quinta-feira, 8 de maio de 2014

O reverso do discurso dos direitos humanos...

Linhas vermelhas na Ucrânia e em todos os lugares

A crise atual na Ucrânia é séria e ameaçadora, tanto que alguns comentaristas a equiparam à crise dos mísseis em Cuba, em 1962.


Boletim Carta Maior

Noam Chomsky
Arquivo

A crise atual na Ucrânia é séria e ameaçadora, tanto que alguns comentaristas a equiparam à crise dos mísseis em Cuba, em 1962. O colunista Thanassis Cambanis resume o âmago da questão no Boston Globe: “A anexação da Crimeia pelo (presidente russo Vladimir) Putin é uma ruptura de uma ordem em que os Estados Unidos e seus aliados confiam desde o fim da guerra fria, na qual as grandes potências só intervêm militarmente quando há consenso internacional a seu favor ou, na ausência dele, quando não cruzam as linhas vermelhas de uma potência rival”. 

Portanto, o crime internacional mais grave desta era, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, não foi uma ruptura da ordem mundial porque, apesar de não terem apoio internacional, os agressores não cruzaram as linhas vermelhas russas ou chinesas.

Em contrapartida, a anexação russa da Crimeia e suas ambições na Ucrânia cruzam as linhas norte-americanas. Consequentemente, “Obama se concentra em isolar a Rússia de Putin, cortando seus laços econômicos e políticos com o mundo exterior, limitando suas ambições expansionistas em sua própria vizinhança e transformando o país, de fato, em um Estado pária”, informa Peter Baker no New York Times.

Em suma, as linhas vermelhas norte-americanas estão firmemente estabelecidas nas fronteiras da Rússia. Consequentemente, as ambições russas “em sua própria vizinhança” violam a ordem mundial e criam uma crise.

Esta premissa é de aplicação geral. Às vezes, permite que outros países tenham linhas vermelhas em suas fronteiras (onde também estão as linhas vermelhas dos Estados Unidos). Mas não se aplica ao Iraque, por exemplo. Nem ao Irã, que Washington ameaça continuamente com ataques (“nenhuma opção sai da mesa”).

Tais ameaças violam não apenas a Carta das Nações Unidas, como também a resolução de condenação da Assembleia Geral à Rússia, que os Estados Unidos acabam de assinar. A resolução começa destacando que a Carta da ONU proíbe “a ameaça ou o uso da força” em assuntos internacionais.

A crise dos mísseis em Cuba também deu ênfase às linhas vermelhas das grandes potências. O mundo perigosamente se aproximou de uma guerra nuclear quando o então presidente John F. Kennedy rechaçou a oferta do primeiro-ministro soviético Nikita Kruschov de colocar fim à crise mediante a retirada pública e simultânea dos mísseis soviéticos em Cuba e dos mísseis norte-americanos da Turquia (já estava programada a substituição dos mísseis dos Estados Unidos por submarinos Polaris, muito mais letais – parte do enorme sistema que ameaça destruir a Rússia).

Também naquele caso, as linhas vermelhas dos Estados Unidos estavam na fronteira da Rússia, um fato aceito por todos os envolvidos.

A invasão norte-americana da Indochina, como a do Iraque, não cruzou as linhas vermelhas, e tampouco muitas outras destruições norte-americanas pelo mundo. Deve-se repetir este fato crucial: às vezes, permite-se que outros adversários tenham linhas vermelhas, mas em suas fronteiras, onde também estão colocadas as linhas vermelhas norte-americanas. Se um adversário tem “ambições expansionistas em sua própria vizinhança” e cruza as linhas vermelhas norte-americanas, o mundo enfrenta uma crise.

No último número da revista International Security, do Harvard-MIT, o professor Yuen Foong Khong, da Universidade de Oxford, explica que existe uma “longa (e bipartidarista) tradição no pensamento estratégico norte-americano: governos sucessivos colocaram ênfase no que é um interesse vital dos Estados Unidos, prevenir que uma hegemonia hostil domine alguma das principais regiões do planeta”.

Além disso, existe consenso de que os Estados Unidos devem “manter sua predominância” porque “a hegemonia norte-americana é a que sustentou a paz e a estabilidade regional”, eufemismo que se refere à subordinação às demandas norte-americanas.

Da forma como são as coisas, o mundo opina de modo diferente e considera os Estados Unidos um “Estado pária” e “a maior ameaça à paz mundial”, sem um competidor sequer próximo nas pesquisas. Mas, “o que o mundo sabe?”.

O artículo de Khong se refere à crise provocada pela ascensão da China, que avança em direção à “primazia econômica” na Ásia e, assim como a Rússia, possui “ambições expansionistas em sua própria vizinhança”, cruzando as linhas vermelhas norte-americanas. A recente viagem do presidente Obama à Ásia tinha objetivo de reafirmar a “longa (e bipartidária) tradição”, na linguagem diplomática.

A quase universal condenação de Putin pelo Ocidente faz referência ao “discurso emocional” em que o governante russo explicou com amargura que os Estados Unidos e seus aliados “nos enganaram uma e outra vez, tomaram decisões pelas nossas costas e nos apresentaram fatos consumados, com a expansão da OTAN no Oriente, com a instalação de infraestrutura militar em nossas fronteiras. Sempre nos dizem o mesmo: 'Bem, isto não tem a ver com você'”.

As queixas de Putin se baseiam em fatos. Quando o presidente soviético Mikhail Gorbachev aceitou a unificação da Alemanha como parte da OTAN – concessão assombrosa à luz da história –, houve uma troca de concessões. Washington acordou que a OTAN não se direcionaria “um centímetro em direção ao Leste”, em referência à Alemanha Oriental.

A promessa foi imediatamente quebrada e, quando o presidente soviético Mikhail Gorbachev se queixou, indicaram a ele que havia somente uma promessa verbal, carente de validade.

Logo Bill Clinton expandiu a OTAN muito mais ao Leste, em direção às fronteiras da Rússia. Atualmente, há quem queira levá-la até à mesma Ucrânia, bem dentro da “vizinhança” histórica da Rússia. Mas isso “não tem a ver” com os russos, porque a responsabilidade dos Estados Unidos de “manter a paz e a estabilidade” requer que suas linhas vermelhas estejam nas fronteiras russas.

A anexação russa da Crimeia foi um ato ilegal, violou o direito internacional e tratados específicos. Não é fácil encontrar algo comparável nos últimos anos, mas a invasão do Iraque foi um crime muito mais grave.

Entretanto, vem à mente um exemplo parecido: o controle norte-americano da baía de Guantánamo, sudeste de Cuba. Ela foi tomada a tiros de Cuba em 1903 e não foi devolvida, apesar dos constantes pedidos cubanos desde o triunfo da revolução, em 1959.

Sem dúvidas, a Rússia tem argumentos mais sólidos em seu favor. Ainda sem considerar o forte apoio internação à anexação, a Crimeia historicamente pertence à Rússia; conta com o único poto de águas quentes na Rússia e abriga a flotilha russa, além de ter enorme importância estratégica. Os Estados Unidos não têm nenhum direito sobre Guantánamo, a não ser pelo monopólio da força.


Uma das razões por que Washington recusa devolver Guantánamo a Cuba, é possível presumir, é que se trata de um porto importante, e o controle norte-americano representa um formidável obstáculo ao desenvolvimento cubano. Esse tem sido o principal objetivo da política norte-americana ao longo de 50 anos, que inclui terrorismo em grande escala e guerra econômica.

Os Estados Unidos se dizem escandalizados pelas violações aos direitos humanos em Cuba, ignorando que as piores dessas violações são cometidas em Guantánamo; que as acusações válidas contra Cuba não se comparam nem de longe às práticas regulares entre os clientes latino-americanos de Washington; e, finalmente, que Cuba esteve submetida a um severo e implacável ataque dos Estados Unidos desde o triunfo de sua revolução.

Mas nada disso cruza as linhas vermelhas de ninguém, nem causa uma crise. Cai na categoria das invasões norte-americanas da Indochina e do Iraque, da rotineira derrubada de regimes democráticos e das instalações de impiedosas ditaduras, assim como de nosso espantoso histórico de outros exercícios para “sustentar a paz e a estabilidade”.

(*) Noam Chomsky é professor emérito de linguística e filosofia no Instituto Tecnológico de Massachusetts, em Cambridge.
Tradução: Daniella Cambaúva

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