quinta-feira, 3 de maio de 2012

Debate, dissenso, ética - um caso corriqueiro do que circula sobre língua e linguagem

Um blog

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Um passarinho me contou que o Prof. Sacconi mantém um blog. Juro que não sabia. Na verdade, devo dizer que, junto com a preciosa informação, vinha um trecho de uma mensagem de um discípulo que citava trecho que uma diatribe do referido professor contra mim. Quer dizer, acho que era contra mim, embora meu nome não fosse citado. No final ele se dirige a um tal de Sr. Libanês. Como meu nome é "Sírio"...

Dei uma espiada no blog no final de semana. A cada dia, o professor posta um pequeno texto. Em geral, trata-se de correções de erros catados na imprensa (talvez alguns sejam respostas a consultas de leitores - tem gente pra tudo): regências, ortografia, concordância, adequação de emprego de artigo etc. Em geral, ele se diverte um pouco, rindo dos que erram. Típico.
Sua bronca foi publicada há dez ou quinze dias, foi postada de novo ontem e reproduzida hoje (quarta feira, 9/4/2008) "para que fique sempre atual", diz ele. O elegante e culto prof. Sacconi escreveu (mantenho a caixa alta):

ESPÍRITO DE PORCO EXISTE EM TODO LUGAR. MAS NUNCA É DE ESPERAR QUE SE ENCONTRE UM ESPÍRITO DE PORCO NUMA UNIVERSIDADE. E NUMA UNIVERSIDADE TÃO CONCEITUADA!!! CONCLUSÃO: ESPÍRITO DE PORCO EXISTE MESMO EM TODO LUGAR.

Fiquei impressionado com sua análise. Original, sobretudo.

Quase ao final, acrescenta: "Faltar à ética é que é fascismo, seus boçais! Os dois escreveram apenas dois opúsculos, um chamado Por que (não) ensinar gramática nas escolas, um lixo" (o título está errado: é "na escola"). "Seus boçais", no plural, se deve ao fato de que ele se vale de uma resenha crítica que Artur Virmond de Lacerda Neto escreveu contra o livro Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno. Se, pelo menos, a resenha fosse dele...

Em alguma parte do texto, defendendo sua exposição errada do conceito de fonema, alega a necessidade de ser didático. Afinal, sua gramática (de muito sucesso, segundo ele; deve saber do que fala, o barulhinho das moedas deve ser inconfundível) se dirige a alunos iniciantes e não aos de final de curso universitário.

Pelo menos, reconhece que o conceito exposto pode não estar correto, está lá apenas como efeito de seu didatismo (segundo ele, uma qualidade inata). Acho que discordo dele: para ser didático, deveria mostrar que é capaz de "passar" o conceito correto a seus leitores. Assumir que, para simplificar, ou ser compreendido, é lícito ensinar errado, é um grave problema ético (e profissional). Não sei se livros de biologia, para serem didáticos, expõem conceitos como o de célula erradamente. Espero que não. O MEC tem estado relativamente atento a erros conceituais, exceto no que se refere aos livros de português, pelo que tenho visto...

Mas o que eu queria mesmo saber é o que Sacconi considera ético. Uma hipótese: que um "colega" não critique outro. A Terra Magazine fornece um endereço para que os leitores possam falar com os colunistas. Houve quem me escrevesse perguntando por que os "gramáticos" não entram num acordo ou, alternativamente, por que brigam, discutem etc.

A partir de manifestações como estas, acho que posso compreender o que ele entende por ética: não ser discutido por "colegas". Seria ético, digamos, médicos e advogados não se pronunciarem sobre a conduta dos colegas: por uma questão de ética. Pois eu discordo: acho que ser ético obriga exatamente a discutir, a manifestar a discordância quando ela existe. O que fiz em relação a aspectos do trabalho de Sacconi publicado na ISTO É e em dois de seus livros foi ora elogiar suas posições, ora atacar suas análises.

Não consigo ver falta de ética nessa posição (ele pede conchavo, não ética). Essa atitude deveria ser normal: o debate intelectual é uma norma. Nos congressos e nas revistas científicas, é fácil ouvir ou ler lingüistas discordando de lingüistas (menos do que seria desejável, eu acho). Sociólogos e economistas "batem boca" saudavelmente pelos jornais (para os leitores é ótimo, porque não ficam expostos ao pensamento único). Num jornal que li hoje, por exemplo, o economista Delfim Neto desanca os economistas do Banco Central pelo que escreveram na ata do Copom. O país assiste a um debate claro e franco - às vezes um pouco mal educado, mas isso é parte do debate - sobre pesquisas com células-tronco. E não é que estejam os geneticistas de um lado e os padres de outro. Há também divisões entre geneticistas e entre religiosos. É ótimo, é saudável, e é absolutamente ético.

Quando a análise de um autor é atacada, a atitude normal seria que ele a defenda ou que reconheça que errou. Fácil, simples.

O que é que há de fascista na minha crítica? E por que, para me atacar, ataca-se - escorado em outro - o livro de um outro (que escreveu vários diga-se, e em vários campos)? Isso sim é difícil de entender... Até me pergunto de que adianta saber se a grafia é muçarela ou mussarela ou se seria melhor manter mozzarela, se, na hora de escrever sobre o queijo se escreve sobre tripa de porco.
Sobre meu opúsculo "Por que (não) ensinar gramática na escola": é claro que não adianta esperar que o prof. Sacconi o leia. Mas, se o lesse, veria que não é (não sou) contra o ensino de gramática na escola. Ele deve saber o que podem significar parênteses.

A rigor, quem é contra a gramática e seu ensino é ele: por que não é assim, com receitas e erros didáticos que ela será "dominada". Também não é verdade que só publiquei esse livro. Mas isso não é relevante, a não ser para mostrar que o prof. Sacconi pode não saber do que está falando.
Por alguma razão, Sacconi acha que tenho inveja de seu sucesso. Escreveu lá no blog dele que "Um sucesso incomoda muita gente; dois sucessos incomodam muita gente; três sucessos incomodam muita gente; muitos sucessos incomodam muito mais...". Mas por que eu teria inveja dele? Me dê uma razão, uma só!
***

No dia 18 deste mês, vou a Manaus, a convite da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas, para fazer uma conferência sobre o "A língua na imprensa: um caso de mentalidade pré-copernicana". Talvez mencione o professor...

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.

3 comentários:

  1. e eu ri! iauhsiduhasd "um tal de Sr. Libanês" foi o melhor!

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  2. É de rir pra não chorar, né? Afinal, a desqualificação do outro é um jeito horrível de fugir do debate, de enfrentar posições contrárias. Melhor seria ignorar: não debate porque não considera, uai.

    Em todo caso, a velha questão do que se ensina sobre língua fica bem clara aí: está pra lá de técnica e política, é ideológica, inescapavelmente histórica, social, humana.

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  3. Bravo! Cada vez que convenço mais que tudo é uma questão de circulação. Esse discurso de ensino da gramática na escola só tem esse poder porque durante muito, mas muuuuito tempo esse circulou nos mais diferentes contextos da sociedade, criando quase que uma aura sagrada sobre. Cabe a nós, linguistas, fazer com que nosso ponto de vista sobre a questão ganhe força, e possa alterar assim esse panorama, quase que tragicômico.

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