Ricardo Pazello: desde Curitiba, um relato em praça de guerra
Da Assessoria Jurídica Popular
quinta-feira, 30 de abril de 2015
Relato em praça de guerra
Duas e quarenta e cinco. O povo estava na rua, era o soberano – ao menos, assim parecia – do centro político do estado do Paraná, a praça Nossa Senhora de Salete. Sempre que trabalhadores, empunhando seus estandartes, tomam este espaço público, é sinal de que a vitalidade da organização popular não se perdeu e é definitivamente importante parar para ouvir o que reivindicam.Em solidariedade à classe trabalhadora, lá estávamos minha companheira e eu, assim como tantas outras pessoas que se irmanaram pelo mesmo sentimento.
Vozes, rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras de todos os matizes embonitavam a praça. O Centro Cívico parecia honrar seu próprio nome, superando inclusive o peso conservador que toda menção ao civismo costuma aportar. A beleza do momento não apagava, porém, a tensão instaurada.
Cada entidade sindical, cada movimento social, cada coletivo político, cada grupo estudantil, cada organização popular trazia suas palavras de ordem marcadas por críticas ao governador do Paraná e sua proposta de austeridade previdenciária, aos deputados estaduais que aceitavam votar e aprovar um projeto de lei para desmantelar a previdência social do estado, ao chefe da segurança pública que defendia cegamente a ardilosa estratégia político-militar de seu comandante-geral e aos milhares de policiais que, como jagunços, guardavam o prédio da assim chamada “Casa do Povo”. O conteúdo de todas as conversas não era diferente.
Lembro-me bem de ter visto a marcha de um movimento por moradia que se despedia da concentração dos professores. Estávamos chegando à praça e, enquanto íamos cumprimentando vários amigos e companheiros de organização popular em frente ao portão de entrada da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP), ao fundo, víamos a polícia se perfilando, em especial o batalhão de choque, como se uma guerra fosse iminente.
A movimentação militaresca era imponente e em um dado momento começou a causar espécie. Por que aquelas personagens fardadas, com roupas camufladas, de capacetes e armamento vistoso se movimentavam tanto?
Entre os manifestantes, a polvorosa também iniciou. A batucada e suas marchas-lutas davam passagem a uma pequena teatralização em que cerca de vinte pessoas vestidas de preto e com fitas coladas nos lábios arrancavam olhares de cumplicidade e, por vezes, lágrimas dos presentes. Do caminhão de som, eram emitidas informações e orientações.
Às duas e quarenta e cinco foi anunciado que a sessão do legislativo iniciaria normalmente. Isto queria dizer que todas as tentativas de dissuadir os idólatras do governador foram frustradas. Ato contínuo, o som do caminhão aumentou seu volume e todas as vozes individuais e coletivas falaram mais alto: “Retira, retira, retira”! (secundariamente, uma disputa entre o caminhão e o chão: “retira ou rejeita!” versus“retira ou ocupa!”).
Bomba e fumaça. Era tudo o que os sentidos podiam captar. Não me lembro exatamente, mas de repente, já estava de costas para a Assembléia (e para os policiais), andando apressadamente, na direção oposta à da Casa do Povo. Em poucos segundos, as pessoas com as quais conversava desapareceram. À minha frente, apenas costas em correria, pontas de bandeiras e um cenário embaçado.
Ainda tive presença de espírito – de não muita valia para o momento – e comecei a gritar: “devagar, calma, vamos andar mais devagar!”.
Isto porque o empurra-empurra já havia começado. Eu já levara alguns encontrões e muitas pessoas gritavam e choravam. Cair e ser pisoteado seria muito pior. Até consegui criar uma pequena zona de influência mas logo a realidade veio com argumento mais forte: “Olha a bomba”, me disse alguém.
Eu vi a fumaça específica da bomba, mas continuei caminhando normalmente, para dar o “exemplo” aos primeiros conhecidos que encontrei pelo caminho. Já estava, porém, atrás do Palácio das Araucárias. No fosso do palácio, alguns mais afoitos se lançavam para terem uma folga do gás lacrimogêneo. Olhei para trás e uma senhora, provavelmente uma professora, chorava muito, combinação de tristeza e gás.
Tentei oferecer um copo de água mineral que apanhei pelo caminho. Ela, de olhos fechados, não me viu e eu tentei falar, mas o gás foi meu algoz e agora quem chorava era eu. Despreparado, me escondi em minha própria camiseta e continuei andando até atravessar a rua e chegar a um lugar seguro.
Um estudante repentinamente me ofereceu pano embebido em vinagre – “Professor, quer vinagre?”, aceitei para aliviar minha constrição mas logo percebi que quem precisava era ele mesmo. Devolvi. Solidariedade.
A partir daí, a preocupação foi reencontrar os meus. Depois de algumas tentativas, consegui contato telefônico com minha companheira, a salvo desde o começo, melhor posicionada que estava por ter gravado algumas entrevistas mais afastadas do local do confronto, momentos antes da confusão.
De minha parte, já estava restabelecido, apesar de os olhos arderem e o ar não circular normalmente, mas tinha certeza de que muita gente poderia estar passando por momentos de dificuldades (as pessoas mais velhas ou as muito mais novas que eu tinha visto, para não falar em portadores de necessidades ou ainda nos bravos militantes que assumiam a ponta do enfrentamento com a polícia – até agora não me saem da cabeça aquelas quatro ou cinco bandeiras que não pararam de tremular na frente da manifestação mesmo nos momentos de maior ataque da tropa de choque).
Logo encontrei jovens advogados populares, ex-alunos, que me informavam das prisões de alguns manifestantes. Em tempos de guerra, sempre há os bodes expiatórios para legitimar o ilegitimável. Depois, informações extraoficiais chegaram e já se fala na prisão de pelo menos uma dezena de pessoas. Acusação: “black blocs”, seja lá o que isso signifique…
Ao contornar a praça e voltar para a rua que dá acesso à entrada principal da ALEP encontrei um antigo professor do ensino médio. Rapidamente, me veio à memória uma foto que vi nas redes sociais no dia anterior e que me revelava a presença de três dos meus professores nas manifestações que haviam iniciado segunda e terça. Viria ainda a encontrar outros dois.
Uma verdadeira seleção de educadores, na luta por seus direitos. Troquei breves palavras de indignação com o mestre, joguei água no rosto e me dirigi para onde a concentração de pessoas tinha se deslocado – a rotatória com o tigre esculpido por João Turin, ao lado da prefeitura.
Nunca me pareceu tão grande aquela rotatória. Depois de algumas voltas por ela, começo a reencontrar as pessoas que se perderam. Estudantes, professores, lideranças sindicais, de movimentos populares e partidos políticos, além de trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas áreas, a esta altura convocados para estarem presentes no exato momento em que a história vai se fazendo.
Todos assistindo aflitos ao avanço do tanque de guerra em direção à população, às bombas lançadas não se sabe de onde (para muitos, dos helicópteros policiais que sobrevoavam a praça ou do alto dos prédios de onde se avistavam homens fardados mas também à paisana), às vias de acesso trancadas com velhos ônibus que trouxeram a soldadesca, ao corre-corre de voluntários carregando feridos na batalha e à ambulância presa no engarrafamento de manifestantes e policiais.
À margem de tudo mas no meio da confusa situação, muitos policiais militares, meio atônitos, meio atentos, torcendo para ninguém hostilizá-los nem atear fogo em suas já ultrapassadas viaturas.
Quatro e dez. Durante quase uma hora e quinze minutos, o barulho das bombas explodindo não parava de cessar. Eu estava com uma reunião marcada para as quatro horas, mas não tinha coragem de deixar o campo de batalha. Comuniquei-me para adiar a reunião e continuei por ali.
Agora, o caminhão de som estava em frente ao prédio da prefeitura que, a esta altura, já se tornara refúgio e enfermaria de feridos e atribulados pelo gás. No mesmo local, uma ambulância estacionada servia de posto de saúde de pronto atendimento. Os discursos ecoavam pelo Centro Cívico mas, continuamente, as direções sindicais apresentavam sinais de receio com as circunstâncias. Pediam
que os policiais e os manifestantes recuassem.
Ninguém obedecia. Os policiais, porque têm seu chefe em outro patamar – no da sandice da disciplina militar (aliás, os que se rebelaram, recusando-se a seguir ordens insanas foram presos); os manifestantes, porque não se conformavam com a situação e a cada pedido de recuo do caminhão de som, mãos, bandeiras e vozes acenavam em contrariedade, pedindo para ninguém esmorecer (de longe, era contínuo o tremular de quatro ou cinco bandeiras na linha de frente…).
Avancei com o avanço da maioria. Já estava em frente ao Tribunal de Justiça. Encontrei-me com alguns professores da universidade, estudantes, advogados e sindicalistas. Por entre as flâmulas, o avanço do tanque do batalhão de choque. Alguns olhares preocupados, bombas lançadas cada vez mais próximas. Até que a ponta de uma bala de borracha me acertou em cheio no peito. Minha sorte – e a de tantos que estavam a meu lado – é que eu acabei sendo um alvo bastante distante.
O projétil sequer chegou a machucar, mas que assustou, assustou. Quando fui atingido, percebi que era colorido. Comentei que algo colorido bateu em mim e, segundos após, me entregavam um objeto
amarelo, todo chamuscado, que compreensivelmente guardei como condecoração de guerra. Depois, fiquei sabendo que a mesma bala, pelo trajeto que fez, quase acertou o rosto de um amigo. Na seqüência, tivemos de recuar ainda mais, as bombas de efeito moral (ou melhor, imoral) não nos deixavam em paz.
Ainda houve tempo para algum falatório de autoridades no caminhão de som. Momento apoteótico foi quando um senador da república entrou no meio da concentração com seu carro importado. Os manifestantes correram em direção ao automóvel como que prontos a destruí-lo. Mas ligeiramente desceu o político que foi ovacionado pela maioria dos presentes.
Principal adversário político do governador, o senador caminhou alguns metros, com alguma dificuldade, já que apupado e abordado pelos eleitores, e subiu no caminhão. Seu discurso, eloqüente como de costume, arrancou alguns aplausos e muitas risadas, porque em nada poupou o governador eleito, apelidado de “piá de prédio” e outras coisas mais.
Enquanto todos esses eventos se desenrolavam, incrivelmente a ALEP colocava em votação o projeto de lei que gerou toda a mobilização de professores e funcionários públicos estaduais. A proposta feita pelo governador e apoiada por sua bancada retirava direitos previdenciários de todos, professores, policiais, batalhão de choque, até mesmo deputados e o próprio governador. A noite começava a cair e junto dela uma fina chuva de fim de festa. A dispersão parecia inevitável.
Todo o estresse expulsara a maioria das pessoas para suas casas. Até quando fiquei na praça do Centro Cívico, não pude ter notícia do que se debatia entre os deputados. Cheguei em casa, por volta das seis horas da tarde. Mais ou menos neste mesmo horário, 31 votos a 20 aprovaram a lei contra a qual todas as vozes, rostos, cores, ideologias, coletivos e bandeiras se puseram durante estes três últimos dias, bem como há coisa de dois meses, quando os professores do Paraná ocuparam a Assembléia Legislativa e conseguiram adiar a votação do pacote de medidas de austeridade que incluía o confisco da previdência pública estadual.
Os dias 12 de fevereiro (dia da ocupação da ALEP) e 29 de abril (dia da batalha pela previdência) de 2015 já ficaram marcados na história das lutas populares do Paraná.
Relembram os momentos heróicos do povo paranaense dos últimos trinta anos que também se deram na praça Nossa Senhora de Salete, como o famoso 30 de agosto de 1988, em que o governador de plantão (aliás, do mesmo partido do atual) mandou a cavalaria contra os também professores em greve; como o truculento 27 de novembro de 1999, quando o governador do turno fez uma violenta ação de despejo de oitocentos sem-terra acampados na mesma praça para reivindicarem visibilidade, fim dos assassinatos de seus militantes e, sobretudo, reforma agrária; e como a memorável semana de 14 a 20 de agosto de 2001, em que a Companhia Paranaense de Energia – COPEL foi privatizada por um voto do legislativo estadual, mas com a praça apinhada de pessoas se opondo à ação criminosa da elite paranaense, a ponto de obter tamanha repercussão que a venda foi suspensa.
Em agosto de 2001, quando era estudante secundarista, eu estive na praça do povo engrossando a campanha “A COPEL é nossa”. Agora, em abril de 2015, reencontrei um colega de escola e daquelas jornadas. Ele me disse: “nós tínhamos de nos reencontrar aqui”.
Esta é a lição que nós aprendemos naquele tempo; esta é a lição dos professores ainda hoje. Todo apoio à luta dos trabalhadores do estado do Paraná, ontem, hoje e sempre!
*Professor do curso de direito da Universidade Federal do Paraná.
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