Elizandra Souza, em sarau na zona sul de SP: em legítima defesa
Breve panorama sobre vozes femininas que hoje fazem versos — mas
permanecem à sombra por preconceito de editores. Uma realidade em rápida
transformação
Por
Inês Castilho
No ano 40 do feminismo brasileiro, já não se admitem atitudes que até
outro dia, naturalizadas, passavam batido. No mundo das luzes
inclusive. Por exemplo, circula por aí manifesto em que intelectuais e
artistas se comprometem a não participar de mesas de debates ocupadas
apenas por homens – mudando assim o conceito de normalidade. Outro
exemplo: questionada na última edição sobre a ausência de homenageadas, a
Flip escolheu louvar este ano a escritora Ana Cristina César, segunda
em 14 anos de festival – a primeira foi Clarice Lispector, em 2005.
Ana Cristina César, segunda mulher a ser homenageada na Flip
No mundo editorial, a provocação veio de uma jovem poeta, Ana Rüsche, ao jogar na rede o
texto Mulheres escrevem poesia e desaparecem,
em que questiona a invisibilidade da “intensa produção de poesia feita
por mulheres” no país. Ana cita livros e artigos recentes em que o
placar é tremendamente desfavorável às poetas. Volta às publicações da
virada do século e constata: a coisa é grave. “O que me espanta é que
qualquer análise lúcida e cuidadosa dos dias de hoje iria apontar o
evidente protagonismo feminino na poesia!” E então lança o dado
avassalador: em todos esses livros e artigos não encontrou uma única
poeta negra.
Conceição Evaristo, prêmio Jabuti 2015
Há nomes consagrados como Cecília Meirelles, Pagu, Hilda Hilst, Olga
Savary, Adélia Prado, Alice Ruiz, e mesmo o das malditas Leila Miccolis e
Orides Fontela. E ainda de suas antepassadas Auta de Souza, Gilka
Machado e Francisca Júlia, entre tantas outras que, à frente do seu
tempo, ousaram poetar quando não eram autorizadas sequer a estudar. Falo
das excluídas desde as décadas de 70 e 80, quando a produção poética
das mulheres se torna mais expressiva, diante da ressurgência da luta
feminista e o início da desconstrução social de gênero – tais como
Stela do Patrocinio e
Conceição Evaristo, esta finalmente vencedora de um
Jabuti na categoria contos e crônicas. Ou das inúmeras jovens e nem tão jovens que, de lá para cá, vêm se aventurando na poesia.
Alice Ruiz: 70 anos de poesia
Mar de poetas
Elas são tantas que nem conseguiria eu conhecê-las, nem seus nomes caberiam neste texto. Basta clicar no
blog
do poeta paulista Rubens Jardim – integrante da Catequese Poética,
movimento que levou a poesia às ruas, logo após o golpe militar de 1964 e
que, desde 2011, já publicou 270 poetas e mais de mil poemas de
mulheres em seu
site.
Rubens, para quem “a poesia é uma necessidade concreta de todo ser
humano”, conta que iniciou esse trabalho ao perceber como era relegada a
segundo plano a poesia das mulheres.
Gilka Machado (1893-1980)
“Que o José Veríssimo ou o Sílvio Romero – famosos críticos e
historiadores da literatura do século 19 – registrassem poucos nomes
femininos, tudo bem. Eram poucas as mulheres ‘atrevidas’ a publicar.
Mas, quando fiquei sabendo que um cara batuta como o Prof. Alfredo Bosi,
em sua
História Concisa da Literatura Brasileira, só menciona
quatro nomes: Francisca Júlia, Gilka Machado, Auta de Sousa e Narcisa
Amália, fiquei estarrecido. Aí baixou Xangô, santo da justiça, e iniciei
o trabalho em favor das mulheres poetas. E as pesquisas foram me
mostrando que, nessa garimpagem, eu estava encontrando ouro puro.”
Alzira Rufino: poeta, feminista, ativista
Diante de tal transbordamento, aviso aos navegantes que os nomes aqui
mencionados são fruto quase do acaso, somado a um gosto muito
particular. E que entre eles encontram-se os de poetas bem divulgadas,
assim como de outras que se publicam principalmente pela internet – essa
ferramenta mais que bem-vinda para a difusão de todas as artes.
Pois elas são muitas, e já começam a causar – como no caso recente da censura ao poema da baiana
Lívia Natália,
“por incitar preconceito e intolerância contra policiais militares”.
Vencedora do edital do programa “Poesia nas Ruas” em Ilhéus, na Bahia, a
professora do Instituto de Letras da UFBa teve seu poema
retirado de um outdoor, em três dias, quando lá deveria estar por dois meses:
Quadrilha
Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés
escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.
Lívia Natalia, poeta baiana censurada
Como Lívia, não faltam mulheres negras, muitas periféricas, produzindo poesia nesta quadra da vida brasileira. Desde
Alzira Rufino, feminista e ativista do movimento negro nascida em Santos (SP) em 1949:
Resgate
Sou negra ponto final
Devolvo-me a identidade
Rasgo a minha certidão
Sou negra
Sem reticências
Sem vírgulas
Sem ausências
Sou negra balacobaco
Sou negra noite cansaço
Sou negra
Ponto final.
“Quando leio uma poeta mulher negra, geralmente escuto um grito. Um
grito que fala de outros tempos e outras dores que se repetem ainda
hoje”, diz
Lubi Prates, poeta curitibana que edita a revista literária
Parênteses. Também ela versa sobre violência policial, aquela que se abateu contra os professores no Paraná, em
até só restar o depois/ sobre o dia 29 de abril de 2015, em Curitiba
(…)
pudesse,
recordaria o cheiro
antes daquela tarde
quando tudo se confundiu a
gás
pólvora
sangue.
(…)
Os motes exprimem a diversidade das próprias poetas. Amor, tema
universal tão a nosso gosto, é tratado com humor sarcástico, bem
distante da “delicadeza feminina” com que os críticos gostavam de
carimbar essa produção. Como faz a poeta mineira
Aden Leonardo:
Coisa de mulher
Tenho meus pés caídos…
– você ainda extorquiu o dedo mínimo
Já não servia de nada, Amor!
Foi só para ferir… ou organizar
sua gaveta de conquistas
Ou força lírica, como a poeta capixaba
Fabíola Mazzini Leone:
simplicidade
realejo
quanto mais te amo
mais te vejo.
Igualmente universal, a dor é tematizada com leveza quase zen pela poeta
Solange Padilha, paraense radicada no Rio de Janeiro, neste poema sem título:
sinto a dor que morde
bato asas
asas batem ao vento
mordem a dor
sinto o vento bater asas
rumo ao norte
não há mais dor
Ou com humor cirúrgico, como a curitibana radicada em São Paulo
Alice Ruiz, em poema musicado por Itamar Assunção:
Milágrimas
Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre
(…)
Profunda, humana dor, retratada pela poeta mineira
Líria Porto:
nau frágil
esbarrou na dor
e para não naufragar
deixava pelo caminho
parte da carga
outro baque
partiu-se o casco
o capitão foi a pique
salvou-se o mar.
Tem também a morte, nos versos da poeta paulista
Rita Moreira:
Eros e Tânatos
Tão doce a Voz que noite alta
às vezes me chama –
a desses mortos,
que um dia eu amei
na cama.
E a liberdade, cantada pela mineira
Adriane Garcia:
Escolher
Há você
Um espaço
Para os passos
E uma porta
Não é por que
É uma porta
Que você tem que
Abri-la
Liberdade pode ser
Antes da porta.
Política é por certo assunto de mulher – como faz
Bianca Velloso, gaúcha criada na ilha de Santa Catarina:
resistência
novembro de mil novecentos e setenta e nove
primavera no hemisfério sul
e era medo o que florescia
no jardim lá de casa
(…)
Mas é assunto principalmente das poetas negras, ao tratar de gênero e etnia. Como
Alzira Rufino:
Resisto
De onde vem este medo? Sou
sem mistérios existo
Busco gestos de parecer
Atando os feitos que me contam
Grito de onde vem esta vergonha sobre mim?
Eu, mulher negra, resisto.
Ou com a crueza de
Elizandra Souza, da periferia Sul de São Paulo:
Em Legítima Defesa
Estou avisando, vai mudar o placar…
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens que não sabem se comportar
Lembra da cabeleireira que mataram outro dia,
… E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade…
(…)
Sem palavras proibidas, e com todas as letras, assegura
Viviane Mosé, poeta capixaba que adotou o Rio de Janeiro:
Toda palavra
(…)
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda
(…)
Ou ainda como, irreverente, faz a gaúcha
Angélica Freitas:
Às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
(…)
Coisas de mulher, recorda outra poeta capixaba radicada no Rio,
Elisa Lucinda:
Aviso da lua que mestrua
Moço, cuidado com ela
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua…
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
(…)
Ou como, lembrando a imposição cultural de juventude e beleza às mulheres, dizem os versos da gaúcha
Nilcéia Kremer:
Kamikaze
Uma mulher traz areia nas mãos
vento nas veias
e uma ampulheta implacável
tatuada na pele
(…)
Mas é sobre lavrar versos, este ofício mesmo da poesia, que elas falam, pra mim, mais bonito. Como Viviane Mosé:
Receita para lavar palavra suja
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza.
Por exemplo a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
(…)
Ou, como diz
Ana Estaregui, nascida em Sorocaba (SP), nestes versos sem título:
anotou em seu moleskine a palavra laringe
.
o poema, em geral, cresce em volta de uma palavra estranha.
às vezes nem tão estranha, mas que provoca uma pequena paralisia.
[e eu adoro ser flagrada por essas palavras]
elas interrompem o meu dia, param tudo mesmo.
de vez em quando, quando posso,
pego elas com as mãos
e aí desenho um espaço pra elas, feito de letras
Ou ainda como, tropicalizando com humor, diz a poeta paranaense
Marilia Kubota:
Gaste tempo
(…)
bravo
você tem jeito
pra escrever versos
eu só finjo
minha ikebana
tem flor de banana
Poesia feminina?
Se existe ou não uma escritura feminina é tema de debate – e há
controvérsias. “Se existe ignoro, o que percebo são características
comuns reflexo das vivências do universo feminino que inevitavelmente se
evidenciam em algumas escritas femininas. Mas uma tradição mesmo que se
compare ao ‘landay’, por exemplo, que são dísticos de lírica amorosa
compostas tradicionalmente por mulheres no Afeganistão, eu não vejo no
Brasil”, considera Nilcéia Kremer. “As características variam de poeta
pra poeta, claro, a vivência em um gênero traz determinado assunto
vivido para a poesia de tal poeta, assim como quaisquer diferenças podem
atuar no conteúdo que um poeta elabora, mas isso não é o que define a
poesia de alguém”, concorda Adriane Garcia. Já Aden Leonardo tem uma
visão diferente: “há uma grande tendência em dizer poesia feminina. Acho
justo até. Universo feminino é diferente do masculino. Falar de ciclos,
crianças, flores, comportamentos, sofrimentos ditos ‘femininos’ só cabe
com tal ‘justeza’ às mulheres. E que mal há nisso? É lindo! Acho que é
fácil saber um poema feminino… É um instinto passado a verso.”
Mas afinal, escrever por quê?
“Escrevo porque preciso criar uma voz para mim mesma. Escrevo porque a
própria língua é um enigma como a vida. Escrevo para me comunicar. E
nesse desejo de transformar palavras em argamassa ou tijolos, faço minha
tentativa de construir e habitar um universo”, diz Solange Padilha.
É quase uma questão de vida ou morte, versa a paulista
Nydia Bonetti:
existe quando canta
por isso canta
pra existir
e morre
quando cala
[cada vez mais difícil
ressuscitar]
De saúde ou doença, considera Viviane Mosé:
Receita para arrancar poemas presos
A maioria das doenças que as pessoas têm
São poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras
calcificadas,
Poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado.
Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema.
Mas não.
(…)
Intime-se, publique-se.
Este o conselho de Ana Rüsche às mulheres para que saiam do armário –
ou da gaveta. “Sim, aquela gaveta onde se guardam os originais, onde os
contos dormem esquecidos e os poemas ficam silenciados, cheios de
rabiscos incertos. A gaveta também pode ser aquela pasta perdida no
computador, uns documentos de word com capítulos de um romance sempre
por terminar. A gaveta, o inverso do livro, outra forma de espera.” Ana
oferece ali um passo-a-passo para a autopublicação.
Ana Rüsche: e nossas irmãs mais velhas?
E há também as poucas editoras que, antenadas com os novos tempos, vêm publicando a produção feminina. Como a
Patuá,
cujo editor, Eduardo Lacerda, também poeta, procura equilibrar autores e
autoras. A invisibilidade das poetas é histórica, cultural, mas as
coisas estão mudando, diz ele, ao lembrar que os prêmios Jabuti de
melhor romance e livro do ano foram concedidos, em 2015, a
Maria Valéria Rezende, uma freira; que
Micheliny Verunschk
ganhou, pela Patuá, o Prêmio São Paulo de Literatura de melhor autora
estreante acima de 40 anos e o de estreante abaixo de 40 anos foi
concedido a
Débora Ferraz. “São
mulheres, e ainda nordestinas; pela lógica do mercado, isso não
aconteceria.” Também o Jabuti de contos foi concedido à jovem carioca
radicada em São Paulo
Caroline Rodrigues.
“As mulheres estão tendo visibilidade cada vez maior. A questão
feminista está hoje muita clara para as jovens, e isso faz com que a
coisa vá mudando, às vezes na marra. Um sintoma é a diferença que vejo
entre as alunas de Letras da USP de agora e de quando saí da faculdade,
há 10 anos. Estão muito engajadas na luta feminista, e isso acaba
mudando as coisas também na cultura e nas artes.”
É vasta, diversa e de qualidade a produção poética das mulheres
brasileiras na atualidade. E embora cantem como cigarras, as poetas, bem
formiguinhas, vêm trabalhando para fazer frente a esse panorama de
desigualdade. Por exemplo: um grupo formado por onze delas, de sete
estados (entre as quais Ana Rüsche, de São Paulo) está organizando um
festival para mostrar a invisibilidade das poetas brasileiras, em três
eventos: “Poesia dos anos 1990” (março), “Poesia dos anos 00” (maio) e
“Poesia de hoje” (junho). Na programação, debates, leituras e oficinas,
em locais que logo serão definidos. Outras Palavras dará a notícia.
***
Para a Playboy, nudez não tem preço
Em carta à imprensa, a revista masculina, que retorna às
bancas em abril, justifica seu posicionamento de não pagar cachês por
ensaios
Crédito: Reprodução
Atualizado às 15h48
Sob nova editora no Brasil,
a PBB Entertainment, a Playboy não pagará cachês a suas modelos.
Em
carta à imprensa, a publicação justifica que “a mulher não será objeto
de nudez, terá voz na revista e suas histórias de vida serão
valorizadas. Os ensaios não serão mais pagos com cachê porque o corpo da
mulher não tem preço. Na nova Playboy, não haverá leilão sobre qual
estrela foi mais bem paga, porque nenhuma mulher vale mais que outra”.
A
Playboy acredita que seu desafio atual é se manter como a maior revista
masculina do País e resgatar prestígio tendo a mulher como parceira.
“Não haverá mais obrigatoriedade de exibir nudez frontal. Assim, fica
estabelecido que a estrela pode ter acesso a eventuais acordos e
contrapartidas não editoriais, sempre articulados pela vice-presidência
de Vendas, Marketing e Publicidade”.
A PBB Entertainment
divulgou, na tarde desta quinta-feira, 4, que a atriz Luana Piovani vai
estampar a primeira edição da revista em nova fase. A Playboy será o
primeiro produto editorial da PBB, criada pelo fotógrafo de moda André
Sanseverino e os empresários Edson Oliveira e Marcos de Abreu.
“Garantimos convergência da publicação com site, aplicativos, e-commerce
e organização de eventos”
De acordo com a PPB, os principais
valores editorais da Playboy serão preservados e a equipe da revista
será liderada por Sanseverino com uma dupla formada por editor-chefe e
pela diretora de criação.
Após 41 anos,
a última Playboy publicada pela Editora Abril foi às bancas em dezembro
do ano passado. O principal argumento da empresa para o fim dos títulos
foi “a revisão do portfólio de produtos e a readequação das ofertas à
sua audiência, aos anunciantes e agências”.