Estava tudo lá: uma gente interessante, um
curso novo numa universidade de longa história, sólida história, mas cheia de
flexibilidades. Entre elas, a possibilidade de pensar alto sobre o próprio
pensar alto e tentar entender do que é feito o rumor público – que move o
mundo, afinal.
Em torno de um texto de Milton Santos [“Por
uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal”],
nos reunimos embaixo de uma árvore, depois numa sala, e foram dias seguidos, depois
semanas desdobradas em um par de meses. Era 2010.
Em 2011 o blog nasceu como banco de dados,
digamos que nasceu como uma coleta despretensiosa, que catava entre os ventos
umas folhas e umas pedrinhas.
Veio 2012, e o grupo de estudos virou Grupo
de Pesquisa.
Em 2013, muita gente chegou. Já
alguns tinham ido embora e mandavam notícias de alhures.
De 2014 em diante, fomos virando mais que
fórum permanente, mais que grupo de estudos, mais que grupo de pesquisa: somos hoje
um coletivo de trabalho.
E, com isso, 2015 trouxe notícias de que a
coleta aleatória era boa, sim, mas pouca, diante do que se assumia: fazer
convergirem esforços, alimentar a sinergia de diferentes buscas e criar –
porque sem criação nenhum pensamento de fato se pensa.
O blog já não tinha mais sentido no seu tom, na
sua plataforma, na sua falta de pretensão. Assim, ficou como um banco de dados
colhidos ao longo da história, ficou como história de uma reunião de interesses
que construiu uma força criadora.
Segundo o mais recente ranking sobre
liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteira, o Brasil ocupa a
104ª posição. Caiu 5 posições (havia caído 9 em 2013 e agora desceu mais
um pouco). Centésima quarta posição entre 180 países é uma colocação
preocupante e vexatória. Determinantes para a queda foram o aumento da
violência contra jornalistas, o registro de ameaças e a quantidade de
mortos durante o ano passado. Total de sete jornalistas assassinados.
Como pode isso?
Para os leitores dos grandes jornais,
telespectadores dos canais abertos de TV e ouvintes das grandes rádios,
um ranking desses irá soar como peça de ficção. Claro, nada disso
acontece com os jornalistas que trabalham para aquela meia dúzia de
famílias detentoras de quase oitenta por cento da mídia. Estes estão
alinhados e repetem em uníssono o que seus chefes querem que seja dito e
escondem o que seus patrões desejam que seja escondido.
A perseguição é sobre os independentes, é
inegável. Veja quantas dificuldades o DCM enfrentou ao publicar o
documentário Helicoca. “É um ambiente de medo para os jornalistas,
sobretudo os jornalistas independentes, blogueiros”, disse Emanuel
Colombié, chefe do departamento de pesquisas da Repórteres Sem
Fronteiras.
Mas e o cinegrafista da Band? A tragédia
ocorrida com Santiago Andrade em 2014 foi um acidente. Terrível, mas um
acidente. Ninguém lançou a bomba propositalmente no cinegrafista da
Band e, infelizmente, o caso dele é um bom exemplo da disparidade no
tratamento da questão quando acontece com um ‘deles’. Toda a cobertura
dramática, a dedicação em apontar os culpados, o enunciado destacando
que as manifestações faziam sua “primeira vítima fatal”. Santiago era
então a 11ª pessoa a morrer, não a primeira, desde os protestos de 2013 e
dezenas de outros jornalistas já haviam sido feridos, muitos com
gravidade como a perda de um olho e outros tendo seus equipamentos
destruídos ou confiscados. Mas eram todos independentes e os casos não
vieram para as manchetes.
O oligopólio da mídia brasileira é um
dos principais motivos para o atraso do país. Seu monobloco alienador
faz com que andemos para trás em diVersos rankings como de liberdade de
imprensa ou de educação. Desinforma para manter seus privilégios.
Um exemplo nítido: Desinformados, muitos
combateram o Marco Civil Regulatório da internet. Lobotomizados pela
mídia unificada, diziam que se tratava de censura, que o PT queria
controlar a rede. Agora estão aí desesperados com a notícia de que as
operadoras desejam limitar e cobrar o acesso de forma diferenciada. E
aqui mais uma vez vale a pena observar a cobertura jornalística atual
sobre o tema. As operadoras de telefonia são grandes anunciantes. Em
razão disso, a Globo tem se empenhado em explicar o porque da medida.
Com infográficos, depoimentos técnicos minuciosos e longas reportagens,
está claramente defendendo os amigos que detêm outro oligopólio.
Os barões da mídia estão pouco se
lixando para um ranking como o do Repórteres sem Fronteira. Estão sempre
atuando em bloco. Basta observar a reação orquestrada às notícias
internacionais recentes. O Guardian, o New York Times, o Fìgaro e outros
jornais estão tratando com seriedade e preocupação o que se passa por
aqui no cenário político. E nem era para ser diferente. Para quem está
de fora fica ainda mais evidente o teatro. Vá explicar para um gringo
que quase 400 deputados com a ficha suja votaram pelo impeachment de
alguém sem prova de crime.
Ato contínuo, a mídia brasileira
dedica-se a desqualificar essa leitura. Renata LoPrete, da GloboNews,
disse que eram comentários superficiais, carentes de fundamentações.
Curioso é que a mesma mídia internacional é vista como rainha da cocada
preta quando comenta sobre nossa economia interna, dá seus pitacos
prevendo até o que ainda não ocorreu. Quando é para especular, tudo bem?
A mando das diretorias, as redações
alternam o complexo de vira-lata com uma soberba vomitiva. Portanto, na
grande mídia você não verá destaque para este vergonhoso ranking da
Repórteres sem Fronteira, lá o que importa são os rankings de economia.
O ranking da ONG só confirma o quanto é
perigoso, para um jornalista, não fazer parte da mídia dos Marinho, dos
Saad, dos Mesquita. Para o público em geral, perigoso é informar-se
apenas por ali. Vira vítima das operadoras de telefonia, do mercado
automobilístico, da especulação imobiliária, financeira, e assim vai.
Todo tipo de golpe fica fácil num ambiente assim.
*Mauro Donato é Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo
The day after the impeachment vote in the lower house of Brazil’s
congress, one of the leaders of the effort, Senator Aloysio Nunes,
traveled to Washington, D.C. He had scheduled meetings with a number of
U.S. officials, including Thomas Shannon at the State Department.
Shannon has a relatively low profile in the media, but he is the
number three official in the U.S. State Department. Even more
significantly in this case, he is the most influential person in the
State Department on U.S. policy in Latin America. He will be the one
recommending to Secretary of State John Kerry what the U.S. should do as
the ongoing efforts to remove President Dilma Rousseff proceed.
Shannon’s willingness to meet with Nunes just days after the
impeachment vote sends a powerful signal that Washington is on board
with the opposition in this venture. How do we know this? Very simply,
Shannon did not have to have this meeting. If he wanted to show that
Washington was neutral in this fierce and deeply polarizing political
conflict, he would not have a meeting with high-profile protagonists on
either side, especially at this particular moment.
Shannon’s meeting with Nunes is an example of what could be called
“dog-whistle diplomacy.” It barely shows up on the radar of the media
reporting on the conflict, and therefore is unlikely to generate
backlash. But all the major actors know exactly what it means. That is
why Nunes’ party, the Social Democracy Party (PSDB), publicized the
meeting.
To illustrate with another example of dog-whistle diplomacy: On June
28, 2009, the Honduran military kidnapped the country’s president, Mel
Zelaya, and flew him out of the country. The White House statement in
response did not condemn this coup, but rather called on “all political
and social actors in Honduras” to respect democracy.
This dog-whistle signal worked perfectly; most importantly the coup
leaders and their supporters in Honduras, as well as every diplomat in
Washington, knew exactly what this meant, even as statements condemning
the coup and demanding the restoration of the democratic government came
pouring in from around the globe. Everyone knew that this was, in
diplomatic code, a clear statement of support for the coup. The events
that followed over the next six months, with Washington doing everything
it could to help consolidate and legitimize the coup government, were
pretty much predictable from this initial statement. Hillary Clinton
later admitted in her 2014 book, “Hard Choices,” that she worked
successfully to prevent the return of the democratically elected
president.
Tom Shannon has a reputation among Latin American diplomats as an
amiable fellow, a seasoned career foreign service officer who is willing
to sit down and talk with governments that are at odds with U.S. policy
in the region. But he has had a lot of experience with coups. Some of
Hillary Clinton’s released emails shed additional light on his role in
helping to consolidate the Honduran coup. He was also a high-level State
Department official during the April 2002 coup in Venezuela, in which
there is substantial documentary evidence of U.S. involvement. And when
the parliamentary coup in Paraguay took place in 2012 — something
similar to what is happening in Brazil but with a process that impeached
and removed the president in just 24 hours — Washington also
contributed to the legitimation of the coup government in the aftermath.
(By contrast, South American governments suspended the coup government
in Paraguay from MERCOSUR, the regional trading bloc, and UNASUR [the
Union of South American Nations).] Shannon was ambassador to Brazil at
that time, but was still one of the most influential officials in
hemispheric policy.
The U.S. State Department responded to questions about Nunes’
meetings by saying, “This meeting had been planned for months and was
arranged at the request of the Brazilian embassy.” But this is
irrelevant. It merely means that Brazilian embassy staff were, as a
matter of diplomatic protocol, involved in arranging the meetings. This
does not imply any consent by the Rousseff administration, nor change
the political message that the meeting with Shannon sends to the
opposition in Brazil.
All of this is of course consistent with Washington’s strategy in
response to the left governments that have governed most of the region
in the 21st century. They have rarely missed an opportunity to undermine
or get rid of any of them, and their desire to replace the governing
Workers’ Party in Brazil with a more compliant, right-wing government is
fairly obvious.
Mark Weisbrot is co-director of the Center for Economic and Policy
Research in Washington, D.C., and the president of Just Foreign Policy.
He is also the author of the new book “Failed: What the ‘Experts’ Got
Wrong About the Global Economy“ (2015, Oxford University Press).
O mundo acordou de vez para o golpismo alucinado da
imprensa brasileira. A ong Repórteres Sem Fronteiras, que faz um dos
rankings mais respeitados do mundo sobre liberdade de expressão,
rebaixou o Brasil mais cinco pontos, para 104, num conjunto de 180
países. Em 2010, o Brasil estava em 58º lugar.
Diferente do que ocorre em alguns países, porém, o rebaixamento não
ocorre por repressão de governos a jornalismo crítico, e sim o
contrário: pela adesão de empresas de comunicação a uma agenda política
antidemocrática. A ONG denuncia, sem meias palavras, o apoio da mídia
brasileira ao golpe como uma das razões para o rebaixamento da pontuação
do Brasil no ranking de liberdade de expressão.
Vou traduzir apenas um trecho. Os internautas que quiserem traduzir a íntegra, divulguem aí nos comentários.
Trecho:
"(...) AO mesmo tempo, a propriedade dos meios de
comunicação continua concentrada em mãos das famílias mais ricas,
ligadas à classe política.
O problema dos "coroneis midiáticos", que a RSF descreveu em 2013 em
seu relatório "O país dos 30 Berlusconis" continua intocável.
Os "coroneis" são usualmente proprietários de terras, industriais,
que também são deputados ou governadores, e controlam a opinião pública
em suas regiões através dos meios de comunicação. Como resultado, os
meios de comunicação são fortemente dependentes dos centros de poder
político e econômico.
A cobertura da mídia brasileira à crise política em curso acentuou
esse problema. De maneira pouco velada, os principais meios de
comunicação incitaram o público a ajudar na derrubada da presidenta
Dilma Rousseff.
Os jornalistas que trabalham nestes grupos estão claramente sujeitos à
influência de interesses privados e partidários, e este permanente
conflito de interesses prejudicam fortemente a qualidade de suas
reportagens."
Continuing conflicts of interest in the Brazilian media and a very
disturbing level of violence against journalists have caused Brazil to
fall another five places in the 2016 World Press Freedom Index,
published today by Reporters Without Borders (RSF).
Brazil is now ranked 104th out of 180 countries, a position clearly
unworthy of a country meant to be a regional model. It was ranked 58th
in 2010.
Why has this happened? The most important reason is increasing
violence against journalists and a lack of political will at the highest
level to protect journalists effectively. As well as the fall in the
rankings, Brazil’s performance indicator, which measures the level of
media freedom violations, rose from 25.78 in 2014 to 31.93 in 2015 – a
significant deterioration.
The Latin American giant nonetheless remains ahead of some of its
regional neighbours such as Ecuador (109th), Guatemala (121st), Colombia
(134th), Venezuela (139th), Mexico (149th) and Cuba (174th).
In Brazil, an economic recession and political instability have
reinforced the main obstacles to media freedom and the climate of
hostility towards journalists. At the same time, media ownership
continues to be concentrated in the hands of leading industrial families
linked to the political class.
The problem of Brazil’s “colonels,” which RSF described in 2013 in
its report, “The country of 30 Berlusconis,” has continued unabated. The
so-called “colonels’ are usually major landowners or industrialists who
are also legislators or state governors and who control opinion-making
in their regions because, directly or indirectly, they own several local
media outlets. As a result, the media are heavily dependent on the
centres of economic and political power.
Brazilian media coverage of the country’s current political crisis
has highlighted the problem. In a barely veiled manner, the leading
national media have urged the public to help bring down President Dilma
Rousseff. The journalists working for these media groups are clearly
subject to the influence of private and partisan interests, and these
permanent conflicts of interests are clearly very detrimental to the
quality of their reporting.
Brazil’s fall in the Index is also the result of the lack of a
national mechanism for protecting journalists in danger and for
combatting the prevailing impunity for crimes of violence against
journalists, which is facilitated by the ubiquitous corruption.
With seven journalists murdered in 2015 alone, Brazil continues to be
the western hemisphere’s third deadliest country for media personnel,
after Mexico and Honduras. All of them were investigating sensitive
subjects such as corruption and organized crime.
Organized crime’s firm hold on certain regions far from any major
city makes covering these subjects particular complicated there, while
the failure to punish most murders of journalists encourages their
recurrence.
Finally, there has been no let-up in the growing problem of military
police violence against journalists during street demonstrations, a
problem that began in 2013. Both Brazilian and foreign journalists
covering demonstrations are often insulted, threatened or arbitrarily
detained. They are also often directly targeted by demonstrators, who
identify them with the owners of the media they work for.
Published annually by RSF since 2002, the World Press Freedom Index
measures the level of freedom available to journalists in 180 countries
using the following criteria – pluralism, media independence, media
environment and self-censorship, legislative environment, transparency,
infrastructure, and abuses.
Criada a escassez, teles vão cobrar pela abundância na internet
Luís Osvaldo Grossmann ... 20/04/2016 ... Convergência Digital
As grandes operadoras de telecomunicações, que no Brasil
respondem por quase 90% das conexões à internet, parecem ter colocado
governo onde queriam: virá como aparente pressão do Ministério das
Comunicações a capitulação das empresas sobre as ofertas de banda larga
fixa. Um acordo nesse sentido já começou a ser costurado e deve ser
apresentado na próxima semana.
“Já iniciamos o diálogo com uma das operadoras e na
semana que vem vamos trazer todas para tratarmos da continuidade dos
planos ‘ilimitados’, quando esperamos que todas as operadoras firmem um
compromisso público, um documento que já estamos preparando”, afirmou
nesta quarta, 20/4, o ministro André Figueiredo.
Os termos desse “compromisso público” serão,
portanto, no sentido de “exigir” que as empresas ofereçam planos sem
limite de franquia, ainda que mantenham paralelamente as ofertas com
esse limite. Além disso, também será colocada a promessa de que não
haverá alteração nos contratos vigentes. Parece uma vitória dos
consumidores contra o que veem como abusos das teles.
Só parece. Os termos que o ministério está
preparando foram sugeridos pela Vivo, justamente a operadora com quem
foi iniciado o diálogo. Do ponto de vista da precificação das ofertas, a
criação de um serviço ‘premium’ atende o que as empresas sempre
defenderam na internet, a criação de segmentações. Se esse ‘premium’ é
quase compulsório, o prêmio pode ser ainda maior.
O próprio André Figueiredo, ao divulgar a costura
com as teles, adianta que a espera que as empresas não aumentem muito os
preços. Na véspera, o presidente da Anatel, João Rezende, já dissera
que obrigar as operadoras a venderem planos ‘ilimitados’ teria como
resultado esperado aumento de preços e reduções de velocidade.
Escassez
As empresas defendem o uso de franquias pois elas
atacam o consumo ‘excessivo’ de dados por parte dos internautas, que
acabariam provocando congestionamentos na internet. Ao impor limites de
download, elas estariam protegendo a maioria. “Algum tipo de equilíbrio
há de se ter porque senão teremos o consumidor que consome menos pagando
por aqueles que estão consumindo mais”, concorda o presidente João
Rezende.
Acontece que se trata de uma criação artificial de escassez,
especialmente na internet fixa. Nos EUA, onde o debate sobre os ‘data
caps’ começou anos antes do Brasil, estudos (como esse ou esse)
apontaram essa artificialidade, ao ponto de o presidente da associação
nacional das teles americanas (NCTA), Michael Powell, vir a público para
admitir que o problema não eram os congestionamentos: “Nosso principal
propósito é como justamente monetizar altos custos fixos”, disse.
Talvez a maior evidência nesse sentido seja que as
franquias são adotadas independentemente do horário dos acessos. Ou
seja, se fosse efetivamente um problema de congestionamento, com ‘heavy
users’ prejudicando o tráfego dos demais, o incentivo deveria promover o
uso fora do horário de pico, mas isso não acontece.
O uso de franquias, portanto, além de poder criar
aquele mercado ‘premium’, também abre outras frentes de “monetização” –
os acordos para que certos conteúdos não consumam o limite de dados
imposto. Acordos com bancos e redes sociais, como Facebook ou WhatsApp,
já existem na internet móvel, onde o sistema de franquia é ainda mais
arraigado.
Umberto Eco: 14 lições para identificar o neofascismo e o fascismo eterno
Intelectual italiano, romancista e filósofo,
autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa" morreu em 19 de
fevereiro, aos 84 anos; 'O fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às
vezes em trajes civis', diz Eco
A Revista Samuelreproduz o texto de Umberto Eco Ur-Fascismo,
produzido originalmente para uma conferência proferida na Universidade
Columbia, em abril de 1995, numa celebração da liberação da Europa:
Agência Efe
Umberto Eco morreu na última sexta-feira (19/02), aos 84 anos, em sua casa, em Roma
'O Fascismo Eterno'
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um
concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas
italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”.
Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento,
“liberdade” ainda não significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes,
que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não
foi mal exercício.
Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os
resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de
alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e
desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área,
em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os
partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros
confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas,
pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando
seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos
grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais
significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falou com voz
rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos
sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela
liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os
membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que
liberdade de palavra significa também liberdade da retórica.
Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram
afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph,
que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus
gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da
família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa
naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão
Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa
educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira
imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas
de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente,
faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro
chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o
chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte.
Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma
sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição
normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a
Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas
e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”.
Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu
significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido
liberados.
Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a
Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a
minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o
significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho
saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela
liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que
derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber
que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito.
Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista.
É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma
propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no
movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas
cores.
Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão
geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo
luminoso — escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a
Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o
sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para
Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos
grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de
coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo
verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista
que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até
acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que
importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um
empreendimento comum de gente das mais diversas cores.
Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um
trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação
nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida.
Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão
e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar
não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava
sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa
antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que
seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em
circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini
baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na
utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de
conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma
nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia
parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir
que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é
certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho
fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários
movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia,
não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como
movimento capaz de mobilizar uma nação inteira.
Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as
ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um
regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma
série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de
pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa
(para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.
Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas
toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma
luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram",
de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos
com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado
da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” —
entendendo com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral
de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos
1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão
oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e
ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer
ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo
eram regimes totalitários.
Wikicommons
Hitler e Mussolini em Munique, em 1940
O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente
totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade
filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o
fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o
fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito
ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma
noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca
realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha
apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a
Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes
fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda
plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar
sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos
seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e
não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o
fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país
europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma
espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini.
O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um
folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no
exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que
surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia,
Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia,
Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não
falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes
liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes
reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente
revolucionária à ameaça comunista.
Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente
para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma
denominação pars pro toto para movimentos totalitários
diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os
elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado
quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma
quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1].
O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de
diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É
possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e
revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios
concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o
livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária,
mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que
esperavam uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e
sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real,
permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a
quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei
despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda
dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua
velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase
jacobinas.
Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o
arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der
Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia
lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos
fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos
edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes
prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista
inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista
(recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del
Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo,
patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai,
que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de
vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas,
criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito.
O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia
teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à
categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo
— com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de
entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo.
Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por
motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial,
celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes
aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o
fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições
rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a
Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado
membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito.
Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais
do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação
fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova
cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão
intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum controle
ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem
tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos
intelectuais para controlá-los.
No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma
reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido
elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O
sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista
do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente,
embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente
ao um jargão tão obscuro.
O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci
foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram
assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos
desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o
poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o
judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre
as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um
exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um
“desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não
tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente
articulado a alguns arquétipos.
Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um
nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de
Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e
anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o
fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a
noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a
noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma
ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma,
pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades
diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”: 1 - 2 - 3 - 4 abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é
caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim
por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em
comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto
c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2,
mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da
ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece,
por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e
1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um
regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser
reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos
Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico.
Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca
fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da
mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao
fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas,
Julios Evola.
A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de
características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de
“Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser
reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de
outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas
se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.
1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o
culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não
somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da
Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma
reação ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas
com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma
revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação
permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas.
Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos
textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é
somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de
crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições.
Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando
parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas
aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi
anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua
obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento
fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A
gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas
ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius
Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a
alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para
demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente
ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova
evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a
indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu
saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo
Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade.
Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os
tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores
espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de
seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o
aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden).
A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de
1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos
como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode
ser definido como “irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende também do culto da ação
pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e
sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a
cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes
críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em
cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como
“Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As
universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao
mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais
fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura
moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas.
O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de
modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o
desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o
Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade.
O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o
natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou
que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é,
portanto, racista por definição.
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou
social. O que explica por que uma das características dos fascismos
históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas
por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela
pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos
“proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o
lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará
nessa nova maioria seu auditório.
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade
social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de
todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”.
Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os
inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do
complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir
sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à
xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são,
em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao
mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão
pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza
ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me
que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais
frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos
e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua
assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem
derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro
retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos
demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são
constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do
inimigo.
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes
“vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o
pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso
traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os
inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final
e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução
final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que
contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista
conseguiu resolver essa contradição.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer
ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso
da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas
implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de
pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo
do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão
pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem
existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi
obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua
força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade
e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado
hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado
despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os
seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para
tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser
excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este
culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por
acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente
normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com
dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a
felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à
morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói
Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é
preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à
morte.
12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são
jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder
para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém
pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais
não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é
um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que
são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja
pênis permanente.
13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo
qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos
individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político
do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas).
Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e
“o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que
exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode
ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo
perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas
pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma
ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não
precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no
qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser
apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo
qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos
parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no
Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”.
De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e
pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em
dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do
povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua”
foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o
Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a
diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou
fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com
o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico.
Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua,
mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.
Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me
concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo
informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha
sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao
jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes
eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos,
percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e
li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis
partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido
Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei
que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só
existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos
partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto,
logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem
aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam
como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade:
liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas
palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em
toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras
renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja
esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em
trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na
boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”.
Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as
vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador
para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do
mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a
democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando
dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilatiMordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini. Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuziladosMorder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.
Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais, Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
[1] Usado
atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos
imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
A escritora Ana Maria Machado, colunista do Globo,
escreveu um artigo há dois dias em que defende a "imprensa" e faz
observações que considero equivocadas. Como achei que o artigo veio
elaborado, apesar dos erros, com certa inteligência, decidi respondê-lo
publicamente. Fá-lo-ei intercalando meus comentários, para facilitar
para mim mesmo.
O texto dela vem em fonte normal. O meu texto vem em negrito e entre colchetes.
Acusam a imprensa de mentir, passando por cima do fato de que já foramlocalizados milhões de dólares no exterior
Na segunda metade do século XIX, os ingleses impuseram ao governo
brasileiro a proibição do tráfico de escravos. Podiam até estar agindo
apenas por seu próprio interesse, de modo a garantir a futura existência
de um mercado consumidor para a produção das suas fábricas que se
multiplicavam com a Revolução Industrial. Mas, nesse momento,
desempenhavam um papel progressista e defendiam a dignidade humana. Para
garantir o cumprimento dessa exigência aparentemente libertária,
embarcações britânicas patrulhavam as águas do Atlântico Sul,
aprisionando os tumbeiros que conseguissem interceptar. É claro que o
contrabando negreiro continuava, às escondidas. E o Brasil fazia de
conta que suspendia o tráfico. Mas agia apenas para manter as
aparências. Daí a origem da expressão “para inglês ver”, usada para
exibirmos uma imagem falsa aos olhos do estrangeiro. E ficarmos bem na
foto, como se diz hoje.
[Até aí tudo bem, embora me cause calafrios falar em tráfico
de escravos num artigo que irá defender um golpe tocado justamente pelos
escravocratas de hoje! Ou alguém tem dúvida de que as forças golpistas
de hoje, incluindo o Globo, não são as mesmas que sempre defenderam a
manutenção da escravidão no país? Mas isso é especulação, passemos às
críticas objetivas.]
Até há pouco tempo, os meios universitários estrangeiros e a imprensa
internacional em geral distinguiam bastante bem a situação política
brasileira da existente em seus vizinhos hispano-americanos, bem como em
variados regimes ditatoriais de países emergentes em outras partes do
mundo. E não apenas pelo nosso potencial econômico e pela disposição de
enfrentamento e correção da desigualdade social por meio de programas de
distribuição de renda e diminuição do abismo entre as classes. Mas,
desde o fim da ditadura militar, o Brasil vinha mostrando a consolidação
de suas instituições democráticas, eleições regulares com possibilidade
de alternância de poder, imprensa livre e atuante, poderes
independentes, respeito à Constituição. Incontáveis vezes, em foros de
debate internacional, tive a oportunidade de ouvir desses observadores
análises que destacavam a autonomia da imprensa e a soberania do
Judiciário como fundamentais traços distintivos da democracia
brasileira, frente aos vizinhos bolivarianos.
[Preconceitos tolos e opinião superficial. O Judiciário brasileiro é um
dos piores do mundo. Há mais de 200 mil brasileiros presos sem sentença.
Nossas polícias são as que mais matam no mundo e isso é culpa,
essencialmente, de um Judiciário cúmplice. A opinião negativa sobre o
Judiciário "bolivariano" de outros países é opinião, em geral, de quem
não conhece esses países e apenas externa o famigerado senso comum, que é
invariavalmente fruto da campanha da mídia imperialista para atacar
governos populares, que ousaram romper privilégios seculares].
É exatamente nessa área, de desmoralização da imprensa e da Justiça,
que o governo resolveu atuar agora, em sua ofensiva de contranarrativa
do que está acontecendo no país desde que há dois anos começaram as
investigações policiais de irregularidades num posto de gasolina e lava a
jato de automóveis no Paraná, trazendo à baila doleiros, sonegação
fiscal, evasão de divisas, cartel de empreiteiras, licitações
combinadas, desvio de dinheiro da Petrobras, propina a dirigentes e
políticos, compra de apoio parlamentar, contas ilegais no exterior. E
mais, ao que tudo indica, tentativa de obstrução da Justiça.
[Desculpe, Ana, mas não é verdade. A crítica à imprensa e ao
judiciário vem da sociedade civil, organizada e desorganizada. Não do
governo, que infelizmente é mudo. As denúncias contra a Lava Jato são
feitas por juristas reconhecidos e até ministros do STF. Hoje está claro
para muita gente, fora do governo, que se trata de uma operação
recheada de ilegalidades, desde a sua origem. E não houve nenhuma
tentativa de obstrução da Justiça - quer dizer, houve sim, por parte da
mídia, que passou a ser parte integrante da operação Lava Jato,
recebendo vazamentos seletivos e pressionando tribunais superiores,
inclusive via chantagens de assassinato de reputação, a não contestarem
as decisões de Sergio Moro. O habeas corpus, por exemplo, foi
praticamente abolido na Lava Jato. Essa visão fascista do sistema penal
vê obstrução de justiça apenas quando identifica qualquer coisa que
ajuda o réu; mas é evidente que se obstrui a justiça quando se persegue o
réu ou há qualquer abuso de autoridade. Abuso de autoridade é obstrução
de justiça também.]
Nessa estratégia vimos nos últimos dias uma escalada de ações para
inglês ver, muitas vezes manipulando gente de bem, que não compactua com
bandidos e se deixou convencer de que tudo não passa de uma perseguição
pessoal do Judiciário e da mídia contra Lula ou o governo, ou de que há
mesmo um complô dos inimigos do povo para tirar dos pobres tudo o que
eles melhoraram nos últimos tempos ou liquidar a Petrobras para que os
ianques venham se apossar dela a preço de banana.
[Ana, a expressão "gente de bem" me causa novamente arrepios.
Se há "gente de bem", então deve haver "gente do mal", e fica
subentendido no texto que essas são as pessoas que não concordam com
suas opiniões. Esse tipo de postura, a meu ver, está na raíz da
emergência da intolerância e truculência política que vemos hoje. Não,
Ana. Essa não é uma postura democrática. Não existe essa coisa de "gente
do bem", pelo amor de Deus. Existe gente, só. E viva Clarice Lispector,
que sabia disso. Ana, há sim perseguição pessoal a Lula e ao governo,
por parte de uma mídia que, você sabe muito bem, é historicamente
golpista. Aliás, você sabe mas finge não saber porque escreve para o
jornal mais golpista de todos. E você só escreve aí porque tem essa
opinião. Se tivesse outra, não escreveria. E suas observações sobre os
ianques e a Petrobrás são de uma superficialidade terrificante. O
governo americano, através da NSA, espionou a Petrobrás. O governo
americano destruiu praticamente o oriente médio inteiro, para se apossar
de seu petróleo. Então sejamos um pouco mais objetivos e realistas ao
falar de geopolítica do petróleo, ok? Ela existe e ela é brutal. Outra
coisa: o seu texto finge que não existe política. Nesse ponto, ele é
despolitizante. Há setores que pretendem remover o PT do poder e
eliminar Lula. Parte disso é do jogo. Lula sabe disso. Os métodos
usados, porém, tem sido perigosamente antidemocráticos. Perseguir Lula
por causa de pedalinhos e reforma de apartamento que não é dele teve um
custo alto para a Lava Jato e a mídia: se auto ridicularizaram.]
Para isso, desqualificam as investigações. Acusam a imprensa de
mentir, passando por cima do fato de que já foram localizados e
bloqueados milhões de dólares no exterior, para não falar dos milhões de
reais já recuperados. Repetem que impeachment é golpe — por mais que
ministros e ex-ministros do STF já tenham negado essa interpretação,
desde que os preceitos constitucionais sejam respeitados. Prendem-se a
tecnicalidades e firulas jurídicas, esquecendo o ensinamento de tantos
outros juristas, como Evandro Lins e Silva, citando Nélson Hungria, por
ocasião do impeachment do Collor: “O sigilo não protege o crime.”
[Não, Ana. As investigações se auto-desqualificam. As
críticas chegam de toda a parte, inclusive da imprensa internacional.
Não feche os olhos às críticas. As críticas são democráticas e
saudáveis. Pare de ler o Globo por um momento e olhe a internet. Já
aconteceram milhares de atos, no Brasil e no mundo, contra a justiça
partidária e contra o golpe. Nenhum desses atos, ou quase nenhum, foi
organizado pelo governo ou pelo PT. Até o Porta dos Fundos fez um vídeo
engraçadíssimo sobre esse processo de perseguição seletiva. Intitula-se
Delação. Procure no youtube. Gregorio Duvivier não é "governo". Marcelo
Freixo, deputado estadual pelo PSOL, oposição ao governo, também critica
a justiça partidária.]
Então, a presidente dá entrevista à imprensa internacional, e faz
comício no Planalto diante de embaixadores estrangeiros para angariar
apoios à sua tese de que o Brasil não está funcionando de modo
democrático. Um diplomata usa canais oficiais para atacar as
instituições do país. Intelectuais respeitáveis, por mais bem
intencionados que possam ser, abrem mão de qualquer análise menos
rasteira e se precipitam em assinar manifestos que enfileiram palavras
de ordem sem compromisso com os fatos ou qualquer sutileza. Ao colocar
sua própria inteligência a serviço de um palavrório que não assinariam
individualmente, embarcam na manada, esquecem sua responsabilidade e
acham que estão prestando um serviço à democracia e ao Brasil.
[Aí você insulta os intelectuais! Quer dizer que apenas você, uma
colunista do jornal Globo, tem razão? Os intelectuais assinam manifestos
sem lê-los, sem fazer análise, sem entender a conjuntura? Ora, Ana. Me
desculpe, mas os intelectuais me parecem entender de política e direito
muito mais do que você. Ou você acha que os milhares de cientistas
políticos, juristas, escritores, artistas, que assinam manifesto contra o
golpe, são todos estúpidos e só você, do alto de sua coluna no Globo,
sabe o que está acontecendo? Mais uma vez, você está sendo, apesar dos
trajes elegantes de colunista platinada, intolerante e ajudando a
aumentar o caldo de intolerância política e fascismo que temos visto
crescer no país. Respeite quem pense diferente, Ana!]
A investigação contra Collor foi possível, entre outras coisas,
porque ele mesmo acabara com a possibilidade de emissão de cheque ao
portador, obrigando à identificação do beneficiário. A Lava-Jato vai em
frente, entre outras coisas, porque a Constituição de 88 deu poder ao
Ministério Público e no próprio governo Dilma uma lei instituiu a
colaboração premiada. Não é a Inquisição do Moro. Por mais que a chamem
de delação, é uma ferramenta poderosa para revelar crimes ocultos — se
eles existem e depois são comprovados. Isso não é perseguição nem golpe.
É fato. Para qualquer um refletir, e não apenas inglês ver.
[Ana, a Constituição de 88 criou um monstro. Quem o disse não
foi Lula ou ninguém do governo. Foi Sepúlveda Pertence, referindo-se ao
Ministério Público. Ele se tornou corporativo e vulnerável ao
surgimento de núcleos conspiradores. O ódio à política dentro do
Ministério Público, por sua vez, nasce do patrimonialismo e
autoritarismo históricos de nosso país. Endeusar o Ministério Público ou
o Judiciário não me parece democrático. A imprensa não deveria ser
crítica? Não deveria veicular críticas e visões plurais sobre todas as
instituições? Por que esse chapa branquismo súbito em relação ao
Ministério Público? Estamos sim diante de um golpe, apoiado pelo mesmo
jornal no qual você escreve. A verdade é dura, Ana, a Globo apoiou a
ditadura. E ainda apoia. ]
Ana Maria Machado é escritora [Eu também sou escritor, e blogueiro.]
Grande mídia começa a perceber que o golpe já foi desmascarado.
A Lava Jato é uma operação ilegal, golpista, marcada desde a sua origem por vários tipo de abuso, tortura, arbítrios e crimes.
Sérgio Moro e procuradores deveriam estar presos pelo prejuízo de
centenas de bilhões que causaram ao país ao transformarem o necessário
combate à corrupção numa pantomina golpista, que destruiu ou quase
destruiu grandes empresas nacionais.
Quem pagará pelos milhões de postos de trabalho destruídos por tamanha irresponsabilidade!
Quem pagará pelo risco de colapso financeiro que ainda incide sobre o
país, após a Lava Jato desestruturar a espinha dorsal econômica
brasileira?
Leiam essa matéria do UOL, que mostra que setores da mídia estão
tentando pular fora do barco, para minimizarem o papel bandido que
desempenharam esse tempo todo, ao chancelarem essa palhaçada.
Não, não poderão repetir o que fizeram nos anos 60, quando, depois de apoiarem o golpe, fingiram ser contra ele.
A mídia foi cúmplice, ainda é cúmplice, de uma operação que ameaçou e ameaça o Estado Democrático de Direito.
A Globo, mais que qualquer outro agente político, é o principal
responsável pelos crimes denunciados na reportagem abaixo, porque uma
concessão pública jamais deveria usar seu espaço para chancelar uma
tentativa de subversão da ordem democrática.
Houve formação de quadrilha entre procuradores da Lava Jato, Sergio Moro e Globo.
Importante ressaltar ainda que essa denúncia contra a Lava Jato só é
publicada agora por causa das grandes mobilizações populares contra o
golpe.
Não fosse o povo na rua, o golpe seria dado, a democracia abolida e a
Lava Jato transformada em modus operandi de uma nova ditadura, muito
mais sinistra que a de 1964: invasão de privacidade, tortura, abuso de
autoridade, arbítrios, truculências policiais, sempre com objetivo de
intimidar os cidadãos, sufocar a liberdade e controlar a política.
Eu também quero saber se a ministra Carmen Lúcia, que recebeu prêmio
da Globo (prêmio que eu chamo de propina) há alguns dias, mantém suas
afirmações sobre a Lava Jato, diante das denúncias mostradas abaixo.
Sergio Moro também recebeu o prêmio da Globo - e agora está claro
por que a Globo o premiou, porque sabia que Moro seria peça chave do
golpe.
Documentos indicam grampo ilegal e abusos de Moro na origem da Lava Jato
Por Pedro Lopes e Vinícius Segalla
Do UOL, em São Paulo 03/04/201606h00
STF irá julgar nas próximas semanas se Moro continuará ou não julgando os crimes relacionados à Operação Lava Jato
Nas últimas semanas, a operação Lava Jato levantou polêmica ao
divulgar conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e
a atual presidente Dilma Rousseff (PT). Os questionamentos sobre a
legalidade da investigação, entretanto, surgem desde sua origem, há
quase dez anos. Documentos obtidos pelo UOL apontam indícios da
existência de uma prova ilegal no embrião da operação, manobras para
manter a competência na 13ª Vara Federal de Curitiba, do juiz Sergio
Moro, e até pressão sobre prisioneiros.
Esses fatos são alvo de uma reclamação constitucional, movida pela
defesa de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula, no STF (Supremo
Tribunal Federal). A ação pede que as investigações da Lava Jato que
ainda não resultaram em denúncias sejam retiradas de Moro e encaminhadas
aos juízos competentes, em São Paulo e no próprio STF. Para ler a
íntegra do documento, clique aqui.
Como presidente do Instituto Lula, Okamatto também foi alvo da 24ª
fase da operação. Ele foi ouvido pela força-tarefa para tentar
esclarecer como o instituto e a LILS Palestras receberam R$ 30 milhões
de empreiteiras envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. Parte
do dinheiro foi transferido do Instituto Lula para empresas de filhos do
ex-presidente, segundo a investigação.
A reportagem ouviu nove profissionais do Direito, dentre advogados
sem relação com o caso e especialistas de renome em processo penal, e a
eles submeteu a reclamação constitucional e os documentos obtidos. Os
juristas afirmam que a Operação Lava Jato, já há algum tempo, deveria
ter sido retirada da 13ª Vara Federal de Curitiba, além de ter sido
palco de abusos de legalidade.
O portal também questionou o juiz Sergio Moro sobre o assunto, mas o
magistrado preferiu não se pronunciar (leia mais ao final desta
reportagem).
Veja os principais pontos questionados:
Origem em grampo ilegal
A Lava Jato foi deflagrada em 2014, mas as investigações já
aconteciam desde 2006, quando foi instaurado um procedimento criminal
para investigar relações entre o ex-deputado José Janene (PP), já
falecido, e o doleiro Alberto Youssef, peça central no escândalo da
Petrobras. Entretanto, um documento de 2009 da própria PF (Polícia
Federal), obtido pelo UOL, afirma que o elo entre Youssef e Janene e a
investigação surgiram de um grampo aparentemente ilegal. (Representação da Polícia Federal admite que investigação começou a partir de grampo entre advogado e cliente)
A conversa grampeada em 2006, à qual a reportagem também teve acesso,
é entre o advogado Adolfo Góis e Roberto Brasilano, então assessor de
Janene. Seu conteúdo envolve instruções sobre um depoimento, exercício
típico e legal da advocacia. Os desdobramentos dessa ligação chegaram,
anos depois, a Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras e o primeiro
delator da Lava Jato. (Conversa entre Adolfo Góis e Roberto Brasiliano deu origem a investigação que desaguaria na Lava Jato)
"Se as premissas estiverem corretas, realmente parece que se tratava
de conversa protegida pelo sigilo advogado-cliente. Nesse caso, a
interceptação telefônica constitui prova ilícita", explica Gustavo
Badaró, advogado e professor de Processo Penal na graduação e
pós-graduação da Universidade de São Paulo. "Essa prova contaminará
todas as provas subsequentes. É a chamada "teoria dos frutos da árvore
envenenada". Todavia, a prova posterior poderá ser mantida como válida,
desde que haja uma fonte independente", conclui o professor.
Lava Jato já deveria ter saído do Paraná
Os supostos delitos e criminosos que estão sendo investigados na
Operação Lava Jato não deveriam estar sendo julgados por Moro, segundo a
tese da defesa de Paulo Okamoto, corroborada por juristas ouvidos pela
reportagem. O principal ponto é que Moro não é o "juiz natural",
princípio previsto na Constituição, para julgar os crimes em questão.
De acordo com Geraldo Prado, professor de processo penal da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Universidade de Lisboa,
"na Lava-Jato, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba [onde atua Moro]
há muito tempo não é mais competente para julgar casos que remotamente
surgiram de investigação no âmbito do chamado caso Banestado. Pelas
regras em vigor, praticamente todos os procedimentos seriam ou de
competência de Justiças Estaduais ou da Seção Judiciária Federal de São
Paulo, porque nestes lugares, em tese, foram praticadas as mais graves e
a maior parte das infrações. Há, portanto, violação ao princípio
constitucional do juiz natural. Exame minucioso da causa pelo STF não
pode levar a outra conclusão."
A legislação brasileira estabelece critérios objetivos para
determinar quem julga determinado crime. O ponto principal é que um
crime, via de regra, será julgado no local onde ele foi cometido. Já
quando existem crimes conexos, ou seja, que têm relação com delitos
previamente cometidos pelos mesmos autores, eles podem vir a ser
julgados pelo mesmo juízo responsável pela apreciação dos crimes
iniciais.
Em casos de conexão, a lei prevê que o que determina quem será o juiz
natural para o julgamento são os seguintes critérios, nessa ordem: o
lugar onde ocorreu o delito que tem a pena mais grave, o lugar em que
houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas
forem de igual gravidade, e a competência pela prevenção, que se dá
quando um juiz já julgou crimes relacionados ao mesmo esquema ilegal.
Segundo Moro, é esse último critério que faria dele o juiz natural de
todos os delitos: os crimes seriam conexos a outro que ele já vinha
julgando.
Tanto é assim que, em todas as decisões relacionadas aos crimes
investigados na operação, o magistrado inicia seu texto com o seguinte
cabeçalho:
"Tramitam por este Juízo diversos inquéritos, ações penais e
processos incidentes relacionados à assim denominada Operação Lava Jato.
A investigação, com origem nos inquéritos 2009.70000032500 e
2006.70000186628, iniciou-se com a apuração de crime de lavagem
consumado em Londrina/PR, sujeito, portanto, à jurisdição desta Vara,
tendo o fato originado a ação penal 504722977.2014.404.7000".
Os inquéritos a que Moro se refere, de lavagem de dinheiro, foram
cometidos no Banestado, e nada têm a ver com as fraudes e desvios de
dinheiro público que ocorreram na Petrobras, que são o principal foco da
Lava Jato. A ligação, alegada por Moro, é que que alguns dos
investigados no Banestado, como Janene e Yousseff, foram flagrados em
escutas telefônicas falando sobre outros supostos crimes, estes sim
relacionados à Petrobras.
O STF, no entanto, já proferiu decisão afirmando que escutas
telefônicas que revelem crimes diferentes dos que estão sendo
investigados devem ser consideradas provas fortuitas, não tendo a
capacidade de gerar a chamada conexão por prevenção. É o que afirma o
advogado Fernando Fernandes, que defende Paulo Okamotto, na ação que
move no STF, classificando a prática de "jurisprudência totalitarista".
O professor Badaró concorda. "Houve um abuso das regras de conexão
na Lava Jato. Além disso, a conexão tem efeito de determinar a reunião
de mais de um crime em um único processo. Isso não foi feito na Lava
Jato. Ao contrário, os processos tramitam separados". O advogado André
Lozano Andrade, especialista em direito processual penal do escritório
RLMC Advogados, lembra ainda que um dos investigados, José Janene, tinha
foro privilegiado por ser deputado federal, na época. "Assim, os autos
deveriam ter sido remetidos para o STF. Além disso, deveriam os autos no
que se refere a outros crimes ter sido remetidos para São Paulo, tendo
em vista que o centro de operação dos ´criminosos´ era na Capital
Paulista. A competência por prevenção só se dá quando ausentes outras
formas de determinação de competência."
Longa investigação sem denúncia
A investigação que culminou na deflagração da Operação Lava Jato, a
respeito de crimes de lavagem de dinheiro ocorridos no âmbito do
Banestado, no Paraná, tiveram início em 2006. Daquele ano até 2014, se
passaram oito anos sem que a Polícia Federal, que comandava a operação,
oferecesse uma só denúncia contra os investigados, o que, na definição
da defesa de Paulo Okamoto, seria "investigação eterna".
Em 2013, após sete anos de investigações sobre o Banestado, Moro
reconheceu as dificuldades para apontar os crimes, mas concedeu um prazo
adicional de quatro meses para alguma conclusão. Esse prazo ainda foi
renovado por mais três meses após o final. O inquérito foi arquivado,
mas serviu como referência para a abertura de outro, que terminou na
Lava Jato.
(Após sete anos de investigações, depois de prolongar por 120 dias, Moro concede mais 90 dias) (Ao longo de oito anos, de 2006 a 2014, Moro quebrou inúmeros sigilos)
"A questão torna-se mais delicada se a investigação dura meses ou
anos e em seu curso são adotadas medidas cautelares que invadem a
privacidade alheia [afastamento de sigilos, interceptações etc.], sem
que a investigação seja concluída. A última hipótese é típica de estados
policiais e não de estados de direito", alerta o professor Geraldo
Prado.
"Embora não haja na legislação brasileira um prazo máximo para a
conclusão de investigações criminais, se os investigados estiverem
soltos, não é possível admitir que a investigação possa se desenvolver
sem um limite temporal", diz Gustavo Badaró.
Decisões tomadas sem consulta ao MPF
Durante os oito anos de investigações, o juiz Sérgio Moro autorizou
sucessivas quebras de sigilo fiscal, bancário, telefônico e telemático e
decretou prisões cautelares, sem consultar previamente o MPF
(Ministério Público Federal) ou até contrariando recomendação deste
órgão, que, por lei, é o titular da ação penal pública.
A história começou em 14 de julho de 2006, quando a PF fez uma
representação para Moro, com o objetivo de investigar a relação de
Youssef e Janene, solicitando a interceptação telefônica do primeiro.
Quando isso ocorre, o procedimento normal é remeter o pedido ao MPF,
para que se manifeste. Apesar disso, em 19 de julho de 2006, Moro
deferiu todos os pedidos da PF sem prévia manifestação do MPF. Em
seguida, não houve abertura de vista ao MPF, e a próxima manifestação da
PF nos autos só ocorreria quase um ano mais tarde, em 3 de maio de
2007. Durante todo esse tempo, os policiais mantiveram uma investigação
que incluía quebras de sigilo.
O primeiro despacho abrindo vista para o MPF só ocorreu em 9 de
setembro de 2008, mais de dois anos após a abertura da investigação. Os
procuradores, então, consideraram que já havia passado muito tempo de
investigação sem qualquer resultado frutífero, e recomendaram que Moro
extinguisse ali mesmo a investigação, a não ser que a PF se manifestasse
dando provas de que estariam para surgir fatos novos que justificassem a
continuidade das investigações.
(Em 2008, MPF avisou que investigações eram infrutíferas e não pediu mais diligências)
Moro, no entanto, resolveu ir contra a recomendação do MPF, e permitiu que a PF continuasse investigando.
Em 06 de janeiro de 2009, quase 120 dias depois, surgia uma mensagem
anônima com informações novas que levavam a crer que Yousseff e Janene
mantinham um esquema de lavagem de dinheiro. A PF, então, pediu novas
interceptações e quebras de sigilo bancário e fiscal de dezenas de
pessoas e empresas. O MPF recomendou que delimitasse o pedido, indicando
o período e os documentos a serem obtidos. Mais uma vez, Moro
descumpriu a recomendação dos procuradores, e autorizou todos os pedidos
da polícia. "Há motivos suficientes para deferir a quebra de sigilo
fiscal e bancário relativamente a todas essas pessoas, considerando as
suspeitas fundadas da prática de crimes expostas nas decisões anteriores
e nesta, bem como por se inserirem no rastreamento bancário em
andamento", disse o juiz, em despacho.
Outras nove vezes Moro deferiu quebras de sigilo, sem ouvir o MPF,
justificando sempre da mesma forma. "Não o ouvi (MPF) previamente em
virtude da necessidade de não haver solução de continuidade da
diligência e por se tratar de prorrogação de medidas investigatórias
sobre as quais o MPF já se manifestou favoravelmente anteriormente."
O professor Badaró explica as consequências desta prática. "O
deferimento em si de um pedido sem oitiva prévia do MP não é ilegal, mas
a sistemática utilização de tal expediente, por mais de um ano, permite
que se coloque em dúvida a imparcialidade do julgador".
Presos sem acesso a advogados e banho de sol
A fase mais recente da Lava Jato trouxe denúncias de violações de
direitos humanos -- prisões temporárias prolongadas com o objetivo de
obter delações premiadas. Durante este processo, presos teriam sido
isolados, privados de encontros com seus advogados e até de banho de
sol. Um parecer do Ministério Público Federal de junho de 2014 aponta a
ilegalidade dessas práticas e pedem que sejam interrompidas -- o preso
em questão é Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras. (Ministério Público Federal emitiu parecer pedindo fim de restrições a direitos em prisão preventiva de Paulo Roberto Costa)
Outro Lado
No dia 29 de março, a reportagem do UOL informou à assessoria do juiz
Sergio Moro que estava preparando uma reportagem sobre as supostas
irregularidades constantes na origem da Lava Jato. O portal enviou ao
magistrado a íntegra da reclamação constitucional interposta no STF pela
defesa de Paulo Okamoto. A reportagem destacou, ainda, que chamavam a
atenção "uma prova aparentemente ilícita (um grampo ilegal) que pode
estar na origem de tudo, e uma série de manobras que teriam sido feitas
pelo magistrado para manter a competência em Curitiba, contrariando o
princípio do juiz natural e as regras de processo penal aplicáveis."
Diante disso, solicitou, por fim, que Sergio Moro se manifestasse a
respeito do assunto.
Menos de uma hora após o envio da mensagem, a assessoria de Moro
respondeu ao UOL, afirmando que "o magistrado não se manifesta a não ser
nos autos".
Apesar do atual silêncio do juiz paranaense, Moro já proferiu
opiniões sobre alguns pontos ora em debate, seja em palestras, decisões
judiciais ou textos acadêmicos. Em um artigo que escreveu em 2004, por
exemplo, Moro defendeu o uso da prisão preventiva como forma de forçar
um investigado a assinar um termo de delação premiada". O juiz considera
válido "submeter os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a
confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e
levantando a suspeita de permanência na prisão pelo menos pelo período
da custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa,
de soltura imediata no caso de confissão".
Sobre o grampo de conversas entre advogado e cliente, em manifestação
enviada ao STF no último dia 29, a respeito do grampo dos advogados que
defendem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Moro afirmou que o
fez por considerar que um dos advogados seria parte do suposto grupo
criminoso que estaria sendo investigado, o que tornaria legal a
interceptação. Esta poderia ser uma explicação para o grampo
supostamente ilegal que deu início à Lava Jato.