Haroldo Ceravolo Sereza
sexta-feira, 29 de maio de 2015
O que explica esse fenômeno? Como ele surgiu? Do que se alimenta?
Primeiro, não acho que seja um problema que adultos estejam usando lápis de cor. Desenhar e pintar são atividades lúdicas, e os adultos têm também o direito à diversão. Segundo, do ponto de vista intelectual, qual a diferença entre pintar em jogar baralho? Ou ver novela? Não há rebaixamento nenhum nessas atividades, e só o preconceito é que explica que se vire a cara para uma tendência dessa.
Não vejo nenhum processo de infantilização, a menos que alguém me prove que pintar é uma atividade controlada diretamente pelo sistema hormonal, ou seja, que “biologicamente” ficamos despreparados para usar o lápis depois que passamos a puberdade. Se alguém estiver a fim, aguardo o link de um revista científica.
Mas vamos pensar nas origens. Como surgiu o livro de pintar?
Lápis de cor da marca Caran d’Ache: uma indústria que realmente lucra com os livros
Ainda que não tenha feito nenhuma reportagem ou estudo específico sobre o tema, eu arriscaria a descrever o processo, baseado no relativo conhecimento de como funcionam as pesquisas e as corporações.
Minha primeira hipótese: o livro de colorir para adultos surgiu fora da indústria editorial. Ele tende a ser o resultado de alguma percepção genial de outra indústria, a de lápis de cor.
Novamente sem ter frequentado nenhum dado concreto, eu enumeraria os passos do nascimento do fenômeno:
1. A indústria de lápis de cor alcança uma sofisticação técnica que permite, a preços razoáveis, produzir diferentes tipos de lápis, em processos tão variados e sofisticados quanto o que já existia para os lápis grafites simples (em geral usamos o lápis preto número 2, mas há inúmeras outras possibilidades para quem desenha, com pontas mais macias, mais duras, mas grossas, mas finas – lembra das lapiseiras?).
2. A indústria do lápis de cor esbarra num mercado limitado: mães e pais não vão torrar o rico dinheirinho da família em produtos de ponta, uma vez que as crianças perdem os lápis com a mesma facilidade que esquecem os agasalhos nas escolas.
3. A indústria do lápis de cor encomenda uma pesquisa.
Imagem do blog “Mesinha de Cabeceira“: livros coloridos também vão parar na Internet
E o que diz essa pesquisa? Diz que já há um grupo de pessoas que usa a pintura com lápis de cor para se distrair, para desligar o celular, para não assistir novela, para não ter de aprender a tricotar. Diz ainda que essas pessoas se irritam com a baixa qualidade dos lápis que são vendidos às crianças e principalmente com a baixa variedade de cadernos de pintura.
“Pintar o Pato Donald, da revista de R$ 1,99 vendida na banca de jornal, é absolutamente irritante”, afirma um dos entrevistados numa suposta pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa ocorreu depois de uma pesquisa quantitativa com os adultos que compravam lápis de cor nas lojas especializadas. Esses entrevistados anteriormente já haviam afirmado, em sua maioria, que os lápis de colorir novos têm preços razoáveis, mas que é um tormento achar desenhos bacanas para pintar.
A pesquisa custou uma fortuna e identificou um gargalo: faltam imagens, papel e formatos adequados para expandirmos o nosso mercado. Mas qual a solução?
Achar alguém que produza imagens, papel e formatos adequados para que os pintores a lápis de cor tenham com que se divertir. Vem o segundo momento.
Numa reunião de uma grande empresa do setor, talvez até mesmo na associação dos produtores de lápis de cor, alguém propõe o seguinte encaminhamento:
1. Vamos procurar uma grande editora e propor uma edição de livros de colorir em quantidade suficiente para podermos acompanhar o processo com novas pesquisas.
2. Se essa editora não se convencer com os nossos dados, vamos financiar uma edição piloto.
Resultado:
1. A editora estuda o caso e pensa em algo especial: o livro de colorir não deve ser uma simples reprodução luxuosa da revista de colorir da banca de jornal. Tamanho da página, espessura, cor e textura do papel, orelha para marcar a última página pintada… Tudo isso tem de ser pensado para o máximo de conforto do pintor.
2. A indústria do lápis de cor gosta da proposta. E resolve pagar também um plano de marketing para essa editora-modelo, de modo que ela, além de espaço nas livrarias para seus livros, também leve alguns de seus novos produtos para lá.
Começa, então, uma nova fase.
1. O caso é testado num mercado local, numa cidade como Curitiba (PR). Como se sabe, Curitiba foi, por muitos anos, a cidade-teste de lançamento de novos produtos no país.
2. O case é um sucesso nessa hipotética Curitiba, e a indústria do lápis de cor e sua editora associada resolvem lançar o produto em escala nacional.
3. O sucesso se repete. Outras editoras percebem o sucesso e resolvem copiar o modelo, agora sem apoio da indústria do lápis de cor.
4. Chegamos à escala planetária, que inclui o Brasil. No Brasil, o sucesso é maior ainda – os livros, já fui conferir, são quase todos reproduzidos de editoras estrangeiras. Não diria traduzidos porque, afinal…
E por que isso não é um problema para as editoras de livros que não de colorir?
Livro Fantasia Celta, no blog Mais uma página
Ora, não é um problema porque o livro de colorir, por mais que venda, não está concorrendo diretamente com o livro de ler. O livro de colorir é um problema para o Google, para o Facebook, para o UOL, até para o Opera Mundi. Ele concorre com o mundo da imagem na internet. Ele concorre contra a ultraconexão.
A médio prazo, diria, ele até é um aliado da leitura, especialmente da leitura em livros de papel: porque ele tende a criar um espaço temporal de distância dos eletrônicos, do videogame (sim, adultos também já jogam videogame há algumas décadas), das redes sociais.
Colorir é um ato de introspecção. De relaxamento. De pensar imageticamente.
Colorir é atuar. Cria uma relação ativa entre o pintor amador e o livro. Há uma interação permanente, uma ligação quase afetiva.
Como disse, tudo isso é especulação.
Se não é verdade, pode virar um romance. Ou uma graphic novel.
O que explica o sucesso dos livros de colorir?
O que explica esse fenômeno? Como ele surgiu? Do que se alimenta?
Primeiro, não acho que seja um problema que adultos estejam usando lápis de cor. Desenhar e pintar são atividades lúdicas, e os adultos têm também o direito à diversão. Segundo, do ponto de vista intelectual, qual a diferença entre pintar em jogar baralho? Ou ver novela? Não há rebaixamento nenhum nessas atividades, e só o preconceito é que explica que se vire a cara para uma tendência dessa.
Não vejo nenhum processo de infantilização, a menos que alguém me prove que pintar é uma atividade controlada diretamente pelo sistema hormonal, ou seja, que “biologicamente” ficamos despreparados para usar o lápis depois que passamos a puberdade. Se alguém estiver a fim, aguardo o link de um revista científica.
Mas vamos pensar nas origens. Como surgiu o livro de pintar?
Lápis de cor da marca Caran d’Ache: uma indústria que realmente lucra com os livros
Ainda que não tenha feito nenhuma reportagem ou estudo específico sobre o tema, eu arriscaria a descrever o processo, baseado no relativo conhecimento de como funcionam as pesquisas e as corporações.
Minha primeira hipótese: o livro de colorir para adultos surgiu fora da indústria editorial. Ele tende a ser o resultado de alguma percepção genial de outra indústria, a de lápis de cor.
Novamente sem ter frequentado nenhum dado concreto, eu enumeraria os passos do nascimento do fenômeno:
1. A indústria de lápis de cor alcança uma sofisticação técnica que permite, a preços razoáveis, produzir diferentes tipos de lápis, em processos tão variados e sofisticados quanto o que já existia para os lápis grafites simples (em geral usamos o lápis preto número 2, mas há inúmeras outras possibilidades para quem desenha, com pontas mais macias, mais duras, mas grossas, mas finas – lembra das lapiseiras?).
2. A indústria do lápis de cor esbarra num mercado limitado: mães e pais não vão torrar o rico dinheirinho da família em produtos de ponta, uma vez que as crianças perdem os lápis com a mesma facilidade que esquecem os agasalhos nas escolas.
3. A indústria do lápis de cor encomenda uma pesquisa.
Imagem do blog “Mesinha de Cabeceira“: livros coloridos também vão parar na Internet
E o que diz essa pesquisa? Diz que já há um grupo de pessoas que usa a pintura com lápis de cor para se distrair, para desligar o celular, para não assistir novela, para não ter de aprender a tricotar. Diz ainda que essas pessoas se irritam com a baixa qualidade dos lápis que são vendidos às crianças e principalmente com a baixa variedade de cadernos de pintura.
“Pintar o Pato Donald, da revista de R$ 1,99 vendida na banca de jornal, é absolutamente irritante”, afirma um dos entrevistados numa suposta pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa ocorreu depois de uma pesquisa quantitativa com os adultos que compravam lápis de cor nas lojas especializadas. Esses entrevistados anteriormente já haviam afirmado, em sua maioria, que os lápis de colorir novos têm preços razoáveis, mas que é um tormento achar desenhos bacanas para pintar.
A pesquisa custou uma fortuna e identificou um gargalo: faltam imagens, papel e formatos adequados para expandirmos o nosso mercado. Mas qual a solução?
Achar alguém que produza imagens, papel e formatos adequados para que os pintores a lápis de cor tenham com que se divertir. Vem o segundo momento.
Numa reunião de uma grande empresa do setor, talvez até mesmo na associação dos produtores de lápis de cor, alguém propõe o seguinte encaminhamento:
1. Vamos procurar uma grande editora e propor uma edição de livros de colorir em quantidade suficiente para podermos acompanhar o processo com novas pesquisas.
2. Se essa editora não se convencer com os nossos dados, vamos financiar uma edição piloto.
Resultado:
1. A editora estuda o caso e pensa em algo especial: o livro de colorir não deve ser uma simples reprodução luxuosa da revista de colorir da banca de jornal. Tamanho da página, espessura, cor e textura do papel, orelha para marcar a última página pintada… Tudo isso tem de ser pensado para o máximo de conforto do pintor.
2. A indústria do lápis de cor gosta da proposta. E resolve pagar também um plano de marketing para essa editora-modelo, de modo que ela, além de espaço nas livrarias para seus livros, também leve alguns de seus novos produtos para lá.
Começa, então, uma nova fase.
1. O caso é testado num mercado local, numa cidade como Curitiba (PR). Como se sabe, Curitiba foi, por muitos anos, a cidade-teste de lançamento de novos produtos no país.
2. O case é um sucesso nessa hipotética Curitiba, e a indústria do lápis de cor e sua editora associada resolvem lançar o produto em escala nacional.
3. O sucesso se repete. Outras editoras percebem o sucesso e resolvem copiar o modelo, agora sem apoio da indústria do lápis de cor.
4. Chegamos à escala planetária, que inclui o Brasil. No Brasil, o sucesso é maior ainda – os livros, já fui conferir, são quase todos reproduzidos de editoras estrangeiras. Não diria traduzidos porque, afinal…
E por que isso não é um problema para as editoras de livros que não de colorir?
Livro Fantasia Celta, no blog Mais uma página
Ora, não é um problema porque o livro de colorir, por mais que venda, não está concorrendo diretamente com o livro de ler. O livro de colorir é um problema para o Google, para o Facebook, para o UOL, até para o Opera Mundi. Ele concorre com o mundo da imagem na internet. Ele concorre contra a ultraconexão.
A médio prazo, diria, ele até é um aliado da leitura, especialmente da leitura em livros de papel: porque ele tende a criar um espaço temporal de distância dos eletrônicos, do videogame (sim, adultos também já jogam videogame há algumas décadas), das redes sociais.
Colorir é um ato de introspecção. De relaxamento. De pensar imageticamente.
Colorir é atuar. Cria uma relação ativa entre o pintor amador e o livro. Há uma interação permanente, uma ligação quase afetiva.
Como disse, tudo isso é especulação.
Se não é verdade, pode virar um romance. Ou uma graphic novel.
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