Às que vieram antes de nós: histórias do Dia Internacional das Mulheres
As origens socialistas do 8 de Março
Por Daniela Lima.
“Ao longo da maior parte da História, Anônimo foi uma mulher”.
VIRGINIA WOOLF
“Vocês, que vão emergir das ondas
Em que nós perecemos, pensem,
Quando falarem das nossas fraquezas,
Nos tempos sombrios
De que vocês tiveram a sorte de escapar”
Em que nós perecemos, pensem,
Quando falarem das nossas fraquezas,
Nos tempos sombrios
De que vocês tiveram a sorte de escapar”
BERTOLT BRECHT
Era perto do
fim do expediente da tarde de sábado, 25 de março de 1911, quando uma
nuvem de fumaça se espalhou pelos três andares superiores do Asch Building, em Nova York. Ouviu-se o som de estilhaço de vidro seguido de um forte estampido. As trabalhadoras da Triangle Shirtwaist Company,
que ocupava o espaço, acreditavam que fossem fardos de tecido ou
pedaços da fachada que se desprendiam do prédio consumido pelo fogo.
Logo perceberam o horror absoluto: aquele estranho estampido vinha dos
corpos de mulheres e meninas que se jogavam das janelas tentando escapar
das chamas. Bombeiros tentavam inutilmente amparar a queda com redes de
proteção que se rompiam pelo peso dos corpos. A fumaça e os gritos se
alastravam por quarteirões, bombeiros desorientados direcionavam as
mangueiras para os últimos andares do prédio tomado pelas chamas, mas a
água só tinha pressão para atingir o sétimo andar do Asch Building. Em
apenas 18 minutos, o incêndio transformou o oitavo, o nono e o décimo
andar em escombros. Dentro do prédio, trabalhadoras se espremiam contra
duas saídas de emergência – uma delas estava trancada.
Eu, junto com outras moças estava no vestiário do oitavo andar [da fábrica] (…), às 4h40 em ponto, da tarde de sábado, 25 de março, quando ouvi alguém gritar: fogo! Larguei tudo e corri para a porta [de emergência] que estava trancada e, imediatamente, as meninas se amontoavam atrás dela. Os patrões mantinham todas as portas fechadas a chave o tempo todo por medo que as meninas pudessem roubar alguma coisa. Algumas meninas estavam gritando, outras esmurrando a porta com os punhos. (Depoimento de Rosey Safran apud GONZÁLEZ, 2010)
Os três pisos da Triangle Shirtwaist Company eram
ocupados por 260 trabalhadores e 240 máquinas de costura amontoadas. As
máquinas ordenadas em 16 fileiras, muito próximas, bloquearam os
caminhos em direção às portas de emergência. A fábrica não respeitava
princípios básicos de segurança e havia sido notificada diversas vezes
pelo Departamento de Construção sobre as perigosas condições do prédio.
O Asch Building terminou de ser construído em 1901, tinha 41 metros de altura e a sua estrutura, o assoalho, a moldura das janelas e portas eram de madeira. (…) Dadas as suas dimensões, o imóvel deveria ter sido equipado com três escadas de acesso, mas tinha apenas duas (…) que foram construídas tortuosas e estreitas. (…) O artigo 80 da Legislação Trabalhista Estadual (State Labor Law) estabelecia que as portas das fábricas deveriam abrir para fora (…) e que não podiam estar fechadas com chaves durante as horas de trabalho. No Asch Building, todas as portas abriam para dentro, devido à estreiteza dos corredores e escadas. (…) O Departamento de Construção enviou uma carta aos proprietários da fábrica (…) na qual denunciava as perigosas condições em que trabalhavam os operários, de quem nunca recebeu resposta. (GONZÁLEZ, 2010, p. 33-35)
No incêndio,
morreram 146 trabalhadores, dos quais 17 eram homens e 129 eram
mulheres e meninas – 90 delas se jogaram pelas janelas do prédio. A
maioria das jovens era imigrante, tinha entre 16 a 24 anos e trabalhava
em condições desumanas. Seus salários equivaliam a um terço do recebido
pelos homens, enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes e não tinham
condições mínimas de segurança.
Isaac Harris
e Max Blanck, proprietários da empresa e conhecidos por tratar
trabalhadores como “dentes de uma engrenagem”, foram acusados de
homicídio culposo. O júri composto unicamente por homens – na época
mulheres não podiam ser juradas em Nova York – os inocentou de todas as
acusações: “a defesa argumentou que não se poderia provar que eles
tivessem mandados fechar as portas” (GONZÁLEZ, 2010). A palavra das
sobreviventes, que afirmaram que os patrões trancavam as portas, de nada
valeu.
Do lado de
fora do tribunal, familiares, trabalhadores e ativistas gritavam: –
assassinos! O som se espalhou pelas esquinas de Nova York e 300 mil
pessoas foram às ruas debaixo de chuva para um funeral simbólico. A
pergunta era: de quem é a responsabilidade? Dos inspetores de construção
que permitiram escadas de incêndio inadequadas? Dos políticos que não
exigiram normas de segurança? Ou dos proprietários que ignoraram as
recomendações da fiscalização em nome do lucro? Ou de todos eles que
tratavam operárias, sobretudo as imigrantes, como cidadãs de terceira
classe?
A RELAÇÃO ENTRE A GREVE GERAL E O INCÊNDIO
A história
do incêndio foi contada e recontada várias vezes e ao longo do tempo
alguns fatos acabaram se embaralhando: na versão comumente repetida, as
trabalhadoras estariam ocupando a Triangle Shirtwaist Company
durante uma greve e os patrões teriam trancado as saídas e ateado fogo
na fábrica. No entanto, os relatos das sobreviventes dão conta de que
não havia greve naquele momento. Uma das maiores greves da indústria
têxtil de Nova York aconteceu de setembro de 1909 até fevereiro de 1910 –
cerca de um ano antes do incêndio. As trabalhadoras da Triangle
foram as primeiras a parar, produzindo um efeito dominó até a
deflagração da greve geral, conhecida como “o levante das 30 mil”. Foi a
primeira grande greve de mulheres no país, numa época em que nem mesmo o
direito ao voto havia sido conquistado.
No documentário Triangle – Remembering The Fire, Katharine Weber conta que sua avó, Pauline Gottesfeld Kaufman, trabalhadora da Triangle, foi brutalmente atacada pela polícia e por pessoas pagas para ‘desfazer’
a greve: “minha avó me falou de um guarda que tentou prendê-la ou
agarrá-la. Ela se envolveu numa luta corporal com ele e conseguiu fugir.
Quando parou e olhou para a própria mão, viu que arrancou um tufo de
cabelo dele e ainda o segurava. Muitas mulheres foram presas acusadas de
perturbar a ordem pública”.
Em novembro
de 1909, na assembleia do sindicato das empresas Cooper, Clara Lemlich,
trabalhadora presa pela polícia sete vezes por agitação, fez um discurso
que marcou a história do movimento sindical nova-iorquino: “sou
operária, uma dessas que estão em greve contra condições intoleráveis de
trabalho. Estou cansada de ouvir oradores. (…) Estamos aqui é para
decidir se entraremos ou não em greve. Apresento uma resolução a favor
da greve geral já”.
No setor têxtil, as mulheres constituíam a maior parte da mão de obra. As condições em que trabalhavam eram deploráveis. (…) A paralisação começou no dia 27 de setembro de 1909, precisamente na Triangle Shirtwaist Company. (…) Os trabalhadores demandavam salários mais altos, melhorias nas condições de trabalho, abolição do sistema de subcontratação, jornada de trabalho de 52 horas semanais e, sobretudo, o reconhecimento de seus direitos sindicais. (GONZÁLEZ, 2010, p. 33-45)
As jovens da Triangle eram consideradas um problema pelos poderosos empresários do Lower East Side.
Portanto, não é possível afirmar que não existam conexões entre o
incêndio e a greve, ainda que a versão oficial diga que o fogo foi
provocado por um trabalhador que teria jogado um cigarro aceso próximo
de rolos de tecido que se acumulavam no oitavo andar do prédio. Fica
evidente que o aparato jurídico, cujas leis beneficiavam os empresários,
responsabilizaram os próprios operários por sua morte.
Quando a
greve foi encerrada, mais de trezentos patrões tinham feito acordo com
os trabalhadores – no entanto, treze empresas, incluindo a Triangle, não
chegaram a nenhum acordo: “se tivessem aceitado as reivindicações dos
grevistas, o incêndio que ocorreu no ano seguinte provavelmente não
teria acontecido” (GONZÁLEZ, 2010).
Em
consequência do incêndio, foi criada a Comissão de Investigação das
Fábricas, que passou a avaliar o risco em inúmeros estabelecimentos.
Frances Perkins, que se tornaria a primeira Secretária do Trabalho, fez
parte da comissão – ela estava na Washigton Square no dia do
incêndio e viu as jovens pulando das janelas do prédio de mãos dadas e
abraçadas. Os dados apurados pela Comissão levaram à promulgação de leis
em Nova York que regulavam normas de segurança, salário mínimo,
assistência aos operários desempregados e assistência aos velhos demais
para trabalhar.
O incêndio da Triangle Shirtwaist Company
marcou de forma indelével o mês de março como um momento de se
interrogar o passado para retomar o presente de forma crítica.
Interrogar não apenas a história das mulheres operárias do início do
século XX, mas de todas as mulheres que vieram antes de nós. A história
do Dia internacional das Mulheres atravessa o movimento das mulheres
operárias norte-americanas, que comemoravam em diversos Estados o Woman’s Day, desde
1908, pelo esforço do movimento de mulheres socialistas para
internacionalizar a data, em 1910, e por diversos acontecimentos que
marcaram a história da luta das mulheres em diferentes partes do mundo.
Nenhuma dessas histórias pode ser apagada.
Quando Clara
Zetkin propôs, na Segunda Conferência Internacional da Mulher
Socialista, realizada em 1910, um dia internacional dedicado à
reivindicação dos direitos das mulheres, ainda não havia uma dia
definido, mas a intenção de unificar uma data para celebrar a
solidariedade internacional na luta pelos objetivos comuns.
As mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão em seus respectivos países um dia especial das mulheres (…). Será necessário debater essa proposição com relação à questão da mulher a partir da perspectiva socialista. (ZETKIN apud GONZÁLEZ, 2010, p. 115)
Entre 1911 e
1914, o Dia Internacional das Mulheres foi comemorado em datas
diferentes do mês março. Apenas em 8 de março de 1917, com a deflagração
da greve das tecelãs de São Petersburgo que impulsionou a Revolução
Russa, esta data foi consagrada como o Dia Internacional das Mulheres.
No entanto, organizações internacionais – como a ONU e a UNESCO –
demoraram mais de 50 anos para reconhecer a data, e só o fizeram por
pressão e insistência dos movimentos feministas.
Relembrar os
caminhos que levaram a instituição dessa data é um modo resistir. Hoje,
é importante impedir que o conteúdo emancipatório desta data seja
substituído por um significado edulcorante e conveniente ao sistema
capitalista. O capitalismo não age sobre os movimentos emancipatórios
unicamente com a intenção de eliminá-los: pretende sempre incorporá-los,
esvaziá-los de significado e potência revolucionária para
transformá-los em produto.
De uma
perspectiva histórica, fica evidente o sequestro de significado e o
apagamento ostensivo da história do Dia Internacional das Mulheres. Um
dia que, nas palavras de Alexandra Kollontai, deveria ser de
“consciência política e de solidariedade internacional” (KOLLONTAI,
1982) vem se tornando uma data comercial em que o mercado ‘celebra’ estereótipos de gênero que determinaram e limitaram a vida das mulheres.
É preciso
escavar os escombros que parecem se fechar sobre a história das mulheres
que lutaram pelo dia 8 de março, impedir tentativas de apagamento de
seus rastros e de seus nomes. Retomar o significado político da história
do Dia Internacional das Mulheres é uma importante ferramenta contra as
fogueiras materiais e simbólicas que continuam acesas.
Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review
(2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na
categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles
Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda,
Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio
Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do
coletivo feminista Jandira (2014). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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