sábado, 7 de maio de 2016

ESTAMOS DE MUDANÇA: NOVA PLATAFORMA

Comunica: site novo




Este agora é "o antigo blog"

Estava tudo lá: uma gente interessante, um curso novo numa universidade de longa história, sólida história, mas cheia de flexibilidades. Entre elas, a possibilidade de pensar alto sobre o próprio pensar alto e tentar entender do que é feito o rumor público – que move o mundo, afinal.
Em torno de um texto de Milton Santos [“Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal”], nos reunimos embaixo de uma árvore, depois numa sala, e foram dias seguidos, depois semanas desdobradas em um par de meses. Era 2010.
Em 2011 o blog nasceu como banco de dados, digamos que nasceu como uma coleta despretensiosa, que catava entre os ventos umas folhas e umas pedrinhas.
Veio 2012, e o grupo de estudos virou Grupo de Pesquisa.
Em 2013, muita gente chegou. Já alguns tinham ido embora e mandavam notícias de alhures.
De 2014 em diante, fomos virando mais que fórum permanente, mais que grupo de estudos, mais que grupo de pesquisa: somos hoje um coletivo de trabalho.
E, com isso, 2015 trouxe notícias de que a coleta aleatória era boa, sim, mas pouca, diante do que se assumia: fazer convergirem esforços, alimentar a sinergia de diferentes buscas e criar – porque sem criação nenhum pensamento de fato se pensa.
O blog já não tinha mais sentido no seu tom, na sua plataforma, na sua falta de pretensão. Assim, ficou como um banco de dados colhidos ao longo da história, ficou como história de uma reunião de interesses que construiu uma força criadora.
É  2016, e o Comunica segue sua trilha aqui.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Laivos da Operação Condor? - II

Brasil é apenas o 104º no ranking de liberdade de imprensa



Do Justificando

Por Mauro Donato*

Segundo o mais recente ranking sobre liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteira, o Brasil ocupa a 104ª posição. Caiu 5 posições (havia caído 9 em 2013 e agora desceu mais um pouco). Centésima quarta posição entre 180 países é uma colocação preocupante e vexatória. Determinantes para a queda foram o aumento da violência contra jornalistas, o registro de ameaças e a quantidade de mortos durante o ano passado. Total de sete jornalistas assassinados.

Como pode isso?
Para os leitores dos grandes jornais, telespectadores dos canais abertos de TV e ouvintes das grandes rádios, um ranking desses irá soar como peça de ficção. Claro, nada disso acontece com os jornalistas que trabalham para aquela meia dúzia de famílias detentoras de quase oitenta por cento da mídia. Estes estão alinhados e repetem em uníssono o que seus chefes querem que seja dito e escondem o que seus patrões desejam que seja escondido.

A perseguição é sobre os independentes, é inegável. Veja quantas dificuldades o DCM enfrentou ao publicar o documentário Helicoca. “É um ambiente de medo para os jornalistas, sobretudo os jornalistas independentes, blogueiros”, disse Emanuel Colombié, chefe do departamento de pesquisas da Repórteres Sem Fronteiras.

Mas e o cinegrafista da Band? A tragédia ocorrida com Santiago Andrade em 2014 foi um acidente. Terrível, mas um acidente. Ninguém lançou a bomba propositalmente no cinegrafista da Band e, infelizmente, o caso dele é um bom exemplo da disparidade no tratamento da questão quando acontece com um ‘deles’. Toda a cobertura dramática, a dedicação em apontar os culpados, o enunciado destacando que as manifestações faziam sua “primeira vítima fatal”. Santiago era então a 11ª pessoa a morrer, não a primeira, desde os protestos de 2013 e dezenas de outros jornalistas já haviam sido feridos, muitos com gravidade como a perda de um olho e outros tendo seus equipamentos destruídos ou confiscados. Mas eram todos independentes e os casos não vieram para as manchetes.

O oligopólio da mídia brasileira é um dos principais motivos para o atraso do país. Seu monobloco alienador faz com que andemos para trás em diVersos rankings como de liberdade de imprensa ou de educação. Desinforma para manter seus privilégios.

Um exemplo nítido: Desinformados, muitos combateram o Marco Civil Regulatório da internet. Lobotomizados pela mídia unificada, diziam que se tratava de censura, que o PT queria controlar a rede. Agora estão aí desesperados com a notícia de que as operadoras desejam limitar e cobrar o acesso de forma diferenciada. E aqui mais uma vez vale a pena observar a cobertura jornalística atual sobre o tema. As operadoras de telefonia são grandes anunciantes. Em razão disso, a Globo tem se empenhado em explicar o porque da medida. Com infográficos, depoimentos técnicos minuciosos e longas reportagens, está claramente defendendo os amigos que detêm outro oligopólio.

Os barões da mídia estão pouco se lixando para um ranking como o do Repórteres sem Fronteira. Estão sempre atuando em bloco. Basta observar a reação orquestrada às notícias internacionais recentes. O Guardian, o New York Times, o Fìgaro e outros jornais estão tratando com seriedade e preocupação o que se passa por aqui no cenário político. E nem era para ser diferente. Para quem está de fora fica ainda mais evidente o teatro. Vá explicar para um gringo que quase 400 deputados com a ficha suja votaram pelo impeachment de alguém sem prova de crime.

Ato contínuo, a mídia brasileira dedica-se a desqualificar essa leitura. Renata LoPrete, da GloboNews, disse que eram comentários superficiais, carentes de fundamentações. Curioso é que a mesma mídia internacional é vista como rainha da cocada preta quando comenta sobre nossa economia interna, dá seus pitacos prevendo até o que ainda não ocorreu. Quando é para especular, tudo bem?

A mando das diretorias, as redações alternam o complexo de vira-lata com uma soberba vomitiva. Portanto, na grande mídia você não verá destaque para este vergonhoso ranking da Repórteres sem Fronteira, lá o que importa são os rankings de economia.

O ranking da ONG só confirma o quanto é perigoso, para um jornalista, não fazer parte da mídia dos Marinho, dos Saad, dos Mesquita. Para o público em geral, perigoso é informar-se apenas por ali. Vira vítima das operadoras de telefonia, do mercado automobilístico, da especulação imobiliária, financeira, e assim vai. Todo tipo de golpe fica fácil num ambiente assim.

*Mauro Donato é Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo

sábado, 23 de abril de 2016

Laivos da Operação Condor?

Washington’s Dog-Whistle Diplomacy Supports Attempted Coup in Brazil

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Image: Victor T.

By Mark Weisbrot, on Huffington Post


The day after the impeachment vote in the lower house of Brazil’s congress, one of the leaders of the effort, Senator Aloysio Nunes, traveled to Washington, D.C. He had scheduled meetings with a number of U.S. officials, including Thomas Shannon at the State Department.
Shannon has a relatively low profile in the media, but he is the number three official in the U.S. State Department. Even more significantly in this case, he is the most influential person in the State Department on U.S. policy in Latin America. He will be the one recommending to Secretary of State John Kerry what the U.S. should do as the ongoing efforts to remove President Dilma Rousseff proceed.

Shannon’s willingness to meet with Nunes just days after the impeachment vote sends a powerful signal that Washington is on board with the opposition in this venture. How do we know this? Very simply, Shannon did not have to have this meeting. If he wanted to show that Washington was neutral in this fierce and deeply polarizing political conflict, he would not have a meeting with high-profile protagonists on either side, especially at this particular moment.

Shannon’s meeting with Nunes is an example of what could be called “dog-whistle diplomacy.” It barely shows up on the radar of the media reporting on the conflict, and therefore is unlikely to generate backlash. But all the major actors know exactly what it means. That is why Nunes’ party, the Social Democracy Party (PSDB), publicized the meeting.

To illustrate with another example of dog-whistle diplomacy: On June 28, 2009, the Honduran military kidnapped the country’s president, Mel Zelaya, and flew him out of the country. The White House statement in response did not condemn this coup, but rather called on “all political and social actors in Honduras” to respect democracy.

This dog-whistle signal worked perfectly; most importantly the coup leaders and their supporters in Honduras, as well as every diplomat in Washington, knew exactly what this meant, even as statements condemning the coup and demanding the restoration of the democratic government came pouring in from around the globe. Everyone knew that this was, in diplomatic code, a clear statement of support for the coup. The events that followed over the next six months, with Washington doing everything it could to help consolidate and legitimize the coup government, were pretty much predictable from this initial statement. Hillary Clinton later admitted in her 2014 book, “Hard Choices,” that she worked successfully to prevent the return of the democratically elected president.

Tom Shannon has a reputation among Latin American diplomats as an amiable fellow, a seasoned career foreign service officer who is willing to sit down and talk with governments that are at odds with U.S. policy in the region. But he has had a lot of experience with coups. Some of Hillary Clinton’s released emails shed additional light on his role in helping to consolidate the Honduran coup. He was also a high-level State Department official during the April 2002 coup in Venezuela, in which there is substantial documentary evidence of U.S. involvement. And when the parliamentary coup in Paraguay took place in 2012 — something similar to what is happening in Brazil but with a process that impeached and removed the president in just 24 hours — Washington also contributed to the legitimation of the coup government in the aftermath. (By contrast, South American governments suspended the coup government in Paraguay from MERCOSUR, the regional trading bloc, and UNASUR [the Union of South American Nations).] Shannon was ambassador to Brazil at that time, but was still one of the most influential officials in hemispheric policy.

The U.S. State Department responded to questions about Nunes’ meetings by saying, “This meeting had been planned for months and was arranged at the request of the Brazilian embassy.” But this is irrelevant. It merely means that Brazilian embassy staff were, as a matter of diplomatic protocol, involved in arranging the meetings. This does not imply any consent by the Rousseff administration, nor change the political message that the meeting with Shannon sends to the opposition in Brazil.
All of this is of course consistent with Washington’s strategy in response to the left governments that have governed most of the region in the 21st century. They have rarely missed an opportunity to undermine or get rid of any of them, and their desire to replace the governing Workers’ Party in Brazil with a more compliant, right-wing government is fairly obvious.

Mark Weisbrot is co-director of the Center for Economic and Policy Research in Washington, D.C., and the president of Just Foreign Policy. He is also the author of the new book “Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy“ (2015, Oxford University Press).

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Notícias sobre as notícias

Repórteres Sem Fronteiras denuncia mídia brasileira por apoio ao golpe

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O mundo acordou de vez para o golpismo alucinado da imprensa brasileira. A ong Repórteres Sem Fronteiras, que faz um dos rankings mais respeitados do mundo sobre liberdade de expressão, rebaixou o Brasil mais cinco pontos, para 104, num conjunto de 180 países. Em 2010, o Brasil estava em 58º lugar.

Diferente do que ocorre em alguns países, porém, o rebaixamento não ocorre por repressão de governos a jornalismo crítico, e sim o contrário: pela adesão de empresas de comunicação a uma agenda política antidemocrática. A ONG denuncia, sem meias palavras, o apoio da mídia brasileira ao golpe como uma das razões para o rebaixamento da pontuação do Brasil no ranking de liberdade de expressão.

Vou traduzir apenas um trecho. Os internautas que quiserem traduzir a íntegra, divulguem aí nos comentários.

Trecho:
"(...) AO mesmo tempo, a propriedade dos meios de comunicação continua concentrada em mãos das famílias mais ricas, ligadas à classe política.
O problema dos "coroneis midiáticos", que a RSF descreveu em 2013 em seu relatório "O país dos 30 Berlusconis" continua intocável.
Os "coroneis" são usualmente proprietários de terras, industriais, que também são deputados ou governadores, e controlam a opinião pública em suas regiões através dos meios de comunicação. Como resultado, os meios de comunicação são fortemente dependentes dos centros de poder político e econômico.
A cobertura da mídia brasileira à crise política em curso acentuou esse problema. De maneira pouco velada, os principais meios de comunicação incitaram o público a ajudar na derrubada da presidenta Dilma Rousseff.
Os jornalistas que trabalham nestes grupos estão claramente sujeitos à influência de interesses privados e partidários, e este permanente conflito de interesses prejudicam fortemente a qualidade de suas reportagens."
***
No site da ONG Repórteres Sem Fronteiras.

April 20, 2016

Brazil falls in Press Freedom Index, now 104th

Continuing conflicts of interest in the Brazilian media and a very disturbing level of violence against journalists have caused Brazil to fall another five places in the 2016 World Press Freedom Index, published today by Reporters Without Borders (RSF).

Brazil is now ranked 104th out of 180 countries, a position clearly unworthy of a country meant to be a regional model. It was ranked 58th in 2010.

Why has this happened? The most important reason is increasing violence against journalists and a lack of political will at the highest level to protect journalists effectively. As well as the fall in the rankings, Brazil’s performance indicator, which measures the level of media freedom violations, rose from 25.78 in 2014 to 31.93 in 2015 – a significant deterioration.
The Latin American giant nonetheless remains ahead of some of its regional neighbours such as Ecuador (109th), Guatemala (121st), Colombia (134th), Venezuela (139th), Mexico (149th) and Cuba (174th).
In Brazil, an economic recession and political instability have reinforced the main obstacles to media freedom and the climate of hostility towards journalists. At the same time, media ownership continues to be concentrated in the hands of leading industrial families linked to the political class.
The problem of Brazil’s “colonels,” which RSF described in 2013 in its report, “The country of 30 Berlusconis,” has continued unabated. The so-called “colonels’ are usually major landowners or industrialists who are also legislators or state governors and who control opinion-making in their regions because, directly or indirectly, they own several local media outlets. As a result, the media are heavily dependent on the centres of economic and political power.

Brazilian media coverage of the country’s current political crisis has highlighted the problem. In a barely veiled manner, the leading national media have urged the public to help bring down President Dilma Rousseff. The journalists working for these media groups are clearly subject to the influence of private and partisan interests, and these permanent conflicts of interests are clearly very detrimental to the quality of their reporting.

Brazil’s fall in the Index is also the result of the lack of a national mechanism for protecting journalists in danger and for combatting the prevailing impunity for crimes of violence against journalists, which is facilitated by the ubiquitous corruption.

With seven journalists murdered in 2015 alone, Brazil continues to be the western hemisphere’s third deadliest country for media personnel, after Mexico and Honduras. All of them were investigating sensitive subjects such as corruption and organized crime.
 
Organized crime’s firm hold on certain regions far from any major city makes covering these subjects particular complicated there, while the failure to punish most murders of journalists encourages their recurrence.

Finally, there has been no let-up in the growing problem of military police violence against journalists during street demonstrations, a problem that began in 2013. Both Brazilian and foreign journalists covering demonstrations are often insulted, threatened or arbitrarily detained. They are also often directly targeted by demonstrators, who identify them with the owners of the media they work for.
Published annually by RSF since 2002, the World Press Freedom Index measures the level of freedom available to journalists in 180 countries using the following criteria – pluralism, media independence, media environment and self-censorship, legislative environment, transparency, infrastructure, and abuses.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O golpe que já vinha sendo dado antes do golpe que se deu

Criada a escassez, teles vão cobrar pela abundância na internet

Luís Osvaldo Grossmann ... 20/04/2016 ... Convergência Digital 
 
 
As grandes operadoras de telecomunicações, que no Brasil respondem por quase 90% das conexões à internet, parecem ter colocado governo onde queriam: virá como aparente pressão do Ministério das Comunicações a capitulação das empresas sobre as ofertas de banda larga fixa. Um acordo nesse sentido já começou a ser costurado e deve ser apresentado na próxima semana.

“Já iniciamos o diálogo com uma das operadoras e na semana que vem vamos trazer todas para tratarmos da continuidade dos planos ‘ilimitados’, quando esperamos que todas as operadoras firmem um compromisso público, um documento que já estamos preparando”, afirmou nesta quarta, 20/4, o ministro André Figueiredo. 

Os termos desse “compromisso público” serão, portanto, no sentido de “exigir” que as empresas ofereçam planos sem limite de franquia, ainda que mantenham paralelamente as ofertas com esse limite. Além disso, também será colocada a promessa de que não haverá alteração nos contratos vigentes. Parece uma vitória dos consumidores contra o que veem como abusos das teles. 

Só parece. Os termos que o ministério está preparando foram sugeridos pela Vivo, justamente a operadora com quem foi iniciado o diálogo. Do ponto de vista da precificação das ofertas, a criação de um serviço ‘premium’ atende o que as empresas sempre defenderam na internet, a criação de segmentações. Se esse ‘premium’ é quase compulsório, o prêmio pode ser ainda maior. 

O próprio André Figueiredo, ao divulgar a costura com as teles, adianta que a espera que as empresas não aumentem muito os preços. Na véspera, o presidente da Anatel, João Rezende, já dissera que obrigar as operadoras a venderem planos ‘ilimitados’ teria como resultado esperado aumento de preços e reduções de velocidade. 

Escassez

As empresas defendem o uso de franquias pois elas atacam o consumo ‘excessivo’ de dados por parte dos internautas, que acabariam provocando congestionamentos na internet. Ao impor limites de download, elas estariam protegendo a maioria. “Algum tipo de equilíbrio há de se ter porque senão teremos o consumidor que consome menos pagando por aqueles que estão consumindo mais”, concorda o presidente João Rezende. 

Acontece que se trata de uma criação artificial de escassez, especialmente na internet fixa. Nos EUA, onde o debate sobre os ‘data caps’ começou anos antes do Brasil, estudos (como esse ou esse) apontaram essa artificialidade, ao ponto de o presidente da associação nacional das teles americanas (NCTA), Michael Powell, vir a público para admitir que o problema não eram os congestionamentos: “Nosso principal propósito é como justamente monetizar altos custos fixos”, disse.

Talvez a maior evidência nesse sentido seja que as franquias são adotadas independentemente do horário dos acessos. Ou seja, se fosse efetivamente um problema de congestionamento, com ‘heavy users’ prejudicando o tráfego dos demais, o incentivo deveria promover o uso fora do horário de pico, mas isso não acontece.

O uso de franquias, portanto, além de poder criar aquele mercado ‘premium’, também abre outras frentes de “monetização” – os acordos para que certos conteúdos não consumam o limite de dados imposto. Acordos com bancos e redes sociais, como Facebook ou WhatsApp, já existem na internet móvel, onde o sistema de franquia é ainda mais arraigado.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

A nebulosa fascista, segundo Eco

Umberto Eco: 14 lições para identificar o neofascismo e o fascismo eterno



Intelectual italiano, romancista e filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa" morreu em 19 de fevereiro, aos 84 anos; 'O fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis', diz Eco
A Revista Samuel reproduz o texto de Umberto Eco Ur-Fascismo, produzido originalmente para uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da liberação da Europa:

Agência Efe

Umberto Eco morreu na última sexta-feira (19/02), aos 84 anos, em sua casa, em Roma

 

'O Fascismo Eterno'

Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.

Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.

Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falou com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também liberdade da retórica.

Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.

Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte.

Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.

Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito.

Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas cores.

Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores.

Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.

Mas quem são “eles”?

Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira.

Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.

Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram", de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.

Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).

Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?

Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes totalitários.

Wikicommons

Hitler e Mussolini em Munique, em 1940



O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.

Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini.

O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista.

Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1]. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?

O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase jacobinas.

Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.

Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito.

O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.

Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito.

Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los.

No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.

O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.

Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def

Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola.


A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.
1.   A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. 

Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.

Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva. 

Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.

Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. 

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. 

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório. 

7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo. 

9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição. 

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte. 

12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 

13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.

Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 

14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular. 

Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.

Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.

A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.

Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.

E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.

Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens

Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.

Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.


[1] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”, “confuso”, “impreciso”, “desfocado”.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Rap denuncia golpe midiático

Rappers voluntários denunciam manipulação da Globo nos trens de São Paulo

Escrito por: Leonardo Miazzo
Fonte: O Cafezinho 


A resistência ao golpe midiático aumenta a cada dia.

globo
Assista, abaixo, a uma intervenção feita em pleno metrô paulistano para escancarar a postura da Rede Globo:

terça-feira, 5 de abril de 2016

A mídia sobre a mídia nestes tempos tão midiáticos - II

Resposta à coluna de Ana Maria Machado no Globo

USP-CONTAR-O-GOLPE-passeata-18-3-2016-e1458682082160
A escritora Ana Maria Machado, colunista do Globo, escreveu um artigo há dois dias em que defende a "imprensa" e faz observações que considero equivocadas. Como achei que o artigo veio elaborado, apesar dos erros, com certa inteligência, decidi respondê-lo publicamente. Fá-lo-ei intercalando meus comentários, para facilitar para mim mesmo.

O texto dela vem em fonte normal. O meu texto vem em negrito e entre colchetes.

Para inglês ver
Por Ana Maria Machado, no Globo.

Acusam a imprensa de mentir, passando por cima do fato de que já foramlocalizados milhões de dólares no exterior

Na segunda metade do século XIX, os ingleses impuseram ao governo brasileiro a proibição do tráfico de escravos. Podiam até estar agindo apenas por seu próprio interesse, de modo a garantir a futura existência de um mercado consumidor para a produção das suas fábricas que se multiplicavam com a Revolução Industrial. Mas, nesse momento, desempenhavam um papel progressista e defendiam a dignidade humana. Para garantir o cumprimento dessa exigência aparentemente libertária, embarcações britânicas patrulhavam as águas do Atlântico Sul, aprisionando os tumbeiros que conseguissem interceptar. É claro que o contrabando negreiro continuava, às escondidas. E o Brasil fazia de conta que suspendia o tráfico. Mas agia apenas para manter as aparências. Daí a origem da expressão “para inglês ver”, usada para exibirmos uma imagem falsa aos olhos do estrangeiro. E ficarmos bem na foto, como se diz hoje.

[Até aí tudo bem, embora me cause calafrios falar em tráfico de escravos num artigo que irá defender um golpe tocado justamente pelos escravocratas de hoje! Ou alguém tem dúvida de que as forças golpistas de hoje, incluindo o Globo, não são as mesmas que sempre defenderam a manutenção da escravidão no país? Mas isso é especulação, passemos às críticas objetivas.]

Até há pouco tempo, os meios universitários estrangeiros e a imprensa internacional em geral distinguiam bastante bem a situação política brasileira da existente em seus vizinhos hispano-americanos, bem como em variados regimes ditatoriais de países emergentes em outras partes do mundo. E não apenas pelo nosso potencial econômico e pela disposição de enfrentamento e correção da desigualdade social por meio de programas de distribuição de renda e diminuição do abismo entre as classes. Mas, desde o fim da ditadura militar, o Brasil vinha mostrando a consolidação de suas instituições democráticas, eleições regulares com possibilidade de alternância de poder, imprensa livre e atuante, poderes independentes, respeito à Constituição. Incontáveis vezes, em foros de debate internacional, tive a oportunidade de ouvir desses observadores análises que destacavam a autonomia da imprensa e a soberania do Judiciário como fundamentais traços distintivos da democracia brasileira, frente aos vizinhos bolivarianos.

[Preconceitos tolos e opinião superficial. O Judiciário brasileiro é um dos piores do mundo. Há mais de 200 mil brasileiros presos sem sentença. Nossas polícias são as que mais matam no mundo e isso é culpa, essencialmente, de um Judiciário cúmplice. A opinião negativa sobre o Judiciário "bolivariano" de outros países é opinião, em geral, de quem não conhece esses países e apenas externa o famigerado senso comum, que é invariavalmente fruto da campanha da mídia imperialista para atacar governos populares, que ousaram romper privilégios seculares].


É exatamente nessa área, de desmoralização da imprensa e da Justiça, que o governo resolveu atuar agora, em sua ofensiva de contranarrativa do que está acontecendo no país desde que há dois anos começaram as investigações policiais de irregularidades num posto de gasolina e lava a jato de automóveis no Paraná, trazendo à baila doleiros, sonegação fiscal, evasão de divisas, cartel de empreiteiras, licitações combinadas, desvio de dinheiro da Petrobras, propina a dirigentes e políticos, compra de apoio parlamentar, contas ilegais no exterior. E mais, ao que tudo indica, tentativa de obstrução da Justiça.

[Desculpe, Ana, mas não é verdade. A crítica à imprensa e ao judiciário vem da sociedade civil, organizada e desorganizada. Não do governo, que infelizmente é mudo. As denúncias contra a Lava Jato são feitas por juristas reconhecidos e até ministros do STF. Hoje está claro para muita gente, fora do governo, que se trata de uma operação recheada de ilegalidades, desde a sua origem. E não houve nenhuma tentativa de obstrução da Justiça - quer dizer, houve sim, por parte da mídia, que passou a ser parte integrante da operação Lava Jato, recebendo vazamentos seletivos e pressionando tribunais superiores, inclusive via chantagens de assassinato de reputação, a não contestarem as decisões de Sergio Moro. O habeas corpus, por exemplo, foi praticamente abolido na Lava Jato. Essa visão fascista do sistema penal vê obstrução de justiça apenas quando identifica qualquer coisa que ajuda o réu; mas é evidente que se obstrui a justiça quando se persegue o réu ou há qualquer abuso de autoridade. Abuso de autoridade é obstrução de justiça também.] 

Nessa estratégia vimos nos últimos dias uma escalada de ações para inglês ver, muitas vezes manipulando gente de bem, que não compactua com bandidos e se deixou convencer de que tudo não passa de uma perseguição pessoal do Judiciário e da mídia contra Lula ou o governo, ou de que há mesmo um complô dos inimigos do povo para tirar dos pobres tudo o que eles melhoraram nos últimos tempos ou liquidar a Petrobras para que os ianques venham se apossar dela a preço de banana.
 
[Ana, a expressão "gente de bem" me causa novamente arrepios. Se há "gente de bem", então deve haver "gente do mal", e fica subentendido no texto que essas são as pessoas que não concordam com suas opiniões. Esse tipo de postura, a meu ver, está na raíz da emergência da intolerância e truculência política que vemos hoje. Não, Ana. Essa não é uma postura democrática. Não existe essa coisa de "gente do bem", pelo amor de Deus. Existe gente, só. E viva Clarice Lispector, que sabia disso. Ana, há sim perseguição pessoal a Lula e ao governo, por parte de uma mídia que, você sabe muito bem, é historicamente golpista. Aliás, você sabe mas finge não saber porque escreve para o jornal mais golpista de todos. E você só escreve aí porque tem essa opinião. Se tivesse outra, não escreveria. E suas observações sobre os ianques e a Petrobrás são de uma superficialidade terrificante. O governo americano, através da NSA, espionou a Petrobrás. O governo americano destruiu praticamente o oriente médio inteiro, para se apossar de seu petróleo. Então sejamos um pouco mais objetivos e realistas ao falar de geopolítica do petróleo, ok? Ela existe e ela é brutal. Outra coisa: o seu texto finge que não existe política. Nesse ponto, ele é despolitizante. Há setores que pretendem remover o PT do poder e eliminar Lula. Parte disso é do jogo. Lula sabe disso. Os métodos usados, porém, tem sido perigosamente antidemocráticos. Perseguir Lula por causa de pedalinhos e reforma de apartamento que não é dele teve um custo alto para a Lava Jato e a mídia: se auto ridicularizaram.] 

Para isso, desqualificam as investigações. Acusam a imprensa de mentir, passando por cima do fato de que já foram localizados e bloqueados milhões de dólares no exterior, para não falar dos milhões de reais já recuperados. Repetem que impeachment é golpe — por mais que ministros e ex-ministros do STF já tenham negado essa interpretação, desde que os preceitos constitucionais sejam respeitados. Prendem-se a tecnicalidades e firulas jurídicas, esquecendo o ensinamento de tantos outros juristas, como Evandro Lins e Silva, citando Nélson Hungria, por ocasião do impeachment do Collor: “O sigilo não protege o crime.”

[Não, Ana. As investigações se auto-desqualificam. As críticas chegam de toda a parte, inclusive da imprensa internacional. Não feche os olhos às críticas. As críticas são democráticas e saudáveis. Pare de ler o Globo por um momento e olhe a internet. Já aconteceram milhares de atos, no Brasil e no mundo, contra a justiça partidária e contra o golpe. Nenhum desses atos, ou quase nenhum, foi organizado pelo governo ou pelo PT. Até o Porta dos Fundos fez um vídeo engraçadíssimo sobre esse processo de perseguição seletiva. Intitula-se Delação. Procure no youtube. Gregorio Duvivier não é "governo". Marcelo Freixo, deputado estadual pelo PSOL, oposição ao governo, também critica a justiça partidária.] 
 
Então, a presidente dá entrevista à imprensa internacional, e faz comício no Planalto diante de embaixadores estrangeiros para angariar apoios à sua tese de que o Brasil não está funcionando de modo democrático. Um diplomata usa canais oficiais para atacar as instituições do país. Intelectuais respeitáveis, por mais bem intencionados que possam ser, abrem mão de qualquer análise menos rasteira e se precipitam em assinar manifestos que enfileiram palavras de ordem sem compromisso com os fatos ou qualquer sutileza. Ao colocar sua própria inteligência a serviço de um palavrório que não assinariam individualmente, embarcam na manada, esquecem sua responsabilidade e acham que estão prestando um serviço à democracia e ao Brasil.

[Aí você insulta os intelectuais! Quer dizer que apenas você, uma colunista do jornal Globo, tem razão? Os intelectuais assinam manifestos sem lê-los, sem fazer análise, sem entender a conjuntura? Ora, Ana. Me desculpe, mas os intelectuais me parecem entender de política e direito muito mais do que você. Ou você acha que os milhares de cientistas políticos, juristas, escritores, artistas, que assinam manifesto contra o golpe, são todos estúpidos e só você, do alto de sua coluna no Globo, sabe o que está acontecendo? Mais uma vez, você está sendo, apesar dos trajes elegantes de colunista platinada, intolerante e ajudando a aumentar o caldo de intolerância política e fascismo que temos visto crescer no país. Respeite quem pense diferente, Ana!]


A investigação contra Collor foi possível, entre outras coisas, porque ele mesmo acabara com a possibilidade de emissão de cheque ao portador, obrigando à identificação do beneficiário. A Lava-Jato vai em frente, entre outras coisas, porque a Constituição de 88 deu poder ao Ministério Público e no próprio governo Dilma uma lei instituiu a colaboração premiada. Não é a Inquisição do Moro. Por mais que a chamem de delação, é uma ferramenta poderosa para revelar crimes ocultos — se eles existem e depois são comprovados. Isso não é perseguição nem golpe. É fato. Para qualquer um refletir, e não apenas inglês ver.

[Ana, a Constituição de 88 criou um monstro. Quem o disse não foi Lula ou ninguém do governo. Foi Sepúlveda Pertence, referindo-se ao Ministério Público. Ele se tornou corporativo e vulnerável ao surgimento de núcleos conspiradores. O ódio à política dentro do Ministério Público, por sua vez, nasce do patrimonialismo e autoritarismo históricos de nosso país. Endeusar o Ministério Público ou o Judiciário não me parece democrático. A imprensa não deveria ser crítica? Não deveria veicular críticas e visões plurais sobre todas as instituições? Por que esse chapa branquismo súbito em relação ao Ministério Público? Estamos sim diante de um golpe, apoiado pelo mesmo jornal no qual você escreve. A verdade é dura, Ana, a Globo apoiou a ditadura. E ainda apoia. ]

Ana Maria Machado é escritora
[Eu também sou escritor, e blogueiro.]

domingo, 3 de abril de 2016

A mídia sobre a mídia nestes tempos tão midiáticos

Depois das manifestações nas ruas...

Denúncia! Sergio Moro opera nas sombras, ilegalmente, desde 2006


Grande mídia começa a perceber que o golpe já foi desmascarado.

A Lava Jato é uma operação ilegal, golpista, marcada desde a sua origem por vários tipo de abuso, tortura, arbítrios e crimes.

Sérgio Moro e procuradores deveriam estar presos pelo prejuízo de centenas de bilhões que causaram ao país ao transformarem o necessário combate à corrupção numa pantomina golpista, que destruiu ou quase destruiu grandes empresas nacionais.

Quem pagará pelos milhões de postos de trabalho destruídos por tamanha irresponsabilidade!

Quem pagará pelo risco de colapso financeiro que ainda incide sobre o país, após a Lava Jato desestruturar a espinha dorsal econômica brasileira?

Leiam essa matéria do UOL, que mostra que setores da mídia estão tentando pular fora do barco, para minimizarem o papel bandido que desempenharam esse tempo todo, ao chancelarem essa palhaçada.
Não, não poderão repetir o que fizeram nos anos 60, quando, depois de apoiarem o golpe, fingiram ser contra ele.

A mídia foi cúmplice, ainda é cúmplice, de uma operação que ameaçou e ameaça o Estado Democrático de Direito.

A Globo, mais que qualquer outro agente político, é o principal responsável pelos crimes denunciados na reportagem abaixo, porque uma concessão pública jamais deveria usar seu espaço para chancelar uma tentativa de subversão da ordem democrática.

Houve formação de quadrilha entre procuradores da Lava Jato, Sergio Moro e Globo.

Importante ressaltar ainda que essa denúncia contra a Lava Jato só é publicada agora por causa das grandes mobilizações populares contra o golpe.

Não fosse o povo na rua, o golpe seria dado, a democracia abolida e a Lava Jato transformada em modus operandi de uma nova ditadura, muito mais sinistra que a de 1964: invasão de privacidade, tortura, abuso de autoridade, arbítrios, truculências policiais, sempre com objetivo de intimidar os cidadãos, sufocar a liberdade e controlar a política.

Eu também quero saber se a ministra Carmen Lúcia, que recebeu prêmio da Globo (prêmio que eu chamo de propina) há alguns dias, mantém suas afirmações sobre a Lava Jato, diante das denúncias mostradas abaixo.

Sergio Moro também recebeu o prêmio da Globo - e agora está claro por que a Globo o premiou, porque sabia que Moro seria peça chave do golpe.

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No UOL.

Documentos indicam grampo ilegal e abusos de Moro na origem da Lava Jato

Por Pedro Lopes e Vinícius Segalla
Do UOL, em São Paulo 03/04/201606h00

STF irá julgar nas próximas semanas se Moro continuará ou não julgando os crimes relacionados à Operação Lava Jato

Nas últimas semanas, a operação Lava Jato levantou polêmica ao divulgar conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a atual presidente Dilma Rousseff (PT). Os questionamentos sobre a legalidade da investigação, entretanto, surgem desde sua origem, há quase dez anos. Documentos obtidos pelo UOL apontam indícios da existência de uma prova ilegal no embrião da operação, manobras para manter a competência na 13ª Vara Federal de Curitiba, do juiz Sergio Moro, e até pressão sobre prisioneiros.

Esses fatos são alvo de uma reclamação constitucional, movida pela defesa de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula, no STF (Supremo Tribunal Federal). A ação pede que as investigações da Lava Jato que ainda não resultaram em denúncias sejam retiradas de Moro e encaminhadas aos juízos competentes, em São Paulo e no próprio STF. Para ler a íntegra do documento, clique aqui.
Como presidente do Instituto Lula, Okamatto também foi alvo da 24ª fase da operação. Ele foi ouvido pela força-tarefa para tentar esclarecer como o instituto e a LILS Palestras receberam R$ 30 milhões de empreiteiras envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. Parte do dinheiro foi transferido do Instituto Lula para empresas de filhos do ex-presidente, segundo a investigação.

A reportagem ouviu nove profissionais do Direito, dentre advogados sem relação com o caso e especialistas de renome em processo penal, e a eles submeteu a reclamação constitucional e os documentos obtidos. Os juristas afirmam que a Operação Lava Jato, já há algum tempo, deveria ter sido retirada da 13ª Vara Federal de Curitiba, além de ter sido palco de abusos de legalidade.
O portal também questionou o juiz Sergio Moro sobre o assunto, mas o magistrado preferiu não se pronunciar (leia mais ao final desta reportagem).

Veja os principais pontos questionados:

Origem em grampo ilegal
A Lava Jato foi deflagrada em 2014, mas as investigações já aconteciam desde 2006, quando foi instaurado um procedimento criminal para investigar relações entre o ex-deputado José Janene (PP), já falecido, e o doleiro Alberto Youssef, peça central no escândalo da Petrobras. Entretanto, um documento de 2009 da própria PF (Polícia Federal), obtido pelo UOL, afirma que o elo entre Youssef e Janene e a investigação surgiram de um grampo aparentemente ilegal.
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(Representação da Polícia Federal admite que investigação começou a partir de grampo entre advogado e cliente)

A conversa grampeada em 2006, à qual a reportagem também teve acesso, é entre o advogado Adolfo Góis e Roberto Brasilano, então assessor de Janene. Seu conteúdo envolve instruções sobre um depoimento, exercício típico e legal da advocacia. Os desdobramentos dessa ligação chegaram, anos depois, a Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras e o primeiro delator da Lava Jato.
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(Conversa entre Adolfo Góis e Roberto Brasiliano deu origem a investigação que desaguaria na Lava Jato)

"Se as premissas estiverem corretas, realmente parece que se tratava de conversa protegida pelo sigilo advogado-cliente. Nesse caso, a interceptação telefônica constitui prova ilícita", explica Gustavo Badaró, advogado e professor de Processo Penal na graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo. "Essa prova contaminará todas as provas subsequentes. É a chamada "teoria dos frutos da árvore envenenada". Todavia, a prova posterior poderá ser mantida como válida, desde que haja uma fonte independente", conclui o professor.

Lava Jato já deveria ter saído do Paraná
Os supostos delitos e criminosos que estão sendo investigados na Operação Lava Jato não deveriam estar sendo julgados por Moro, segundo a tese da defesa de Paulo Okamoto, corroborada por juristas ouvidos pela reportagem. O principal ponto é que Moro não é o "juiz natural", princípio previsto na Constituição, para julgar os crimes em questão.

De acordo com Geraldo Prado, professor de processo penal da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Universidade de Lisboa, "na Lava-Jato, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba [onde atua Moro] há muito tempo não é mais competente para julgar casos que remotamente surgiram de investigação no âmbito do chamado caso Banestado. Pelas regras em vigor, praticamente todos os procedimentos seriam ou de competência de Justiças Estaduais ou da Seção Judiciária Federal de São Paulo, porque nestes lugares, em tese, foram praticadas as mais graves e a maior parte das infrações. Há, portanto, violação ao princípio constitucional do juiz natural. Exame minucioso da causa pelo STF não pode levar a outra conclusão."

A legislação brasileira estabelece critérios objetivos para determinar quem julga determinado crime. O ponto principal é que um crime, via de regra, será julgado no local onde ele foi cometido. Já quando existem crimes conexos, ou seja, que têm relação com delitos previamente cometidos pelos mesmos autores, eles podem vir a ser julgados pelo mesmo juízo responsável pela apreciação dos crimes iniciais.

Em casos de conexão, a lei prevê que o que determina quem será o juiz natural para o julgamento são os seguintes critérios, nessa ordem: o lugar onde ocorreu o delito que tem a pena mais grave, o lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade, e a competência pela prevenção, que se dá quando um juiz já julgou crimes relacionados ao mesmo esquema ilegal. Segundo Moro, é esse último critério que faria dele o juiz natural de todos os delitos: os crimes seriam conexos a outro que ele já vinha julgando.

Tanto é assim que, em todas as decisões relacionadas aos crimes investigados na operação, o magistrado inicia seu texto com o seguinte cabeçalho:
"Tramitam por este Juízo diversos inquéritos, ações penais e processos incidentes relacionados à assim denominada Operação Lava Jato. A investigação, com origem nos inquéritos 2009.70000032500 e 2006.70000186628, iniciou-se com a apuração de crime de lavagem consumado em Londrina/PR, sujeito, portanto, à jurisdição desta Vara, tendo o fato originado a ação penal 504722977.2014.404.7000".

Os inquéritos a que Moro se refere, de lavagem de dinheiro, foram cometidos no Banestado, e nada têm a ver com as fraudes e desvios de dinheiro público que ocorreram na Petrobras, que são o principal foco da Lava Jato. A ligação, alegada por Moro, é que que alguns dos investigados no Banestado, como Janene e Yousseff, foram flagrados em escutas telefônicas falando sobre outros supostos crimes, estes sim relacionados à Petrobras.

O STF, no entanto, já proferiu decisão afirmando que escutas telefônicas que revelem crimes diferentes dos que estão sendo investigados devem ser consideradas provas fortuitas, não tendo a capacidade de gerar a chamada conexão por prevenção. É o que afirma o advogado Fernando Fernandes, que defende Paulo Okamotto, na ação que move no STF, classificando a prática de "jurisprudência totalitarista".

O professor Badaró concorda. "Houve um abuso das regras de conexão na Lava Jato. Além disso, a conexão tem efeito de determinar a reunião de mais de um crime em um único processo. Isso não foi feito na Lava Jato. Ao contrário, os processos tramitam separados". O advogado André Lozano Andrade, especialista em direito processual penal do escritório RLMC Advogados, lembra ainda que um dos investigados, José Janene, tinha foro privilegiado por ser deputado federal, na época. "Assim, os autos deveriam ter sido remetidos para o STF. Além disso, deveriam os autos no que se refere a outros crimes ter sido remetidos para São Paulo, tendo em vista que o centro de operação dos ´criminosos´ era na Capital Paulista. A competência por prevenção só se dá quando ausentes outras formas de determinação de competência."

Longa investigação sem denúncia
A investigação que culminou na deflagração da Operação Lava Jato, a respeito de crimes de lavagem de dinheiro ocorridos no âmbito do Banestado, no Paraná, tiveram início em 2006. Daquele ano até 2014, se passaram oito anos sem que a Polícia Federal, que comandava a operação, oferecesse uma só denúncia contra os investigados, o que, na definição da defesa de Paulo Okamoto, seria "investigação eterna".

Em 2013, após sete anos de investigações sobre o Banestado, Moro reconheceu as dificuldades para apontar os crimes, mas concedeu um prazo adicional de quatro meses para alguma conclusão. Esse prazo ainda foi renovado por mais três meses após o final. O inquérito foi arquivado, mas serviu como referência para a abertura de outro, que terminou na Lava Jato.
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(Após sete anos de investigações, depois de prolongar por 120 dias, Moro concede mais 90 dias)

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(Ao longo de oito anos, de 2006 a 2014, Moro quebrou inúmeros sigilos)

"A questão torna-se mais delicada se a investigação dura meses ou anos e em seu curso são adotadas medidas cautelares que invadem a privacidade alheia [afastamento de sigilos, interceptações etc.], sem que a investigação seja concluída. A última hipótese é típica de estados policiais e não de estados de direito", alerta o professor Geraldo Prado.

"Embora não haja na legislação brasileira um prazo máximo para a conclusão de investigações criminais, se os investigados estiverem soltos, não é possível admitir que a investigação possa se desenvolver sem um limite temporal", diz Gustavo Badaró.

Decisões tomadas sem consulta ao MPF
Durante os oito anos de investigações, o juiz Sérgio Moro autorizou sucessivas quebras de sigilo fiscal, bancário, telefônico e telemático e decretou prisões cautelares, sem consultar previamente o MPF (Ministério Público Federal) ou até contrariando recomendação deste órgão, que, por lei, é o titular da ação penal pública.

A história começou em 14 de julho de 2006, quando a PF fez uma representação para Moro, com o objetivo de investigar a relação de Youssef e Janene, solicitando a interceptação telefônica do primeiro. Quando isso ocorre, o procedimento normal é remeter o pedido ao MPF, para que se manifeste. Apesar disso, em 19 de julho de 2006, Moro deferiu todos os pedidos da PF sem prévia manifestação do MPF. Em seguida, não houve abertura de vista ao MPF, e a próxima manifestação da PF nos autos só ocorreria quase um ano mais tarde, em 3 de maio de 2007. Durante todo esse tempo, os policiais mantiveram uma investigação que incluía quebras de sigilo.

O primeiro despacho abrindo vista para o MPF só ocorreu em 9 de setembro de 2008, mais de dois anos após a abertura da investigação. Os procuradores, então, consideraram que já havia passado muito tempo de investigação sem qualquer resultado frutífero, e recomendaram que Moro extinguisse ali mesmo a investigação, a não ser que a PF se manifestasse dando provas de que estariam para surgir fatos novos que justificassem a continuidade das investigações.
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(Em 2008, MPF avisou que investigações eram infrutíferas e não pediu mais diligências)

Moro, no entanto, resolveu ir contra a recomendação do MPF, e permitiu que a PF continuasse investigando.

Em 06 de janeiro de 2009, quase 120 dias depois, surgia uma mensagem anônima com informações novas que levavam a crer que Yousseff e Janene mantinham um esquema de lavagem de dinheiro. A PF, então, pediu novas interceptações e quebras de sigilo bancário e fiscal de dezenas de pessoas e empresas. O MPF recomendou que delimitasse o pedido, indicando o período e os documentos a serem obtidos. Mais uma vez, Moro descumpriu a recomendação dos procuradores, e autorizou todos os pedidos da polícia. "Há motivos suficientes para deferir a quebra de sigilo fiscal e bancário relativamente a todas essas pessoas, considerando as suspeitas fundadas da prática de crimes expostas nas decisões anteriores e nesta, bem como por se inserirem no rastreamento bancário em andamento", disse o juiz, em despacho.

Outras nove vezes Moro deferiu quebras de sigilo, sem ouvir o MPF, justificando sempre da mesma forma. "Não o ouvi (MPF) previamente em virtude da necessidade de não haver solução de continuidade da diligência e por se tratar de prorrogação de medidas investigatórias sobre as quais o MPF já se manifestou favoravelmente anteriormente."

O professor Badaró explica as consequências desta prática. "O deferimento em si de um pedido sem oitiva prévia do MP não é ilegal, mas a sistemática utilização de tal expediente, por mais de um ano, permite que se coloque em dúvida a imparcialidade do julgador".

Presos sem acesso a advogados e banho de sol
A fase mais recente da Lava Jato trouxe denúncias de violações de direitos humanos -- prisões temporárias prolongadas com o objetivo de obter delações premiadas. Durante este processo, presos teriam sido isolados, privados de encontros com seus advogados e até de banho de sol. Um parecer do Ministério Público Federal de junho de 2014 aponta a ilegalidade dessas práticas e pedem que sejam interrompidas -- o preso em questão é Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras.
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(Ministério Público Federal emitiu parecer pedindo fim de restrições a direitos em prisão preventiva de Paulo Roberto Costa)

Outro Lado
No dia 29 de março, a reportagem do UOL informou à assessoria do juiz Sergio Moro que estava preparando uma reportagem sobre as supostas irregularidades constantes na origem da Lava Jato. O portal enviou ao magistrado a íntegra da reclamação constitucional interposta no STF pela defesa de Paulo Okamoto. A reportagem destacou, ainda, que chamavam a atenção "uma prova aparentemente ilícita (um grampo ilegal) que pode estar na origem de tudo, e uma série de manobras que teriam sido feitas pelo magistrado para manter a competência em Curitiba, contrariando o princípio do juiz natural e as regras de processo penal aplicáveis." Diante disso, solicitou, por fim, que Sergio Moro se manifestasse a respeito do assunto.

Menos de uma hora após o envio da mensagem, a assessoria de Moro respondeu ao UOL, afirmando que "o magistrado não se manifesta a não ser nos autos".

Apesar do atual silêncio do juiz paranaense, Moro já proferiu opiniões sobre alguns pontos ora em debate, seja em palestras, decisões judiciais ou textos acadêmicos. Em um artigo que escreveu em 2004, por exemplo, Moro defendeu o uso da prisão preventiva como forma de forçar um investigado a assinar um termo de delação premiada". O juiz considera válido "submeter os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a suspeita de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de confissão".

Sobre o grampo de conversas entre advogado e cliente, em manifestação enviada ao STF no último dia 29, a respeito do grampo dos advogados que defendem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Moro afirmou que o fez por considerar que um dos advogados seria parte do suposto grupo criminoso que estaria sendo investigado, o que tornaria legal a interceptação. Esta poderia ser uma explicação para o grampo supostamente ilegal que deu início à Lava Jato.