Somos todos mídia
Bia Martins, do blog Autoria em Rede
Vivemos em uma época singular, na qual práticas e conceitos usuais
vêm sendo desestabilizados por uma lógica que substitui o lugar
anteriormente centralizado e restrito de produção de valor por um
processo aberto e distribuído em rede, abalando profundamente as
estruturas das instituições tradicionais.
Nas últimas semanas, assistimos essa mudança chegar com força total
na esfera da imprensa aqui no Brasil, colocando em xeque sua
credibilidade e, naturalmente, forçando-a a responder às novas
dinâmicas. Um acontecimento, especialmente, marcou essa transformação: a
prisão do estudante Bruno Telles no protesto em frente ao Palácio
Guanabara, sede do governo do Estado do Rio de Janeiro, no dia 22 de
julho. Negro, morador da Baixada Fluminense, Bruno foi acusado pela
Polícia Militar de ter lançado um coquetel molotov na manifestação, além
de supostamente carregar mais explosivos em sua mochila.
Logo em seguida, pelas redes sociais, começou a circular um vídeo que
mostrava Bruno totalmente fora da área de onde teria sido lançado o
coquetel. Mais ainda: ficava evidente que ele não portava nenhuma
mochila na ocasião. Para completar, também ficava clara a ação de
policiais infiltrados, os P2, levantando a suspeita de que eles é que
teriam iniciado os ataques naquele dia.
Assista ao vídeo que mostra Bruno à frente da manifestação e longe do
local de onde é lançado o explosivo. Repare o grande número de pessoas
filmando e fotografando o protesto.
A repercussão foi tamanha que o vídeo acabou sendo exibido pelo
Jornal Nacional e, o mais importante, toda a narrativa que havia sido
divulgada sobre aquela manifestação – creditando aos manifestantes o
começo do tumulto – teve que ser reconstruída. E Bruno, que por sua
condição social teria sido facilmente criminalizado com provas forjadas,
foi inocentado e saiu como herói.
A cobertura direta das mobilizações vem sendo feita por diversas
pessoas e coletivos, que participam dos protestos ao mesmo tempo em que
fazem o registro em streaming – filmando e transmitindo em tempo real.
Isto muda tudo: a polícia não pode mais agir impunemente ou impedir o
registro. São muitos filmando e muitos mais ainda assistindo
simultaneamente em seus computadores, como testemunhas dos
acontecimentos.
Além disso, essas transmissões resultam em adesão significativa às
mobilizações, fazendo que se transformem em acontecimentos públicos de
maior dimensão. Protestos como #ocupacabral e #ocupacamara, que
acontecem atualmente na cidade do Rio de Janeiro, ganham maior
repercussão na medida em que podem ser acompanhados e apoiados por
centenas de pessoas ao vivo. Sem essa cobertura e com a omissão da
grande imprensa, teriam certamente muito menos força.
Existem vários grupos trabalhando no streaming dos protestos, como o
Olho da Rua, Vidblog Vidigal e Mídia Ninja. Este último é o mais
conhecido, por agregar maior audiência e ter conseguido formar uma
grande rede de coberturas por todo país e, por isso mesmo, ter também
grande penetração nas redes sociais. Vale conferir este site que agrega vários desses coletivos em todo o Brasil.
O fortalecimento desse jornalismo de multidão, exercido pelos
cidadãos não necessariamente formados ou em formação nas faculdades de
jornalismo ou nas redações, tem causado grande desconforto na grande
imprensa. São inúmeros os artigos tentando reforçar o papel do
jornalista profissional como mediador autorizado e, ao mesmo tempo,
desqualificar aquilo que é produzido fora de seu circuito.
Certamente, este não é o melhor caminho para que a imprensa garanta o
seu lugar no espaço público de debate. É preciso reconhecer que a
circulação de notícias e opiniões mudou radicalmente e para sempre. Hoje
todos somos mídia. Com nossos smartphones podemos registrar os
acontecimentos e transmiti-los em tempo real, contribuindo com a
construção da opinião pública de forma muito mais plural e
diversificada.
A imprensa tradicional, a meu ver, não vai deixar de existir. Sua
relevância certamente vai depender de como vai atuar no novo ambiente
midiático. Deixará de ter um lugar tão central, como antes, para dividir
espaço com a multidão de cidadãos que também participarão da produção
de relatos e avaliações sobre os acontecimentos. Sua credibilidade será
colocada em xeque a todo momento, por isso mesmo terá que considerá-la
muito seriamente pois seus deslizes terão muito mais visibilidade.
Como se vê, vivemos tempos novos e promissores, pois a concorrência
da mídia cidadã distribuída contribui, e muito, para o aprimoramento da
qualidade de nossa esfera pública.
Um adendo: a cobertura distribuída não começou agora. A reunião da
OMC em Seattle, em 1999, marcou o início do jornalismo ativista em rede.
Para conhecer mais, a referência é o excelente artigo do professor
Henrique Antoun – Jornalismo e ativismo na hipermídia: em que se pode reconhecer a nova mídia.
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