O novembro negro e os meios de comunicação
Escrito por: Alex Hercog
Fonte: Carrta Capital/Intervozes, via FNDC
Fonte: Carrta Capital/Intervozes, via FNDC
É preciso disputar os lugares de produção de sentidos, como a mídia, para acabar com o racismo
Em uma entrevista, Cartola afirmou que uma de suas principais canções,
“O sol nascerá”, foi gravada sem que ele soubesse, pois um atravessador
havia vendido a composição. Ela, então, foi trabalhada por mais de 25
artistas. Cartola, cujo avô foi escravizado, morreu como nasceu: pobre.
O sambista carioca era torcedor do Fluminense. Dois anos antes de
Cartola escolher o tricolor como time do coração, um episódio marcou a
história do clube: o jogador Carlos Alberto foi provocado pela torcida
do América, que o chamou de “pó de arroz”. Negro, o atacante tricolor
sempre passava pó no rosto antes das partidas para dar uma
esbranquiçada. Até hoje, o time adota o pó de arroz como símbolo.
Bastidores da gravação da novela Os Dez Mandamentos, da Tv Record |
Passado quase um século, ainda tem gente no Brasil que se pinta para
mudar a cor da pele. É o caso dos atores da emissora da Igreja
Universal. Na novela de sucesso “Os Dez Mandamentos”, boa parte da
história se passa no norte da África e os personagens não são
majoritariamente brancos. Os atores, contudo, são. Em vez de contratar
atores afrodescendentes, a escolha da Record foi de dar os principais
papéis para atores brancos, que são tornados “morenos” com quilos de
maquiagem.
Na TV da família Marinho, “somos todos Maju”. Mas não negros. Os
apresentadores e apresentadoras da emissora e de suas afiliadas são
majoritariamente brancos. Na principal novela em exibição, “A Regra do
Jogo”, são 48 atores e atrizes no seu elenco central. 43 são brancos e 5
são negros. Os personagens são descritos
pela emissora da seguinte forma: “Ninfa: beldade do morro e semideusa
do funk”; “Dênis: bandido e membro da facção criminosa”; “Iraque: bonito
e sedutor; mototaxista da comunidade”; “Indira: sensualíssima e cabeça
dura” e “Dinorah: empregada doméstica há mais de 30 anos”.
O favelado compunha o samba, mas não ganhava dinheiro; o branco gravava
e ficava rico. Não bastava o atacante ser bom de bola, precisava se
pintar para não parecer tão negro. Se o personagem for um imperador, da
elite social, ainda que africano, o papel tem que ser dado para um ator
branco. Mas se o personagem for bandido, desenvolva um trabalho de baixa
remuneração ou tenha apelo sexual, então o ator negro é o ideal para
interpretá-lo.
E não só no campo do entretenimento seguem as opressões. No dia 18 de
novembro, mais de 15 mil mulheres negras de todos os estados brasileiros
marcharam em Brasília contra o racismo, a violência e pelo bem viver.
Pouco adiantou para sensibilizar os meios de comunicação, que só
transformou a marcha em notícia após um homem branco pró-impeachment ter
atirado com um revólver durante a passeata. Ele foi a notícia, não as
milhares de mulheres e suas reivindicações.
No dia 20, a marcha da Consciência Negra também reuniu milhares de
pessoas em diversas cidades do Brasil. Em Salvador – cidade com mais
negros no mundo fora da África – duas grandes passeatas marcaram o dia.
Uma delas, que ocorreu no centro, praticamente não foi objeto de
cobertura midiática. A outra, na área conhecida como Liberdade, a
imprensa compareceu, atraída pela presença do ex-presidente Lula.
Os enquadramentos adotados pelos jornais relevam suas escolhas
políticas. “Lula está em Salvador marchando no dia da Consciência Negra”
rendeu mais notícia do que, por exemplo, “Movimento Negro quer o fim
dos autos de resistência”; “Manifestantes são contra a redução da
maioridade penal”; “Participantes pedem justiça no caso da Chacina da
Vila Moisés/Cabula”.
Na mídia, aliás, pouco ou quase nada se discute sobre como manter vivos
os jovens negros, o que fazer para que a população negra ocupe outros
espaços que não os presídios ou também quais políticas públicas devem
ser desenvolvidas junto aos moradores de favelas. E isso não ocorre por
falta de apelo ou conhecimento. De acordo com o Mapa da Violência,
no Brasil são assassinadas 116 pessoas por dia. Quase 70% são negros.
Praticamente a mesma porcentagem de negros encarcerados, em um país que
tem mais de seiscentos mil presos. Nas favelas, a contagem se repete:
72% dos moradores desses locais se declaram negros.
Portanto, mulheres, músicos, atores e jovens negros: as suas demandas
políticas, o seu reconhecimento profissional, a valorização financeira
do seu trabalho e o seu direito à vida continuam sendo cerceados. E o
são também pelos homens brancos que, por razões históricas, controlam o
poder econômico, político, religioso e midiático do país. Para mudar a
realidade, é preciso disputar esses poderes. É preciso disputar a
comunicação, hegemônica e alternativa, para que outras narrativas
produzam novas representações e vivências. Que este novembro fortaleça
esse movimento. “Fim da tempestade, o sol nascerá”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário