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terça-feira, 28 de julho de 2015

Imaginários são condicionados e condicionam

Medida de redução da velocidade em SP atinge "zeitgeist" do carro e das marginais

Há algo além do ódio político-partidário no verdadeiro “freak out” dos motoristas paulistanos e grande mídia contra a medida de redução a velocidades das marginais Tietê e Pinheiros em São Paulo. Parece que a Prefeitura atingiu o coração ideológico e imaginário das verdadeiras “pièce de résistance” do enclave conservador em que se tornou a cidade: o automóvel e as marginais. No automóvel, a representação da velocidade como o último símbolo de distinção e poder; e nas marginais, os tristes portais de entrada na cidade que representam uma modernidade fracassada na qual ainda os paulistanos nostalgicamente se agarram.

FREAK OUT!!! Talvez essa expressão em inglês  (alguma coisa entre “surtar”, “baratinar” ou “perder o bom senso”) seja a que melhor sintetize a reação de motoristas paulistanos com a determinação da prefeitura da cidade de São Paulo em reduzir a velocidade máxima nas vias expressas, centrais e locais das marginas dos rios Tietê e Pinheiros – de 90 km/h para 70km/h ou até 50 km/h dependendo do local.

Reações indignadas nas redes sociais postam vídeos com ciclistas ultrapassando automóveis nas marginais: “quando bicicletas terão placas e restrição de velocidade?”, protestam. Nas viciadas enquetes dos telejornais da grande mídia, selecionam comentários como “vai travar o trânsito”, “vai piorar o trânsito”, “vou perder tempo” e assim por diante – como se diariamente as principais vias da cidade já não estivessem costumeiramente travadas, obrigando motoristas a andarem a menos de 20 km/h.


E como determina o modus operandi atual do neoconservadorismo, exige-se o “retorno da ordem” por meio de ações judiciais: a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), seccional de São Paulo, entrou na Justiça contra a Prefeitura com uma petição com argumentos tão subjetivos como na ação contra a construção das ciclovias na cidade: “direito de transporte prejudicado”, “medida não proporcional” (?) ou “uma via que foi concebida para ser expressa não pode deixar de ser expressa”.

Se em todas as metrópoles do mundo civilizado é adotada o princípio de “acalmar o trânsito” como filosofia de engenharia de tráfego (redução de velocidade, estreitamento das vias, cobrança por pedágios para entrar nas regiões centrais como medidas para desestimular o transporte motorizado individual),  em São Paulo, ao contrário, essas medidas são tomadas como uma afronta (bolivariana?) ao inalienável direito individual.



Há algo nessa reação dos paulistanos que vai além do simples ódio político-partidário. Parece que a medida adotada pela Prefeitura diante do crescente número de acidentes e mortes nas pistas das marginais atinge o coração da ideologia e do imaginário da classe média paulistana: o automóvel, a pièce de résistance do verdadeiro enclave conservador em que se tornou a cidade.

O neodesenvolvimentismo dos governos petistas dos últimos dez anos já estava irritando o suficiente as classes médias, com o crescimento do crédito e incentivos fiscais resultando em aeroportos lotados, shoppings ameaçados por “rolezinhos” e a facilidade de aquisição de carros novos em concessionárias outrora somente frequentadas por pessoas “de posse”.

Mas, no caso da cidade de São Paulo, tudo ultrapassou os limites com essa medida de engenharia de tráfego: atingiu o próprio cerne do imaginário automobilístico, para além da propriedade – a velocidade, o fetiche de modernidade das classes médias. E também maculou as marginais Tietê e Pinheiros, verdadeiros símbolos de uma modernização fracassada, mas na qual ainda os paulistanos se agarram nostalgicamente.

O “zeitgeist” do automóvel


Um carro sedan com linhas arrojadas passa rápido por um rua vazia pelo Centro de São Paulo. O asfalto está molhado, refletindo e destacando ainda mais o brilho da aerodinâmica do veículo. Um motorista confiante e orgulhoso com rosto quadrado e másculo aprecia o prazer de guiar em ruas vazias. As imagens do carro transmitem estabilidade, segurança, rapidez e potencia.

Quantos comerciais de TV de lançamento de automóvel de uma marca qualquer, com um argumento parecido, o leitor já deve ter visto? Esse é a narrativa proto-arquetípica que promove não apenas o automóvel, mas o seu “zeitgeist”: a velocidade.



Mas não a velocidade tradicional – aquela que diminui a distância entre todos os pontos de partida e chegada. Mas a velocidade “dromológica”, o imperativo psicológico de consumir a velocidade apenas como um signo, já que no mundo real as vias estão congestionadas e as estradas monitoradas por radares.

O urbanista e pensador francês Paul Virilio chama esse tipo de velocidade de “dromológica” - um novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. O conceito vem do grego “dromo” (corrida), mas para Virilio é um tipo de velocidade paradoxalmente inercial porque é tomada como um fim em si mesma, como moralmente boa, significante do desejo, capacidade, superioridade, performance, inteligência e energia libidinal. Não é mais um meio para se chegar a algum fim, mas gozo em si mesma.

Com o colapso dos sistemas viários, o carro é consumido em sua virtualidade e potencialidade – símbolo fálico de potencia, virilidade e distinção. Potencialidade nunca realizada (onde acelerar de zero a cem em “x” segundos?), mas consumida como o grande AGORA! – desejo de urgência, imediatismo, ansiedade como algo moralmente bom.

Redução da velocidade como medida de uma política pública somente poderá ser percebida como uma afronta a um princípio sagrado numa sociedade de consumo onde se consome cada vez menos produtos e muito mais ideias e valores: não se trata mais de distinção de classe da propriedade do carro, mas da sobrevivência do mito da velocidade – sem isso, o carro reduz-se a sua materialidade e, por fim, a sua inutilidade.

A modernidade fracassada das marginais


Mas além do carro e o seu zeitgeist, há outro símbolo em jogo: as marginais Tietê e Pinheiros.

A retificação do rio Tietê na década de 1930 e o Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia e o rodoviarismo de uma cidade pensada em ser urbanizada a partir de perimetrais, radiais e marginais, transformam as vias expressas Tietê e Pinheiros nos símbolos de uma modernidade jamais realizada.

Play Center na Marginal Tietê nos anos 1970 - a nossa Disneylândia no símbolo da modernidade fracassada

Não é à toa que são os verdadeiros tristes portais de entrada para a cidade, desde uma época onde nas suas laterais começaram a surgir os primeiros hipermercados (ícones do american way of life), a inauguração do Playcenter (emulando uma Disneylândia para a nova classe média que nascia com o "milagre econômico" da ditadura militar) e toda uma infraestrutura para carros (motéis, modernos postos de gasolina, drive-throughs, drive-ins etc.).

Até o final do século passado, esse imaginário ainda persistia em setores das classes médias, visível com a promoção de festas de casamento em churrascarias à beira das marginais.

Rachas nas madrugadas com carros tunados na marginais com filhos dessa mesma classe média são ainda um dos ícones do simbolismo dessas chamadas “vias expressas” no imaginário social.

A inauguração com pompa e circunstância da ponte Otávio Frias (a chamada “Ponte Estaiada, verdadeira bomba sincromística – sobre isso clique aqui) ligando as margens do Rio Pinheiros e a sua transformação, juntamente com a Marginal Pinheiros, em cenário para o estúdio dos telejornais locais da TV Globo, demonstram o quanto ainda as marginais significam, mais de 50 anos depois do prefeito Prestes Maia. Isso sem falar que nas marginais também estão os prédios do jornal O Estado de São Paulo e da Editora Abril.

Marginal Pinheiros e Ponte Estaiada - a modernidade televisiva como farsa
Mas se no passado as modernidades das marginais foram uma tragédia (problemas ambientais da ocupação das várzeas e retificação de um rio de planície como o Tietê, poluição e deterioração urbana) hoje é vivido como farsa – chamar ainda de “via expressa” pistas saturadas e ainda, em nome disso, tentar reverter uma tendência global de renovação urbana.

Tudo isso talvez explique o verdadeiro freak out de muitos paulistanos: enquanto no Exterior medidas como essas da redução de velocidade são saudadas como civilizatórias, aqui são interpretadas como atos de regimes totalitários.
Se não, como ficariam os comerciais de TV de lançamentos de carros que patrocinam telejornais da TV Globo que figuram como cenário a Marginal Pinheiros com filas de carros parados ao vivo?

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Jamais fomos modernos?! Ainda bem...

Entrevista – Bruno Latour

Publicado em 31 de março de 2010
Para o antropólogo francês, os brasileiros são os mais preparados para a criação de novas disciplinas e novas coletividades
Marcelo Fiorini

Com a publicação de sua obra Jamais Fomos Modernos em 1994, Bruno Latour tornou-se célebre em muitos países do mundo quase que instantaneamente. Mas não na França, onde seu pensamento demorou para ser aceito e só começou a ganhar espaço graças ao impacto e à acolhida que seus livros tiveram entre a antropologia da atualidade. Nesse livro, Latour retraça a história ideológica do desenvolvimento da “razão ocidental” e a crítica como uma ilusão que jamais chegou a penetrar mesmo nas práticas mais centrais ou nos espaços mais conceituados da cultura euro-americana. Para Latour, esse desenvolvimento da “razão ocidental” leva à depuração da cultura a que chamamos de modernidade. Novo iconoclasta do pensamento na França, híbrido de sociólogo, filósofo e antropólogo, inovador polêmico, educador transdisciplinar, ao se conversar com Latour fica-nos a nítida impressão de que estamos diante de um pensador que representa hoje uma grande corrente filosófica do futuro, que estará em voga talvez daqui a 20 ou 30 anos.

Mas Latour nos mostra também que esse futuro já estava lá em nosso passado. Um dos aspectos mais surpreendentes de seu pensamento é de fato sua maneira de abordar o passado e a chamada “periferia” da denominada civilização “ocidental”, que ele considera uma aberração. Latour mostra como os “centros” de propagação dessa cultura, que são representados pelos laboratórios de ciências hoje em dia, são semelhantes ao que a própria ciência considera periférico e exótico. Para Latour, são os que se consideram modernos que são exóticos, e o Brasil nunca foi realmente moderno, pois nosso país (felizmente) pulou esse retrocesso, cuja expressão maior hoje em dia são os fundamentalismos orientais e ocidentais, espelhos monstruosos de si mesmos. Questionando persuasões filosóficas inteiras de Descartes à sociologia moderna, passando por Émile Durkheim, Karl Marx ou a filosofia analítica, impugnando divisões artificiais que, segundo ele, levaram à separação entre a natureza e a cultura, do inato e do aprendido, além da distinção entre as coisas e os objetos, Latour estende suas análises prático-teóricas à filosofia, à economia, à ecologia, à política. Para Latour, o que é importante nas ciências sociais agora é se interessar pela questão da produção das instituições que permitem a criação das coletividades e das associações que se desenvolvem no mundo de hoje, que não mais tem relação com a que antes chamamos de natureza e sociedade.

Como passamos a maior parte do tempo na história da filosofia, da sociologia, da antropologia, ou mesmo em todas as ciências sociais, a traduzir o que encontramos nos termos de uma ideologia que nada veio nos explicar, um paradigma assimétrico que apenas traduz os termos de uma cultura nos termos de outra, Latour acredita que o campo das investigações hoje em dia começa a abrir para pesquisas mais híbridas que irão realmente transformar as nossas persuasões e disciplinas. Esse processo, para Latour, já está acontecendo, é preciso apenas tirar nossas “lentes de contato” para vê-lo. É preciso também que reconheçamos os meios para refazer um mundo no qual possamos coabitar com outros seres, o que, segundo Latour, os brasileiros estão mais preparados para fazer do que os franceses.

CULT – Um de seus trabalhos mais conhecidos no Brasil é o livro Jamais fomos modernos. Qual é a relação desse livro com a antropologia ?
Bruno Latour - Em primeiro lugar, a tese desse livro não faz muito sentido ao se falar no Brasil, porque os brasileiros nunca foram modernos. Foram sempre, de uma certa forma, pós-modernos. Este livro foi traduzido em 25 línguas e teve um impacto bastante diverso nos países em que foi publicado. Na França, por exemplo, seu impacto não foi muito grande. O que quis fazer foi uma antropologia daqueles que são chamados “modernos”. A distância que tomamos normalmente na antropologia quando nós nos afastamos de nossa cultura para estudar uma outra, por exemplo, para conviver com pessoas com quem não convivemos geralmente, é equivalente neste livro a uma tomada de distância interior, um distanciamento diante da história do chamado “mundo ocidental” nos últimos 300 anos, para mostrar como algo se passou durante este período, algo ligado à atividade científica e técnica, mas que não tem nada a ver com o que se diz ter acontecido.

CULT – O modernismo seria então uma invenção exótica?
BL - Eu diria que esse livro procurou lutar contra o equivalente do exotismo nas sociedades que se denominam modernas, o que se pode chamar de “ocidentalismo”. Assim como há um orientalismo para o Oriente, como definiu-o Edward Said, há um exotismo de nós mesmos, quero dizer, da Europa ou da Euro-América. É isso que está ligado à ideia de uma antropologia. Fazíamos a antropologia dos outros, mas não a antropologia de nós mesmos, com exceção das margens, dos aspectos marginais de nossa sociedade, do que sobreviveu: da magia, das festas, da sociabilidade. Mas jamais fazíamos a antropologia do centro que constitui nossas atividades. Eu mesmo aprendi antropologia com excelentes antropólogos na África negra, e quando retornei à Europa, fiquei surpreso com essa assimetria. Quando nós fazemos antropologia (no exterior de nossa cultura), estudamos coisas que nos parecem realmente centrais para as comunidades nas quais passamos a viver. Mas, quando retornamos aos europeus ou aos euro-americanos, pensamos que a antropologia se refere somente à parte marginal. Tudo isso mudou muito. Esse livro foi escrito há 20 anos. Hoje em dia, muitas vezes os antropólogos não mais podem fazer uma pesquisa de campo em outra sociedade, em outros países, pois o acesso a essas áreas tem sido progressivamente restrito ou fechado (é o caso praticamente de toda a África e do Meio Oriente; o que nos resta de fato é apenas a América Latina e talvez uma parte da Ásia). Isso tem redefinido a antropologia como uma reflexão também sobre o centro da sociedade dita moderna, de forma que hoje em dia, essa ideia já se tornou banal, ao passo que na época que escrevi meu livro não era bem assim.

CULT - Qual é a tese desse livro e por que que ele é sub-intitulado como “ensaio de antropologia simétrica”? Isso foi uma ideia original, ou algo desenvolvido a partir do trabalho de outros autores?
BL - Há a controvérsia entre a tese que considera que nós fomos modernos e a tese que não, e tudo repousa sobre uma teoria da ciência. Esse era o problema da área de estudo na qual eu continuo a trabalhar: a science studies, que faz uma antropologia das ciências. É a ideia também do meu livro. Jamais fomos modernos fez talvez, e estranhamente, muito sucesso mesmo se sua tese não foi ainda muito testada empiricamente. Quanto ao termo “simétrico” provavelmente já existia. De toda forma, ele é bastante comum, poderia se dizer também, no lugar de “antropologia simétrica”, antropologia “equilibrada” ou mesmo “equitável”. Eu escolhi “simétrica” por causa da conotação desse termo na área de estudos das ciências (science studies). Ele implica também uma simetria entre a ciência e a não ciência, ou a ciência ligada ao problema da história das ciências. Mas abandonei o termo “simétrica”, pois ele tem o inconveniente de supor que, quando fazemos essa simetria, guardamos os dois elementos que opomos, por exemplo, a natureza e a cultura.

CULT – O senhor pode nos explicar sua teoria sobre a rede de atores e como ela se diferencia da sociologia tradicional como uma nova forma de sociologia?
BL - “A rede de atores” é algo que desenvolvemos, meus colegas e eu, por razões simplesmente práticas. A explicação sociológica das atividades científicas que nos é fornecida não nos leva a lugar nenhum. Portanto, depois de muito tentarmos explicar as coisas socialmente, nos apercebemos que a falta estava na própria teoria social implícita na sociologia tradicional, de Durkheim. Se não conseguíamos jamais explicar a ciência é porque a ciência não é, ela mesma, social, no sentido de que suas coletividades estão cheias de falhas. Ao invés disso, a sociologia que utilizamos pode descrever suas associações. Nós denominamos de “rede de atores” essa sociologia alternativa à sociologia durkheimiana, e depois a colocamos sob a rubrica de Gabriel Tarde, pois muitas dessas ideias já haviam sido desenvolvidas por Tarde há mais de 100 anos, sem que antes nos apercebêssemos. Essas ideias faziam parte, portanto, já dos primórdios da sociologia. De qualquer forma, um dos pioneiros na redescoberta do trabalho de Gabriel Tarde é um brasileiro, Eduardo Vargas, que há muito tempo tem publicado sobre o assunto.

Portanto, a teoria da rede de atores consiste em fazer no lado social o que a antropologia das ciências faz do lado da natureza. A simetria que eu usava anteriormente fez com que eu me apercebesse que tanto a natureza como o social (a sociedade) são semelhantes. Essa divisão entre natureza e cultura é uma forma de se fazer política, de reunir as coisas em duas coletividades, por razões que vêm da modernidade. Tudo o que eu faço nos estudos da ciência (science studies) é mostrar que esse agrupamento de seres a que chamamos natureza, esse amálgama de seres independentes, é uma coletividade mal constituída. O conceito de “natureza” não tem sentido, pois não há de fato a natureza.

Hoje, temos a prova com os trabalhos de Descola e outros. Mas o que me interessa na sociologia (o que é diferente do que faz Descola) é a outra coletividade: a sociedade. Nós podemos mostrar que a sociedade é mal constituída, desorganizada, imprópria. Como agora dissolvemos essa dicotomia entre a natureza e a sociedade, nos restam coisas interessantes a fazer, como investigar suas associações, suas conexões e suas políticas de agrupamento: isso é o que me interessa.

CULT – O senhor escreveu também sobre a ecologia e a necessidade de vê-la de uma forma diferente. Pode explicar-nos sua perspectiva sobre a ecologia?
BL - A partir do momento que as duas grandes “coletividades” da tradição modernista, a sociedade e a natureza, foram diluídas, quero dizer, redistribuídas e divididas por causa das crises práticas da ecologia, a noção de reunião ou reconstituição desses coletivos – sejam eles humanos ou não humanos– tornou-se a questão política mais importante. A separação entre esses dois conjuntos era, antes também, uma questão política. A ecologia não modificou isto, ela continua definindo os campos da sociedade e da natureza, salvo pelo fato que a isso, ela adicionou a ideia que os americanos chamam de bioprocess, uma forma legítima de inventar a questão da ecologia política. De fato, o importante agora – depois de abandonar as duas coletividades a que me referi – de um lado, a natureza, de outro, a sociedade– é se interessar na questão da produção das instituições que permitem pesquisar essas associações. Essa é a grande questão da ecologia política que encontramos agora por todos os lados: o caso dos parques naturais, do aquecimento global, dos problemas das cidades. Essa é a própria visão do global.

Isso é preciso construir agora, mesmo que não sejamos mais “ecologistas” no sentido tradicional, pois os ecologistas estão divididos sobre estas questões, já que eles são também naturalistas. É o que descrevo como a necessidade atual da entrada da ecologia na política.

CULT – No que consistem exatamente essas novas coletividades que não cabem mais na dicotomia natureza e sociedade?
BL - Escrevi um livro inteiro sobre esta questão da política da natureza que é no fundo uma espécie de ficção de filosofia política. Esse livro tenta reconstituir quais seriam essas assembleias legítimas, uma vez que “natureza” e “cultura” não são assembleias legítimas. Essas coletividades se referem às duas questões de que tratamos: o número de seres a considerar, quantos são? E em seguida, a questão mais delicada, politicamente falando, a da hierarquia que existe entre os seres e a questão: podemos viver juntos? Isso vai do mais prático ao mais complexo. A cosmologia, que era antes uma questão estudada por antropólogos, torna-se agora uma questão empírica e uma questão política.

CULT – O senhor pode nos explicar essa recusa em seu trabalho de separar a economia e a política?
BL - Eu não me sinto muito confortável na economia, pois ela não é realmente meu domínio. Meu argumento é que, entre os chamados “modernos”, não foi sobre natureza no sentido científico que eles realmente se ocuparam. A natureza interessa aos cientistas, e portanto, a muita pouca gente. É a natureza no sentido da economia que teve um papel importante na modernização, no que chamamos de marchandisation, que foi inventada entre 1750 e 1850 (período sobre o qual Foucault escreveu excelentes trabalhos). Esse é o momento da criação da natureza econômica. Os argumentos que usamos para falar da natureza não são os dos biólogos. Os biólogos sempre souberam que a natureza da qual eles falam faz um mundo de coisas, muito além do que faz “a natureza” dos filósofos.
Mas aprendemos a crer piamente que a natureza econômica existia e que ela era constituída por uma infraestrutura, um regime de bens. Gabriel Tarde mostra, em A psicologia econômica, como a economia é tratada como uma segunda natureza. O livro é uma crítica dessa postura: da natureza da economia, que é preciso repolitizar em todos os sentidos. Isso é extremamente difícil, pois cremos que há realmente uma natureza econômica e poucos a repolitizam, muito menos os chamados economistas críticos. Eles acham que as leis da economia são leis alternativas. A crença nessa economia é quase universal. Somos menos agnósticos em matéria de economia, mesmo quando somos anti-liberais.

CULT – Mas essa preponderância da economia aparece também em Karl Marx.
BL - Marx é um caso típico da crença em uma economia dessa magnitude, da qual podemos tirar leis da história, da matéria, da evolução, da política. É realmente a cientificação e a naturalização de uma grande parte da existência comum. Portanto, temos que desfazer essas camadas sucessivas sobrepostas à nossa existência, tanto se elas vêm do marxismo de esquerda, como do que eu chamo de marxismo de direita, que são hoje os liberais, que são muito mais numerosos e importantes. Mas nesse caso eu não sou especialista, eu conheço a literatura científica sobre o assunto, mas eu mesmo não trabalhei sobre essas questões.

CULT – O que o senhor quer dizer com a reinvenção de um modernismo que não é mais como o modernismo tradicional?
BL - O modernismo tradicional era a ideia que iríamos eventualmente naturalizar tudo: o todo de nossa existência. Nunca imaginamos de fato que iríamos completar esse processo, pois desde a invenção do modernismo – se considerarmos Descartes como o ponto inicial dessa invenção – queríamos distinguir as coisas. Sabíamos que não iríamos naturalizar, evidentemente, digamos, a res cogitans. A ideia era que o avanço do tempo iria levar-nos todos à naturalização, pois o tempo representa aqui também um acordo político, uma vez que há apenas uma natureza e todos nós estamos de acordo sobre isso. Esse é o modernismo à l’ancienne. Na “remodernização”, a ideia é herdar as ciências que não dependem dos matters of fact (objetos factícios), como faziam Descartes, Locke e Kant, mas sim essas que estão sempre expandindo os matters of concern (as coisas que nos preocupam). Como diz Ulrich Beck, essa é uma modernidade reflexiva. Ao colocar-se em prática essa nova história da ciência –– não há um termo para definir isso hoje em dia, Sloterdijk propõe domos – refazemos um passado diferente e portanto um futuro diferente. E isso não será a naturalização geral, nem o cérebro, nem os genes, nem as florestas, nem o clima, nem os carros obedecem às regras da naturalização. Acumulando-os, não vamos conseguir fazer um mundo naturalizado. No entanto, o ideal da razão, esse tem de ser preservado, porque ele vem de toda forma, da tradição euro-americana, de sua história particular.

CULT – Seu trabalho trocou os livros pelas exposições, e trata de arte, ciência, religião e do respeito pela mediação como uma forma de chegar à civilidade, como resposta ao modernismo e ao pós-modernismo. Essa também é a proposta de sua exposição Iconoclash?
BL - Esse é um empreendimento que me interessou muito, em primeiro lugar, porque eu mudei de mídia, e passei do livro à exposição, também ao catálogo também, e assim modifiquei tanto o impacto como a forma da atividade. Assim, creio que é possível mudar de modernidade, ao reencontrar a noção da mediação, o respeito por atividades diferentes: a arte contemporânea, a atividade científica, a atividade religiosa, o sentido da civilização, talvez até o da civilidade, possam ser recobrados através dessas atividades que passam a ser organizadas de forma bastante diferente do que se tem feito.
Por sinal, o iconoclasmo é parte da história intelectual crítica do Brasil. Ele faz parte das reflexões da teoria e de todas as religiões que herdamos. Podemos ver que a história do iconoclasmo não é fácil de se ignorar. Ela se aprofunda para além das raízes do modernismo, além do construtivismo. Portanto, reencontrar o sentido da mediação é restabelecer o fio da experiência para as pessoas e inventar assim um empirismo mais realista em relação ao primeiro empirismo que tivemos.

CULT – Mas qual é essa tradição iconoclástica que o senhor menciona em relação ao Brasil?
BL – Fazer proliferar os ídolos, tanto uns como os outros, com toda a liberdade possível. No Brasil, não se imagina de imediato que os ídolos estão lá para serem destruídos. Há uma grande compatibilidade de cultos. Veja, por exemplo, a história das religiões. Ela é interessante. O que chamamos de sincretismo, de amálgama, tudo isso teve um início: foi a maneira como foi vista a história europeia no Brasil. Mas tudo isso se passou de forma diferente. O iconoclasmo emerge na tradição antropofágica, por exemplo. E o iconoclasmo é importante para os euro-americanos, pois enquanto não fizermos o luto desse iconoclasmo, não compreenderemos nada do que é a noção de construtivismo, não respeitaremos jamais as mediações, e portanto cairemos no fundamentalismo. O fundamentalismo é uma espécie de modernismo monstruoso. Não quero dizer que o modernismo foi sempre um fundamentalismo, mas a partir do momento em que ele retira todas as mediações, ele o é.
Depois da passagem do pós-modernismo, que é um momento de liberação e divertimento, ele ainda se quer ater à verdade, sem se ater aos meios. Caímos então no fundamentalismo, é a única solução. Os modernistas e os pós-modernistas que assim o fizeram deixaram como herança apenas o fundamentalismo àqueles que ainda buscam as verdades, e esses ainda são os que poderíamos considerar “os do bem”, os que procuram a verdade. Se nós privarmos os que buscam a verdade dos meios, não há outra forma de alcançá-lo senão através do fundamentalismo, seja através do texto, dos livros sagrados (no caso da religião), ou em outros casos. Hoje, podemos ser fundamentalistas nas ciências, na política etc. Pois não há mais os intermediários, as mediações. O respeito pelos meios, pelas mediações, é algo que os brasileiros sabem fazer muito melhor do que os franceses. Nós, euro-americanos, esvaziamos inteiramente os meios para se buscar a verdade. E aqui novamente a teoria da ciência tem uma participação, pois para respeitar as ciências, temos que respeitar os meios que fazem a ciência. Isso parece de uma banalidade imensa, mas o fato é que isso resta sendo um assunto sobre o qual há ainda muita controvérsia, pois existem ainda pessoas que querem a ciência sem respeitar os meios. Os “modernos” são realmente bizarros!

terça-feira, 26 de abril de 2011

Fausto - um mito do homem moderno...?

Mito transcontinental

Fonte: Agência FAPESP
Por Fábio de Castro

Eugène Delacroix, Méphistophélès apparaissant à Faust
Considerada um mito central da modernidade, a lenda de Fausto remete à tragédia de um homem de ciências desiludido com as limitações do conhecimento de sua época. A fim de superá-las, ele faz um pacto com o demônio Mefistófeles, que lhe insufla a paixão pela técnica e pelo progresso e lhe dá acesso ilimitado ao saber e aos prazeres do mundo.
Baseada na história do médico e alquimista alemão Johannes Georg Faust (1480-1540), a lenda foi imortalizada em diversas manifestações literárias a partir do século 16 – sendo a mais famosa e influente a obra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), no século 19.
As inúmeras interpretações do mito de Fausto e suas relações com a descoberta do Novo Mundo, sua conquista, colonização e desenvolvimento são o tema central do livro Fausto e a América Latina, publicado com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicação.
A obra, que reúne 30 ensaios de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, foi organizada por Helmut Galle e Marcus Mazzari, respectivamente professores dos departamentos de Letras Modernas e de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
De acordo com Galle, o livro é resultado de um simpósio homônimo realizado em 2008 sob sua coordenação, com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Organização de Reunião Científica e/ou Tecnológica. Na ocasião, a publicação da primeira parte de Fausto, de Goethe, completava 200 anos.
“Na Alemanha, surgiram diversas interpretações recentes do mito de Fausto, que ainda eram pouco conhecidas no Brasil. Por outro lado, havia muitos pesquisadores latino-americanos trabalhando sobre a temática das relações entre Fausto e América Latina. Além de comemorar o bicentenário do livro de Goethe, o simpósio teve o objetivo de reunir e intercambiar toda essa pesquisa contemporânea”, disse Galle à Agência FAPESP.
O diálogo promovido no evento e refletido no livro teve um caráter essencialmente interdisciplinar, reunindo diferentes abordagens a partir da teoria literária, da literatura comparada, estudos germânicos, literaturas em língua portuguesa e espanhola, sociologia, história e filosofia.
“Os textos acabam indo além das interpretações do Fausto enquanto texto literário. Eles ampliam o debate para diversos outros aspectos do conhecimento sobre a cultura latino-americana, a modernidade europeia e suas múltiplas conexões”, afirmou Galle.
Um dos vários aspectos abordados é a figura de Fausto como símbolo do desenvolvimento da civilização. No século 19 e nas primeiras décadas do século 20, Fausto, como personagem criado por Goethe, foi considerado a encarnação do homem moderno, em seu desejo ilimitado – e nunca satisfeito – de desenvolvimento e conhecimento.
“Tudo isso foi simbolizado no Fausto como algo positivo. O próprio drama de Goethe foi considerado como símbolo do progresso e da civilização, tanto por positivistas no século 19, como por marxistas no século 20. Fausto aparecia, então, como o mito da modernidade, do homem que se libera e submete a natureza hostil”, disse.
Mas na Alemanha, principalmente a partir da década de 1960, outras interpretações do mito de Fausto começaram a aparecer. “Começa a aparecer a perspectiva da chamada ‘dialética do esclarecimento’, cujos elementos ambíguos colocavam em dúvida se o próprio Goethe considerava o progresso, simbolizado pelo Fausto, como algo positivo para o homem”, disse.
A época de Goethe, segundo Galle, testemunhou muitas inovações técnicas e o avanço da industrialização. O autor integrou essa realidade à segunda parte do Fausto, lançada em 1832. A primeira parte, conhecida como Primeiro Fausto, havia sido lançada em 1808, após três décadas de reflexão sobre o tema.
“Além da própria dinâmica da Europa como continente que se moderniza, temos também reflexos desse processo na colonização do Novo Mundo. Na perspectiva da dialética do esclarecimento, alguns autores identificaram versos do Fausto que parecem abordar a colonização, enquanto processo civilizatório, como uma iniciativa violenta, perniciosa, que gera mais destruição que benefícios para o ser humano”, disse.
Drama do conhecimento
O mito fáustico, no entanto, tem muitas outras interpretações e repercussões. “Encontramos reflexos de Fausto na literatura de cordel brasileira e na literatura popular argentina, por exemplo, além de manifestações literárias em outras partes do continente. No livro, temos vários ensaios sobre essas repercussões”, afirmou Galle.
O debate em torno da figura histórica de Fausto não ficou de fora da coletânea de ensaios. De acordo com o professor da USP, o personagem real, contemporâneo dos descobrimentos, aparece em sua primeira manifestação literária – o Faustbuch, no século 16, fazendo uma viagem pelo mundo, com a ajuda de Mefistófeles.
“Embora a obra tenha sido escrita mais de 80 anos depois da descoberta da América, a viagem de Fausto se limita à Europa, Ásia e África. Para alguns intérpretes, o autor do Faustbuch queria evidenciar, pedagogicamente, que só o conhecimento falso é produzido pelo diabo. Isso ficaria óbvio para os leitores, já que em uma viagem por todo o mundo a América deveria aparecer”, disse.
Poucos anos depois do Faustbuch, em 1593, aparece o livro conhecido como Wagnerbuch, no qual o assistente de Fausto, Wagner, faz uma viagem para a América. Galle é o autor de um ensaio sobre o Wagnerbuch.
“Esse livro se baseia em extratos de uma obra de viagem de Bensoni, um italiano que esteve na Venezuela, no Peru e na América Central e criticava duramente as ações da Espanha. A obra se tornou uma das fontes da chamada ‘legenda negra’, uma posição política do século 16 que contestava a ‘missão divina’ da conquista espanhola, qualificando-a como ‘obra do diabo’”, explicou.
Com diversas versões populares, segundo Galle, a lenda de Fausto se espalhou pela Europa e, em 1604, na Inglaterra, ganhou sua primeira manifestação culta de alto nível com a peça A trágica história de doutor Fausto, de Christopher Marlowe. “Até o século 18, o mito de Fausto teve ainda várias adaptações populares do teatro elisabetano inglês e novas versões alemãs em forma de livro”, disse.
Na segunda metade do século 18, no entanto, vários autores de renome percebem no material do Fausto o paradigma do ser humano moderno, segundo o professor, com destaque para Gotthold Lessing (1729-1781).
“A partir de então, Fausto se torna também o drama do conhecimento. É nesse contexto que aparece a primeira parte do Fausto de Goethe, publicada em 1808. Muito antes disso ele já trabalhava no texto, cuja segunda parte continuou aprimorando até 1832”, disse.
Depois da profundidade atingida por Goethe, poucos poetas se aventuraram a lidar com o mito de Fausto. Mas, segundo Galle, a ópera passou a tratar o tema de forma recorrente. A partir do início do século 20, diversos modernistas retomaram o personagem, incluindo Fernando Pessoa (1888-1935), Paul Valéry (1871-1945), Gertrud Stein (1874-1946) e Thomas Mann (1875-1955).