Nota do Boletim Carta Maior em 01/09/2013
texto completo no Blog da Frases, por Saul Leblon
GLOBO: O ODOR DA SATURAÇÃO
Não
se sabe ainda se há relação de causalidade entre uma coisa e outra. O
fato é que manifestantes do Levante Popular guarneceram a sede da Globo
em SP, neste sábado, com fezes.Uma retribuição, em espécie, disseram os
integrantes do protesto, ao conteúdo despejado diuturnamente pela
emissora nos corações e mentes da cidadania brasileira. No mesmo dia,
com intervalo de horas, uma nota postada no site do jornal O Globo,
manifestava o arrependimento da corporação pelo editorial de 2 de abril
de 1964, de apoio ao golpe que derrubou Jango e instalou uma ditadura
militar no país. Se a matéria-prima do protesto motivou a purgação é
imponderável. Mas por certo a recíproca é verdadeira. O fecalismo
voador de que foi alvo o edifício-sede das Organizações Globo na capital
paulista é decorrência do apoio coeso, contínuo e, não
raro,beligerante, que o maior grupo de mídia do país tem dispensado ao
conservadorismo. Armado ou não. A nota deste sábado é histórica. Mais
pela evidencia da mudança na correlação de forças que obriga a emissora
a se desfazer de um legado incomodo, do que pelo arrependimento que
simula. No fundo, apenas lamenta ter sido tão desabrida, como se não
houvesse amanhã. O amanhã chegou. O editorial de 1964 não expõe apenas
um ponto de vista episódico. Ele consagra um método. Que a experiência
recente não pode dizer que caiu em desuso. Mas que vive um ponto de
saturação. Ilustra-o a necessidade de mostrar arrependimento. Bem como o
sugestivo odor exalado da sede da empresa em São Paulo, neste sábado.
Leia a seguir a nota da Globo de 30/08/2013 e o editorial de 02/04/1964
Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro
A
consciência não é de hoje, vem de discussões internas de anos, em que
as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio se
constituiu um equívoco.
Desde as manifestações de junho, um coro
voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato,
trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há
alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que
ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação
interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para
ser publicado quando o site ficasse pronto.
Não lamentamos que
essa publicação não tenha vindo antes da onda de manifestações, como
teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a
avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento
do erro, necessário.
Governos e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas.
De
nossa parte, é o que fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e
perene apego aos valores democráticos, ao reproduzir nesta página a
íntegra do texto sobre o tema que está no Memória, a partir de hoje no
ar:
1964
“Diante de qualquer reportagem ou editorial que
lhes desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados
lembrem que O GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964.
A
lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como
refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a
intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O
Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Correio
da Manhã”, para citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da
população, um apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em
Rio, São Paulo e outras capitais.
Naqueles instantes,
justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a
ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de
sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república
sindical” — e de alguns segmentos das Forças Armadas.
Na noite de
31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO foi invadido por fuzileiros
navais comandados pelo Almirante Cândido Aragão, do “dispositivo
militar” de Jango, como se dizia na época. O jornal não pôde circular em
1º de abril. Sairia no dia seguinte, 2, quinta-feira, com o editorial
impedido de ser impresso pelo almirante, “A decisão da Pátria”. Na
primeira página, um novo editorial: “Ressurge a Democracia”.
A
divisão ideológica do mundo na Guerra Fria, entre Leste e Oeste,
comunistas e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor medida, em
cada país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela radicalização
de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por
meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para
que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros.
Obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Transferir parcela
substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição
exigida pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do
trabalhismo varguista. Naquele tempo, votava-se no vice-presidente
separadamente. Daí o resultado de uma combinação ideológica
contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da UDN e o
vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o rastilho da crise
institucional.
A situação política da época se radicalizou,
principalmente quando Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam
atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou
na marra”. Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à
esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado
por marinheiros — Cabo Ancelmo à frente —, a hierarquia militar começou a
ser quebrada e o oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe,
chamado de “Revolução”, termo adotado pelo GLOBO durante muito tempo,
era visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma
democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira,
cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção,
ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos
civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num primeiro momento,
as eleições presidenciais de 1966.
O desenrolar da “revolução” é
conhecido. Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos,
até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente
Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de
receber a faixa.
No ano em que o movimento dos militares
completou duas décadas, em 1984, Roberto Marinho publicou editorial
assinado na primeira página. Trata-se de um documento revelador. Nele,
ressaltava a atitude de Geisel, em 13 de outubro de 1978, que extinguiu
todos os atos institucionais, o principal deles o AI5, restabeleceu o
habeas corpus e a independência da magistratura e revogou o Decreto-Lei
477, base das intervenções do regime no meio universitário.
Destacava
também os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos, mas, ao
justificar sua adesão aos militares em 1964, deixava clara a sua crença
de que a intervenção fora imprescindível para a manutenção da democracia
e, depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana. E, ainda,
revelava que a relação de apoio editorial ao regime, embora duradoura,
não fora todo o tempo tranquila. Nas palavras dele: “Temos permanecido
fiéis aos seus objetivos [da revolução], embora conflitando em várias
oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo
revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram,
como reconheceu o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do
povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um
‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual não estaríamos solidários.”
Não
eram palavras vazias. Em todas as encruzilhadas institucionais por que
passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto
Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma
constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o
Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse
de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por
setores civis e militares.
Durante a ditadura de 1964, sempre se
posicionou com firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda:
como é notório, fez questão de abrigar muitos deles na redação do GLOBO.
São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia
questão de acompanhar funcionários de O GLOBO chamados a depor:
acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado
algumas vezes a dar a lista dos “comunistas” que trabalhavam no jornal,
sempre se negou, de maneira desafiadora.
Ficou famosa a sua frase
ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do presidente Castello
Branco: “Cuide de seus comunistas, que eu cuido dos meus”. Nos vinte
anos durante os quais a ditadura perdurou, O GLOBO, nos períodos agudos
de crise, mesmo sem retirar o apoio aos militares, sempre cobrou deles o
restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade democrática.
Contextos
históricos são necessários na análise do posicionamento de pessoas e
instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A História não é
apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns aos outros. Ela é o
mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com
segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se
enriquece ao reconhecê-los.
Os homens e as instituições que
viveram 1964 são, há muito, História, e devem ser entendidos nessa
perspectiva. O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos
que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando
ao bem do país.
À luz da História, contudo, não há por que não
reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como
equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram
desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em
risco, ela só pode ser salva por si mesma.”
(editorial de “O Globo” do dia 02 de abril de 1964)
“Ressurge a Democracia”
“Vive
a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas,
independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre
problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e
a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que
obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam
destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo
irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua
vocação e tradições.
Como dizíamos, no editorial de anteontem, a
legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos
agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria
legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo,
diante da Nação horrorizada.
Agora, o Congresso dará o remédio
constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha
em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam
afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do
Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de
tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.
Poderemos,
desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que
todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não
mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Salvos da
comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer
aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos
felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo
constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes
constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante
missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o
Executivo.
As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna,
“são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS
LIMITES DA LEI.”
No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a
hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a
Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente,
o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como
as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das
corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada
no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da
democracia e da lei.
Atendendo aos anseios nacionais, de paz,
tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela
ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas
chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus
direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos
vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.Este não foi um
movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da
vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das
manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos,
os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que
animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava
em jogo.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a
gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla
acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da
Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação
popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios
constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.
Se
os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os
chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como
sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem
dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as
medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e
harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela
Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores
sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário