08/10/2015 - Copyleft
Boletim Carta Maior
*Rita Almeida
O desejo como antídoto para o querer na sociedade de consumo
Há quem pense que querer e desejar sejam a mesma coisa. Não são, e utilizar a tesoura do desejo seria a verdadeira revolução.
Há quem pense que querer e desejar sejam a mesma coisa. Não são! Ao menos, não para a psicanálise.
O querer é uma enorme prateleira, o desejo uma tesoura. A operação matemática do querer é a soma e do desejo a divisão, nunca exata, sempre com resto. O querer é cumulativo, já o desejo, envolve escolha e perda.
A operação que rege e sustenta o sistema capitalista e, portanto, domina a forma de estarmos no mundo hoje em dia é o querer. Ao capitalismo interessa o acumulo de coisas; prateleiras cheias para vender, prateleiras cheias para comprar. Queremos mais um livro, mais um perfume e mais um sapato, não importa quantos já temos. Queremos mais uma especialização, mais uma viagem e mais 20 canais de TV, não importa que sentido tenham feito em nossa vida. Queremos mais um carro, mais um imóvel e mais bens, não importa o que isso represente para a coletividade humana e a sustentabilidade do nosso planeta.
Jacques Lacan ao construir sua teoria dos discursos faz menção ao que ele chama de Discurso Capitalista, que seria uma mutação pervertida do Discurso do Mestre. Enquanto o Discurso do Mestre se baseia na relação do senhor e do escravo – resgatado da dialética hegeliana – o Discurso Capitalista se dá pelo eclipse da relação entre os sujeitos. Em tal discurso, o sujeito não se relaciona com um outro, se relaciona apenas com os objetos–mercadoria. Tudo vira objeto a ser consumido, até mesmo os próprios sujeitos.
O agente do Discurso Capitalista é o consumidor, seu interesse é pelo consumo. Como diria Viviane Forrester, na sociedade atual consumir é nosso último recurso, nossa última utilidade. Somos clientes necessários à sustentação do modelo capitalista.
Mas consumidor é aquele sujeito que está sempre aquém, sempre em déficit, pois sempre haverá uma bugiganga, uma tecnologia, um bem, um saber e um modelo mais novo que ele ainda não conseguiu adquirir, portanto, o verbo que ele conjuga é o querer. Entretanto, o engano do consumidor não é se considerar incompleto, já que a incompletude é uma realidade irremediável para todos nós, mas sim acreditar que irá alcançar a completude por meio da aquisição de coisas; das coisas que ainda não tem.
Nesse sentido, o querer é uma armadilha, pois por mais que o sujeito adquira coisas estará sempre se sentindo em falta, e ao invés de aceitá-la, seu movimento é continuar a buscar no consumo, coisas que criem uma falsa sensação de completude. O querer é sempre mais, sempre sem limites. O querer funciona como negação da castração. No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.
Mas, e o desejo?
A psicanálise se sustenta sobre a ética do desejo. Ao contrário do querer, em que o sujeito quer tudo até que sua prateleira fique completa, o desejo implica em escolhas, portanto, em perdas. O desejo é uma tesoura, sendo assim desejar implica em fazer opções. Ou isso Ou aquilo, diria Cecília Meireles.
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
O desejo seria, portanto, um antídoto para intervir numa sociedade baseada no querer consumista. Desejar implica no sujeito admitir sua própria divisão, aceitar sua incapacidade de ter tudo. Desejar não é produzir um acúmulo de coisas, mas sim, definir o que é mais fundamental e importante. Desejar é cortar o excesso, é aceitar a perda de gozo, é escapar da mera sobreposição de bugigangas a fim de produzir singularidade e estilo.
Num mundo onde o imperativo categórico é que abarrotemos nossas prateleiras e que queiramos tudo, todo o tempo, utilizar a tesoura do desejo seria a verdadeira revolução.
* psicóloga, psicanalista, trabalhadora da Rede de Saúde Mental do SUS, blogueira, doutoranda em Educação pela UFJF
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