Direitos Humanos| 20/09/2012 | Copyleft
“Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada”, diz Hildegard Angel
Em entrevista, Hildegard Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart, conta um pouco de sua luta para preservar e honrar a memória de sua família. Além disso, fala sobre a Lei da Anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira. "Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país".
Especial para Carta Maior
Ela, que começou a sua carreira como atriz nos anos 1970, posteriormente se tornou jornalista e conquistou o posto de uma das maiores colunistas sociais do país. Hoje ela se dedica a um blog, cujos temas predominantes são moda e comportamento, e pretende inaugurar em breve um museu com vários documentos de sua família, guardados ao longo de anos.
Também fundadora do Instituto Zuzu Angel, Hildegard nunca foi militante como seu irmão. “As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso”, explica quando questionada se nunca pensou em juntar-se ao movimento de oposição ao governo. “O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus”, complementa, emocionando-se ao relembrar a história de combate de sua família.
Hilde, como é chamada pelos mais próximos, tira de sua trajetória posicionamentos precisos sobre a Lei da anistia, a Comissão da Verdade, o papel das novas gerações na política e a imprensa brasileira, fazendo jus à frase com que se descreve em seu Twitter: “Vocês me conhecem. Sou aquela que pode não ter a melhor opinião, pode não ter a sua opinião, mas tem opinião!”. A partir de suas falas, que desvelam alguns episódios importantes desse período ainda nebuloso da história do nosso país, é possível conhecer um pouco mais quem é essa mulher chamada Hildegard Angel.
Antes de se dedicar ao jornalismo, a senhora teve uma carreira como atriz. Numa outra entrevista, a senhora declarou que queria ser a Joana D’Arc dos palcos, enquanto que o seu irmão queria ser a Joana D’Arc da vida real. Como foi esse seu início profissional? Ser a Joana D’Arc dos palcos também implicava alguns riscos, alguma exposição?
E ele foi, né? Ele foi a Joana D’Arc da vida real (risos).
Mas acabou que nos anos 1970, com o teatro engajado, houve uma exposição, sim. Eu, por exemplo, fiz algum teatro engajado, com o Grupo Oficina. O último espetáculo deles, em 1973, chamado Gracias, Señor, dirigido pelo Zé Celso Marinez Corrêa, foi uma peça engajada importante da qual eu participei. Ela era assistida toda noite pelo DOPS. Era um espetáculo longo, muito improvisado também. Havia riscos naquela época, que era época da censura, né? Houve também um risco também para as pessoas de teatro que tinham uma militância. Eu não fui uma militante, né? Eu fiz a militância por acaso em alguns espetáculos como esse.
A senhora nunca pensou em se juntar ao movimento de oposição ao governo?
Eu não tinha a estrutura ideológica do meu irmão. Eu sempre respeitei muito o embasamento ideológico e intelectual do meu irmão. Seria muito fácil para mim e até muito honroso pegar, empunhar e desfraldar a bandeira da esquerda brasileira. E seria também muito proveitoso para mim naquela época se eu tivesse tomado essa iniciativa. Mas eu sempre encarei de uma maneira muito séria e com muita responsabilidade e respeito a luta do meu irmão. Eu ficava muito envergonhada de ver pessoas vestirem de uma maneira até festiva o uniforme, a roupa, as vestimentas da militância sem terem conteúdo ideológico, apenas pelas vantagens que poderiam advir dessa proximidade com os nossos heróis. As pessoas tiravam casquinha do heroísmo alheio. Eu sempre tive pudor disso. Eu sempre respeitei muito a luta legítima de quem fez por onde. Eu sempre considerei um atrevimento ver jornalistas, artistas, pessoas de comunicação sem conteúdo ideológico, mas com bom jogo de cintura, se aproveitarem do sangue, da luta, da ideologia, do conteúdo, da ingenuidade, da boa fé dos nossos jovens para tirar partido disso, para construir suas carreiras na base do oportunismo. Eu sempre tive esse pudor. Nunca quis.
O que eu sempre fiz foi honrar a memória dos meus. Foi, em todos os momentos da minha vida, jamais negar-lhes todas as homenagens, desde o primeiro momento. Meu irmão e minha mãe são e foram as personalidades daquele momento político brasileiro mais homenageadas até hoje. Até durante a ditadura foram inauguradas ruas, praças escolas, exposições com os nomes deles. As pessoas ficavam até boquiabertas de isso acontecer porque ninguém tinha peito de fazer isso. E com meu olhar até singelo, meu jeito ingênuo – podem considerar até sonso –, eu fazia isso. Talvez as pessoas achassem que eu fosse amorfa porque eu não oferecia perigo. E eu fazia isso. Eu mantive a memória dos meus viva, respeitada, homenageada, e essa foi a minha maneira de prestar a minha homenagem, de fazer o meu bom combate e de manter essa luta e essa memória vivas para que esses fatos não se repetissem.
E a senhora fundou também o Instituto Zuzu Angel, uma forma de preservar a história da sua mãe...
Foi a primeira ONG de moda no país, ou seja, uma sociedade civil sem fins lucrativos, lembrando a memória de Zuzu, lembrando a sua luta e a luta do Stuart. Eu lembro que naqueles anos em que todos rasgavam documentos, jogavam fora qualquer coisa que os comprometesse, eu guardei tudo, tudo o que se possa imaginar: na minha casa, nas minhas costas, nas minhas malas, nos meus baús, nas minhas gavetas. Nunca tive medo. E hoje nós temos um conteúdo sensacional de documentos. Hoje nós estamos tentando levantar um museu aqui no Rio de Janeiro com a Secretaria de Estado. Se Deus quiser nós conseguiremos. Porque, você sabe, essas coisas de governo a gente nunca sabe, né? Várias promessas, vários governos sucessivamente... Nunca sabemos se será levado adiante. Uma hora dizem uma coisa, noutra hora outra. Eu quero ver pronto! Já estou cansada de promessas!
Mas eu tive a coragem de manter esse acervo sob as minhas asas numa época em que as pessoas tinham medo. Eu nunca me vangloriei da luta do meu irmão, da minha mãe e da minha cunhada porque é essa luta pertenceu a eles.
Que imagem a senhora acredita que o Brasil tenha da luta deles?
Acho que o Brasil tem a imagem de que os nossos jovens lutaram e de que os nossos políticos da época se omitiram. Os políticos da época, que podiam estar lá fora falando sobre isso, se omitiram.
Não me esqueço quando minha mãe, que era uma juscelinista de boa cepa, convicta, encontrou-se com o Juscelino numa festa onde estava toda a high society do Rio de Janeiro e lhe disse: “Você poderia ter denunciado as mortes, mas você se calou. Você teria recursos para falar na imprensa internacional das torturas. Eu não lhe perdoo, Juscelino Kubitschek!” E enfiou o dedo no nariz dele. Na ocasião, disseram: “Zuzu, você está louca! Fica calma!”.
Ela estava dizendo a verdade. No ano de 1976, foi aquela lavada geral, aquela limpeza diária: mataram a Zuzu, mataram o Juscelino, mataram o Carlos Lacerda, mataram o Jango. Porque ninguém me tira da cabeça que as mortes de Getúlio, Jango e Juscelino também fizeram parte dessa ação articulada. No Brasil, iniciava-se o processo de abertura e eles teriam que limpar a área para que tudo começasse zero-quilômetro, para que não ficasse resíduo, qualquer voz que pudesse se levantar para incomodá-los.
Mas, quando foi dada a voz às famílias desses antigos políticos para falar a respeito na época da Comissão dos Desaparecidos, elas não quiseram investigar. Elas negaram que os seus familiares tivessem sido mortos, talvez por receio, porque não acreditassem ou porque não tivessem a ideia de que elas estavam roubando a memória de seus familiares quando lhes sonegavam o direito do reconhecimento de um assassinato político.
A senhora apoiou a Dilma nas eleições presidenciais de 2010. Agora, no seu governo, finalmente foi instalada a Comissão da Verdade. O que a senhora espera dessa Comissão?
O assassinato da Zuzu foi reconhecido vinte e dois anos depois. Não foi no governo da Dilma, eu tenho que reconhecer. Foi no governo Fernando Henrique, quando o seu ministro, José Gregory, criou a Comissão dos Desparecidos Políticos. Foi feito um processo bem longo, em que houve recurso. O assassinato da mamãe foi reconhecido em segunda instância porque surgiram testemunhas oculares. Então não foi a presidenta Dilma. Mas eu acho que tudo anda muito vagarosamente.
Eu acho que a anistia foi a anistia que foi possível na época. Eu apoiei e o Brasil inteiro apoiou a anistia porque foi a anistia possível. Eu apoiei aquela abertura porque foi a abertura possível; aquele momento porque foi o momento possível, porque foi o momento em que não houve confronto, não houve novas vítimas, não houve sangue, não houve dor. Eu apoiei, sim, aquele momento porque foi um momento sem mortes. É muito importante que o Brasil lembre que nós tivemos uma passagem para a democracia sem mortes. Para quem já sofreu tantas mortes, como eu já havia sofrido, não queria mais em nome da política que houvesse mortes. Os nossos jovens, que já estavam velhos, retornaram ao Brasil, de todos os países, sequiosos para isso, sedentos para isso. E nós aqui esperançosos para isso. Então eu achava importante que a nossa passagem tivesse sido sem mortes.
E a senhora espera que seja feita a justiça com a Comissão da Verdade?
Eu espero que seja feita, mas eu acho tudo muito lento e eu fico muito cansada. Eu espero que sim. Sou esperançosa, vejo boas intenções, mas eu estou cansada. Você veja, esse livro (Memórias de uma guerra suja) em que é apontado o possível assassino da minha mãe... Por que eles não elucidam logo esse assassinato, quem foi o assassino? Que ela foi assassinada todos já sabemos. Por que eles não identificam logo, não abrem logo esse processo? Você vê que as famílias têm que ficar o tempo todo sofrendo esse martírio. Eu fico cansada.
Como a senhora acha que as novas gerações lidam com a política?
Se não forem as novas gerações, o que será de nós? As velhas gerações estão muito mais preocupadas com elas mesmas do que com o nosso passado. Graças a Deus temos as novas gerações.
A senhora acredita que o Brasil lide bem com o seu passado?
Eu acho que o Brasil lida bem com o passado na medida em que as novas gerações estão preocupadas com esse passado. Com a idade, as pessoas vão se acomodando, as pessoas vão perdendo seus postos de poder, a sua voz, a sua influência. E as pessoas também vão se revelando, né?
Pessoas que antes pareciam engajadas, preocupadas em esclarecer fatos, hoje se situam praticamente à direita e estão mais preocupadas em satisfazer seus patrões da mídia de direita do que esclarecer pontos importantes do nosso passado de esquerda.
Os filmes que falam sobre essa época da ditadura, como o filme do Sérgio Rezende que foi feito sobre a sua mãe, podem ajudar a resgatar esse passado?
A cultura está fazendo essa revolução. A cultura está fazendo essa denúncia. A cultura está prestando um grande serviço a essa luta brasileira, a esse resgate. Acho que há movimentos importantes também. O “Tortura Nunca Mais” de hoje é um movimento muito importante.
Hoje se discute e se faz com bastante frequência política na internet, em blogs e em redes sociais. O que a senhora pensa a esse respeito?
Redes sociais são importantes, mas eu vejo que há uma certa casta superior do jornalismo que se identifica como jornalismo de primeira linha, de primeiro grupo. É um jornalismo totalmente comprometido com seus patrões, que não está muito preocupado com nada, não...
A senhora acha que nós vivemos numa liberdade de expressão plena hoje?
Vivemos numa liberdade de imprensa muito relativa, mas não devido ao governo, e sim devido aos interesses capitalistas dos empresários da opinião deste país, que estão restritos a uma única opinião, refletindo os interesses de um pequeno grupo de empresários poderosos...
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