Este que segue abaixo, Clarice Lispector publicou na sua coluna no Jornal do Brasil - JB, em vez de redigir, como sempre, uma crônica. Trata-se de carta da atriz Fernanda Montenegro a propósito do livro "A paixão segundo GH" e do que ele suscita em relação ao período que vivem.
A carta vira crônica? E quem é autor, então? Como se contrói essa solidariedade entre sujeitos na passagem de uma carta privada a uma crônica pública nesse período histórico?
Carta de Fernanda Montenegro a Clarice Lispector - 1973
"Clarice,
É sempre com emoção que lhe escrevo pois tudo o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma angústia terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, desesperada e guardada.
Ao ler meu nome escrito por você, recebi um choque não por vaidade mas por comunhão. Ando muito deprimida, o que não é comum. Atualmente em São Paulo se representa de arma no bolso. Polícia na porta dos teatros. Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de gente de teatro. É o nosso mundo.
E o nosso mundo, Clarice?
Não este, pelas circunstâncias obrigatoriamente político, polêmico, contundente. Mas aquele mundo que nos fala Tchecov: onde repousaremos, onde nos descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não a verá. Quando eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de 'canção sem palavra', tão comum no século XIX. O amor no século XXI é a justiça social. E Cristo que nos entenda.
Estamos aprendendo a lição seguinte: amor é ter. Na miséria não está a salvação.
Quem não tem, não dá. Quem tem fome não tem dignidade (Brecht). Clarice, estou pedindo desculpas por esse palavratório todo. Mas deixe que eu mantenha com você esta sintonia dolorosa dos que percebem alguns mundos, não apenas este ou aquele, porém até mesmo aquele outro, embora não linearmente - como é o caso.
Nossa geração sofre da frustração do repouso. É isso, Clarice? A luta que fizermos, não faremos por nós. E temos uma pena enorme de nós por isso. É assim que explico pra mim frases que você põe no seu artigo: 'Eu que dei pra mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar, e, como sei que estou enganando, digo por dentro verdades duras.' A luta, a que me refiro lá no alto, seria aquela luta bíblica, a grande luta, a que engloba tudo.
Voltando às 'verdades duras' de que você fala: na minha profissão o enganar é a minha verdade. É isso mesmo, Clarice, como profissão. Mas na minha intimidade toda particular, sinto, sem enganos, que nossa geração está começando a comungar com a barata. Nós sabemos o que significa esta comunhão, Clarice. Juro que não vou afastá-la de mim, a barata. Eu o farei. Preciso já organicamente fazê-lo. Dê-me a calma e a luz de um momento de repouso interior, só um momento.
Com intensa comoção,
Fernanda"
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