Mesmo em meio a uma crise política e econômica, o Brasil já deu abrigo a
mais de 2.000 refugiados sírios desde o começo da guerra no país. O
número, divulgado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare),
revela que a abertura brasileira é maior do que a dos Estados Unidos
(1.243) e até da Grécia (1.275), uma das portas de entrada na Europa,
vinculando no mundo a imagem de um país hospitaleiro, onde todos os
estrangeiros e imigrantes são bem-vindos.
"Isso não passa de um mito", assegura o pesquisador Gustavo Barreto,
que defendeu recentemente uma tese sobre a percepção do estrangeiro pela
imprensa brasileira. Após mergulhar em mais de 11 mil edições de
jornais e revistas entre 1808 e 2015, ele concluiu que o racismo contra
imigrantes, refugiados e estrangeiros é constante na imprensa
brasileira, que emplaca a ideia de uma aceitação seletiva.
Leia também: Imigrantes negros que chegam ao Brasil deparam-se com 'racismo à brasileira', diz sociólogo
Sérgio Vale / Secom
Acre é uma das principais portas de entrada para haitianos que desejam reconstruir a vida no Brasil
Os imigrantes não viram notícia da mesma maneira. “Se for um imigrante
‘aceitável’, como os europeus, ele vai aparecer em geral por aspectos
tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for
‘aceitável’, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que
enfrentam. Uma leva de haitianos é considerada uma ‘invasão’ e a mesma
leva de espanhóis é considerada um ‘movimento migratório’”, explica
Barreto.
Na tese “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da
Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015”,
Barreto analisou a cobertura do tema em jornais como
O Globo,
O Estado de S. Paulo,
Folha da Manhã,
Correio da Manhã,
O País e
Gazeta do Rio de Janeiro
desde a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro até hoje. Algumas
matérias encontradas por Barreto e a introdução da tese estão
disponíveis no site
Mídia Cidadã.
Opera Mundi: Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4
milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se
devendo aos imigrantes. O Brasil é uma terra de imigração?
Gustavo Barreto: Eu diria que o país está em um meio
termo. Terra de imigração são os Estados Unidos, a França, o Canadá, a
Argentina. Nesses países, mesmo que se observe em alguns casos um
direcionamento racial muito claro, a participação do imigrante na
formação da sociedade é de duas a cinco vezes maior. Mas o Brasil é
certamente um caso interessante, com diferentes povos interagindo quase
que por acidente, diante da incoerência entre as políticas ao longo do
tempo e dentro do país.
OM: “O Brasil está de braços abertos”
para os refugiados, disse a presidente Dilma Rousseff em pronunciamento
no último dia 7 de setembro. Qual é historicamente a visão do refugiado
no Brasil? Com esta asserção do governo, você diria que existe uma
inflexão importante?
GB: No Brasil, historicamente, o refugiado e o
imigrante fugindo da guerra e da fome – caso de muitos europeus durante
todo o século 19 e início do século 20 – são vistos como trabalhadores,
recursos úteis para a economia. No entanto, somos responsáveis por
algumas das políticas mais xenófobas e racistas já adotadas em qualquer
país. Já no início da República, os governantes proibiram a entrada de
“pretos” e “amarelos”, o que era mais ou menos um consenso no regime
anterior. Depois, os gestores de Vargas deixavam claro que os negros “de
fora” não deveriam se misturar com os negros brasileiros, o que se
confirmava não só pelas declarações na imprensa como pela política
adotada. Esse cenário nunca mudou totalmente nestes 200 anos que cobrem
minha pesquisa. Existe uma política discricionária em relação à
imigração, com algumas tentativas do governo federal, nos últimos 20
anos, de humanizar a questão do refúgio, por exemplo. Mas a lei voltada
para os estrangeiros continua sendo uma lei aprovada durante a ditadura
militar.
A visão do “Brasil de braços abertos” não me parece a mais adequada.
Apesar de o governo federal adotar uma posição notoriamente divergente
em relação a muitos países do mundo – e isso produz uma enorme diferença
no cotidiano dos refugiados do Brasil, sem dúvida –, e certamente
distinta em relação a outros tempos históricos de xenofobia aberta, o
refugiado hoje sequer é recebido pelas instituições sociais federais ou
regionais. No aeroporto, ainda é a Polícia Federal [que o recebe]. Ao
entrar – quando consegue –, ele é recebido pela Igreja Católica ou por
ONGs. Na prática, o governo empurra uma enorme responsabilidade para
instituições que pouco podem diante de uma crise deste tamanho. Basta
ver a situação das instituições receptoras de refugiados e de outros
imigrantes em São Paulo. Apesar de o governo federal, em parceria com a
ONU, dar algum apoio, a resposta ainda fica muito aquém do que deveria. E
isso em um país que possui atualmente pouco mais de 8 mil refugiados,
segundo os dados oficiais. Oito mil é o número aproximado de refugiados
que entram pela Grécia [na Europa] todos os dias. É menos do que entra
na Alemanha em algumas horas. Não temos condição de comparar, ainda.
Arquivo pessoal
O pesquisador Gustavo Barreto (esq.) estudou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração
Eu trocaria a imagem dos “braços abertos” pela imagem de alguém abrindo
uma porta, de braços fechados, e permitindo a entrada dos refugiados. É
uma ação humanitária louvável, mas está longe de serem os “braços
abertos” anunciados.
OM: Como o imigrante vira notícia?
GB: Se for um imigrante “aceitável” – como os europeus
ou alguns outros tidos como “brancos” (e a “branquitude” é social em
alguns casos) –, [aparece na imprensa] em geral por aspectos tidos como
culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for “aceitável”, vira
notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam ou de dois em
dois mil – ou seja, reúna dois mil haitianos no mesmo lugar e eles
viram, talvez, notícia. Dentro deste mecanismo, não é difícil entender
porque uma leva de haitianos é considerada uma “invasão” e a mesma leva
de espanhóis é considerada um “movimento migratório”.
Recentemente, uma prova de vestibular de uma importante universidade privada questionou seus candidatos sobre qual é
o imigrante “de que o Brasil precisa”.
O gabarito trará provavelmente a ideia de que imigrantes são bons para a
economia, como descreveu Sayad, enquanto outros não são necessários,
não se “precisa” deles. O mais lamentável, a meu ver, é a ideia de que o
imigrante ainda leva consigo, mesmo passados 70 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o carimbo de trabalhador, de necessário
ou desnecessário. Mesmo que a História nos ensine que migrar é uma
necessidade tão básica quanto comer.
OM: Hoje, como está percebida a chegada dos sírios e dos
haitianos, dois povos empurrados de seus países em um contexto de
emergência?
GB: A reação é totalmente diferente, e isso não é
nenhuma novidade. Como o número de haitianos é grande desde 2010, eu
pude observar na minha tese o racismo aberto e amplo contra os
haitianos, quase todos negros. Até mesmo o medo do ebola atingiu os
haitianos, que sequer passam pela África na rota mais comum para o
Brasil.
Com os sírios – e ao longo da história tem sido assim, segundo pude
observar na tese –, o cenário muda um pouco. Agora mesmo, podemos
observar dezenas de matérias na imprensa de solidariedade com o povo
sírio. A guerra não é a única explicação, do contrário a simpatia se
estenderia aos refugiados da República Democrática do Congo, de Angola
ou do Mali, por exemplo. E o que observamos é uma cobertura notoriamente
negativa, quando haviam apenas angolanos e liberianos para mostrar. A
cobertura sobre os angolanos nos anos 1990 os destacava como traficantes
ou pequenos contraventores, marginalizados que estavam em bairros e
favelas da periferia do Rio como o Complexo da Maré.
O que mudou, então? Os sírios, a meu ver, são mais palatáveis. E nos
anos 1930, durante uma crise parecida no Oriente Médio, a mídia foi
decisiva para eleger quais árabes eram aceitáveis e quais não eram. Em
1934, os assírios passaram em poucos meses de campanha midiática de
“árabes cristãos” a “refugiados muçulmanos”. Depende da forma como você
constrói. E a visibilidade positiva que você, enquanto editor, decide
dar a cada povo. E isso está acontecendo hoje tal como há 200 anos vem
acontecendo.
OM: Houve uma preocupação com o embranquecimento da sociedade brasileira?
GB: O tempo todo. Esta é uma dinâmica que corta toda a
sociedade brasileira até os dias de hoje. O desejo de se europeizar
permanece no discurso público, mesclado agora com a hegemonia
norte-americana. Isso era claro durante todo o século 19 por meio de
políticas públicas e discursos abertos; mais ou menos evidente durante a
Primeira República; envergonhado, porém fortemente persistente durante o
período Vargas; e envergonhado e persistente durante o pós-Segunda
Guerra Mundial. Conforme destaquei anteriormente, a cobertura de
imprensa ainda nos dá pistas concretas acerca da ideologia do
embranquecimento. Mas é preciso, agora, avaliar o dito pelo não dito –
certamente uma nova forma de perpetuar o racismo, mas ainda muito
presente e ainda muito eficaz.
Reprodução Facebook
Refugiados durante curso de adaptação gratuito oferecido pela USP com aulas gratuitas de geografia do Brasil
OM: Como é vista a imigração “natural”, a dos vizinhos?
GB: Igualmente problemática, porém mais antiga e,
portanto, mais acomodada. A boa relação com os países do Mercosul ajuda
bastante, mas há casos em que os estigmas que estão escondidos no
cotidiano do brasileiro ressurgem a partir de matérias sensacionalistas
da imprensa. Casos de crimes cometidos por estrangeiros, por exemplo,
costumam ser ressaltados de modo que um país – e seus respectivos
nacionais, portanto – passa a ser “condenável” na imprensa. Pelo menos
por um período, enquanto durar a repercussão de um caso.
OM: Do ponto de vista do vocabulário, qual é, na imprensa, a diferença no uso dos termos imigrante, estrangeiro e refugiado?
GB: Isso pode variar, claro, mas eu observei na minha
tese que há gradações de aceitação. O refugiado é o menos aceito,
historicamente, por carregar o peso das guerras. Um dos principais
autores que eu consultei, Abdelmalek Sayad, constata por exemplo que
muitos dos imigrantes são obrigados a carregar o seu país nas costas. E
com a evidência de uma guerra ou um conflito civil, o refugiado é o mais
“pesado”.
O imigrante, por outro lado, é a incógnita. A questão acaba sendo essa:
ao ser tornado uma incógnita, ele não é nem um cidadão de seu país, nem
um cidadão nacional. Deixá-lo nesse limbo permite, por exemplo, que
muitos governos expulsem imigrantes assim que estes se tornem não mais
“desejáveis”, e a aceitação dele pode variar de acordo com fatores
culturais ou econômicos.
O estrangeiro, por outro lado, é o “turista” do qual fala Zygmunt
Bauman. A sua principal característica é a mobilidade. Ao contrário do
imigrante, que é obrigado a se enraizar em um único lugar devido às
dificuldades financeiras e políticas, o estrangeiro transita pelo mundo
sem se preocupar com sua raiz. Ele pode se deslocar quando bem entender,
e isso o diferencia inclusive do próprio nacional que nunca terá
condições de se desterritorializar.
***
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OM: Esses “papéis” podem ser trocados?
GB: Claro, o refugiado pode ser visto, arrisco, como
um “coitado” que deve ser acolhido, enquanto o imigrante pode tomar o
lugar do “aproveitador”, que quer apenas enriquecer e roubar os recursos
do país. Estes são discursos bastante comuns durante toda a história do
Brasil e foram feitos contra os judeus e alguns grupos de árabes, por
exemplo, durante todo o início do século 20. O que todos estes discursos
e conceitos promoveram, ao longo desse período? A desumanização daquela
pessoa que está por trás do imigrante, do refugiado, do estrangeiro.
Era uma forma de dizer claramente, seja para qual efeito fosse: você é o
outro. Não somos iguais. Não é à toa que, conforme descrevo na tese,
pelo menos 12 campos de concentração de estrangeiros foram identificados
durante os anos 1930 e 1940. Não eram, certamente, os mesmos que se
viam na Europa naquele momento. Mas a gênese e, inclusive, os grupos,
eram os mesmos.
Luiz Carlos Erbes/ Câmara Municipal de Caxias do Sul
Ganenses que vieram para a Copa do Mundo em 2014 e pediram refúgio ao Brasil recebem orientação
OM: Como é percebido o estatuto do escravo, que foi um imigrante forçado?
GB: O escravo nunca foi reconhecido oficialmente como
tal até o início da década de 2000. Até mesmo as Nações Unidas demoraram
em reconhecer a escravidão como um crime contra a Humanidade, o que
exige um processo de reparação e conciliação. Para que não se tenha
dúvida de que o negro era nocivo ao futuro do Brasil, os republicanos do
fim do século 19 legislaram para que fosse proibido subsidiar a entrada
de imigrantes negros. A tese conta um caso curioso de um projeto de lei
que tentou trazer negros livres para o Brasil na década de 1850, com
recursos públicos. Não passou, evidentemente, mas isso demonstra um
pouco a força que tem a figura do imigrante como trabalhador – o
imigrante trabalhador é praticamente um pleonasmo na História da
imprensa brasileira que pesquisei. E o negro era um “bom” trabalhador,
desde que fosse colocado em seu lugar, de subalternidade.
A luta do negro para se tornar cidadão é tão atrasada que, eu arrisco,
ainda está longe de chegar a um patamar aceitável de inclusão. As
profissões similares ocupadas por escravos durante o século 19, como
amas de leite e carregador, ainda são ocupadas por uma imensa maioria de
negros. E isso tem a ver com o status do negro – e aí incluímos os
haitianos, os malineses, os congoleses, etc – de subalternidade que é
imposto na imprensa brasileira ao longo desses anos. Isso mudou? Não
sei. Pela minha área de atuação, que é restrita aos imigrantes na
imprensa, não muito.
OM: Diferentes comunidades costumam ser percebidas de maneiras
diferentes: "os japoneses são trabalhadores", por exemplo. Existem
muitos estereótipos?
GB: Os estereótipos são percebidos em toda a história da imigração relatada pela imprensa. Há dezenas de exemplos na tese e no
site da tese.
Eles mudam, é claro, de acordo com os ventos políticos. Há diversas
entradas possíveis: ideológicas, sociais, culturais, religiosas. Depende
dos objetivos de cada grupo político. Houve, como afirmei, quem
defendesse o negro como trabalhador em plena década de 1850, enquanto
outros trabalhadores – como os judeus e os árabes em alguns momentos no
início do século 20 – foram tidos como “aproveitadores” por basearem
toda a sua renda no comércio, que supostamente não “produzia”
efetivamente nada. No fundo, os estereótipos cumprem uma função
política. Uma vez alcançados os objetivos políticos, muitos dos
estereótipos eram deixados de lado, substituídos pelo “humanismo” da
“hospitalidade” brasileira – outro recurso usado na esmagadora maioria
das vezes apenas com um propósito político. Incluindo o de expulsar
algumas etnias.
OM: Houve épocas em que o imigrante era mais bem visto ou, ao
contrário, mais rechaçado? Já houve a tentação de fechar as fronteiras?
GB: Não há nenhum período político brasileiro em que
não houvesse a tentativa – muitas vezes bem-sucedida – de “fechar as
fronteiras”. Todos – inclusive o atual. Essa tentação dá o tom do
“diálogo” em torno da imigração. Mais recentemente, por exemplo, quando a
imprensa relatou uma suspeita de ebola de um guineense no sul do país,
milhares de comentários pelo fechamento das fronteiras foram repetidos
nos portais de informação e pelas redes sociais, mesmo que a Organização
Mundial da Saúde alertasse que este não era um caminho razoável ou
aceitável. E isso tem a ver não apenas com a ideologia das pessoas, mas
com a forma como a imprensa coloca o tema – conforme mostrei na tese. O
sensacionalismo é um dos métodos para assustar as pessoas.
Em outros momentos, o imigrante por vezes era mais bem visto – o
branco, católico, trabalhador – enquanto esse jogo poderia virar na
geração seguinte – caso dos italianos “subersivos”, ou quando a Itália
estava do “lado errado” da guerra. Há grupos, no entanto, que nunca
tiveram uma aceitação ampla e irrestrita por parte da imprensa. É caso
dos muçulmanos abertamente praticantes. E esse é um problema estrutural
que persiste. Há, evidentemente, outros casos, como o dos paraguaios,
dos bolivianos ou dos chineses. O estigma pesa muito mais do que em
relação aos espanhóis ou os sírios, por exemplo.
OM: Qual é o impacto de eventos como o 11 de setembro ou ações
do Estado Islâmico sobre a percepção do público brasileiro sobre árabes e
muçulmanos?
GB: A imprensa passa a ideia, atualmente, que os
atentados dos EI pesam sobretudo contra os cristãos, quando são os
muçulmanos – qualquer um que se coloque contra o fundamentalismo e,
portanto, uma imensa maioria de muçulmanos – as maiores vítimas. Não são
os grandes eventos que formulam esse tipo de orientação, e sim a
imprensa que, pouco a pouco, vai idealizando um cenário em que há atores
facilmente identificáveis em um roteiro pré-moldado. Ao tentar
“explicar” os acontecimentos de modo “simples”, a imprensa ainda
continua ressuscitando velhos fantasmas de modo eletivo. É por isso que
os rebeldes de maioria cristã da República Centro-Africana, que promovem
atrocidades parecidas com as do Boko Haram, são muito menos conhecidos.
Ou, em outro exemplo, é isso que faz com que os budistas sejam vistos
no país como sinônimo de povo pacífico, mesmo que haja fundamentalistas
extremamente violentos no sul da Ásia. Esses relatos não cabem na
historinha contada na grande imprensa.
Lamia Oualalou / Opera Mundi
Salam é um dos refugiados que vive em ocupação de grupo de sem-teto no centro de São Paulo
OM: Existe um complexo de vira-lata em relação a alguns estrangeiros?
GB: Sem dúvida. Isso, no caso da tese, é percebido na
forma elogiosa, quase que divina, que são relatadas algumas culturas
europeias aqui estabelecidas. Isso nada tem a ver com a realidade, mas
esse mecanismo tem a ver com a noção de que alguns povos são superiores a
outros, o que tem sido combatido desde marcos como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. A minha real expectativa é de que essa
diferenciação – pelo menos tal como se dava nos séculos anteriores –
tende a enfraquecer.
OM: Como explicar a dificuldade encontrada para mudar o estatuto do estrangeiro, que data da época da ditadura?
GB: Trata-se de um misto de descaso com
conservadorismo. Ainda impera, inclusive no discurso de esquerda – o que
impressiona, pois trata-se evidentemente de um discurso da direita –,
um nacionalismo que teima em segregar os nacionais e os estrangeiros,
relegando os estrangeiros a eternos “outros”. Esse discurso não encontra
base na realidade, mas persiste, de alguma forma. O descaso é coerente
com a atenção que o tema recebe do público em geral. A questão imigrante
parece um capítulo relegado ao esquecimento, uma nota de rodapé na
história do Brasil. O assunto sempre retorna, mas como um detalhe, um
apêndice.
A tese que prevaleceu é a tese conservadora do “caldeirão cultural”.
Uma vez jogados todos num caldeirão, sairia uma raça melhorada, mistura
da força do negro (ou sem o negro, de preferência) com a inteligência do
europeu. Daí nasceria o brasileiro, o “diverso”, que é outra coisa,
única. A ideia de que várias culturas poderiam conviver é pouco aceita,
na prática: a diversidade tipicamente brasileira tem a ver com o fato de
que todas as culturas deveriam sumir, produzindo o brasileiro
miscigenado (porém brasileiro).
Dessa forma, mudar o estatuto de uma peça de segurança pública, como é
atualmente, para uma legislação humanista e aberta à diversidade não
encontra ampla aceitação na sociedade. Essa aceitação pode ser moldada
e, novamente, os estereótipos certamente serão convidados a atuar
politicamente em prol dos projetos em disputa. Essa é uma longa batalha e
meu palpite é que, caso venha à tona, pode se tornar um grande debate
nacional – o que, no cenário de ultraconservadorismo atual, pode ser um
desastre. Analiso a cobertura da aprovação do estatuto em vigor, no
início da década de 1980, e não me parece algo distante do que vivemos
hoje.