram conosco. Nosso próprio ministro da Economia, Alfredo Martinez de Hoz, era um homem conhecido da comunidade de empresários da Argentina e havia um bom entendimento e contato com eles".
“A Igreja cumpriu com o seu dever, foi prudente...” “Minha relação com a Igreja foi excelente, mantivemos uma relação muito cordial, sincera e aberta. Tinhamos inclusive aos capelães castrenses assistindo-nos e nunca se rompeu esta relação de colaboração e amizade.”
No Brasil a Igreja Católica participou ativamente na mobilização para o golpe militar, com o qual romperia e teria papel muito importante na denuncia e na resistência à ditadura. Na Argentina, ao contrário, a Igreja continuou apoiando a ditadura, a ponto de mandarem capelães participarem dos vôos da morte, quando duas vezes por semana eram jogados ao mar presos políticos.
“Foi um erro nosso aceitar e manter o termo de desaparecidos digamos como algo nebuloso; em toda guerra há mortos , feridos, aleijados e desaparecidos , isto é, gente que não se sabe onde está. Isto é assim em toda guerra. Em qualquer circunstância do combate, aberto ou fechado, se produzem vitimas. Para nós foi cômodo então aceitar o termo de desaparecido, encobridor de outras realidades (sic), mas foi um erro pelo que ainda estamos pagando e sofrendo muitos de nós. É um problema que pesa sobre nós e não podemos livrar-nos dele. Agora já e’ tarde para mudar essa realidade. O problema é que não se sabe onde está o desaparecido, não temos resposta a essa questão. No entanto já sabemos quem morreu e em que circunstâncias. Tambem mais ou menos quantos morreram, aí cada um que invente suas cifras.”
Essa a lógica da loucura das ditaduras militares, dos regimes militares, que uniu às elites dos países do cone sul, dirigidos pela alta oficialidade das FFAA, congrengando grandes empresários, donos das grandes empresas dos meios de comunicação, com apoio dos EUA. Esse o discurso que os uniu, expresso de forma fria e articulada.
Postado por Emir Sader às 20:15
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