Sugerimos um clip como epígrafe da reflexão a seguir
02/07/2015 às 15:08
As máquinas de vender intolerância e preconceito
Para compreender onda de fundamentalismo e crimes de ódio, que se espalha por países como EUA e Brasil, é indispensável examinar papel de certos programas de TV
O crescimento dos crimes de ódio é
um fenômeno global. Sustentada por preconceitos e por valores
fundamentalistas, temos observado uma onda de violência desmedida em
diversos lugares do planeta, exatamente no momento em que explodem os
meios de comunicação, o que, em tese, deveria garantir maior acesso à
informação.
O ataque a igrejas das comunidades negras nos Estados Unidos, o espancamento de casais homoafetivos nas metrópoles brasileiras
ou, simplesmente, de pessoas que se acredita serem homoafetivos (como
num caso recente onde pai e filho foram espancados por simples
manifestação de carinho), o incêndio criminoso de mesquitas na França, o
massacre diário de palestinos pelo governo de Israel, são apenas alguns exemplos de aberrações que vivenciamos todos os dias.
Pior do que isto, o simples ato de ser levantada opinião contrária à
dos ofensores ou dos grandes meios de comunicação também acaba
resultando em ameaças, perseguições e agressões. A internet, que deveria
ser o caminho da disseminação das informações transformadoras, tem sido
canal de propaganda da violência moral, da étnica, da sexual e da
simbólica.
Se durante o Iluminismo a luta por liberdade de imprensa e de opinião resultou
numa conquista sem precedentes para a humanidade, criando os alicerces
para a derrubada de impérios absolutistas, no mundo contemporâneo, na
maior parte das vezes, os meios de comunicação não oferecem suporte à
democratização da sociedade. Infelizmente, não são raros os exemplos nos
quais a mídia de massa funciona como elemento de fomento a ódios,
preconceitos e violência desmedida, como no caso do nazismo, do
fascismo, e da islamofobia instaurada depois de 11 de setembro.
Os meios de comunicação, especialmente os canais de televisão, cumprem um papel decisivo no fomento ao preconceito,
especialmente através da construção de arquétipos, de personagens onde o
oprimido é sempre objeto de piadas. Portanto, os grandes meios de
comunicação, dominados por oligopólios e grupos conservadores, também
são o ponto de partida para vários crimes de ódio.
Num evento pré-campanha eleitoral em 2014, a novela Meu Pedacinho de
Chão, da Rede Globo de televisão, direcionada a um público
infanto-juvenil, com primoroso trabalho estético e com rara qualidade de
direção e interpretação, mesmo com sua projeção atemporal, apresentou
todos os personagens negros como empregados, criticou o direito de voto
dado aos analfabetos, uma conquista democrática de 1988, sem questionar a
origem do problema, transformando trabalhadores analfabetos em pessoas
desinteressadas na aprendizagem e converteu o Coronel, vilão da
história, em herói redimido, num gritante retrocesso em relação ao
roteiro da novela original, que foi construída sobre o alicerce da
crítica social.
O que era para ser uma obra de arte, nos momentos citados foi palco
para a disseminação de preconceitos de forma subliminar, e reforço para a
campanha de ódio contra formas de pensar democráticas que é exercitado
no dia a dia pelos telejornais da emissora. Por sinal, as novelas da
Rede Globo, com raras exceções, sempre foram instrumentos de construção
de arquétipos destinados ao controle dos avanços sociais. Vejam o
exemplo “do bom e do mau sem-terra” no péssimo roteiro da reprisada
novela O Rei do Gado, uma “obra-prima do preconceito”.
E aqui nem falo de uma recente novela das 18 horas (Buggy Uggy)
ambientada na década de setenta, que tinha um militar moralista como
“pai de família exemplar”, e não fez qualquer referência aos crimes
praticados durante a “ditadura verde oliva” exercitados na mesma época.
Também nem falo da reiterada imposição da “ditadura da maternidade”
pelas novelas como única forma concreta de realização feminina.
Normalmente as personagens que não sonham em ser mães são apresentadas
como vilãs ou satirizadas, em síntese: mais uma forma de preconceito
propagandeado.
Nesses folhetins televisivos vemos a construção de “bons políticos” que
pregam discursos de um moralismo lamentável, enquanto passam o tempo
todo convivendo de forma pacífica com seus parceiros e “bons
correligionários”: latifundiários, grandes empresários, jornalistas com
condutas duvidosas e famílias tradicionais. Ou seja, “nas novelas
globais, o bom político é sempre aquele que defende o ideário e os
interesses da emissora, mesmo que estes estejam em conflitos com o
avanço da democracia”.
No ano de 2011, os canais da Discovery divulgaram um interessante
documentário sobre o “perfilhamento racial” nos Estados Unidos e a forma
como a polícia, mesmo em Illinois, reduto eleitoral de Barack Obama,
continua prendendo pessoas de forma indiscriminada e sem justificativa
com base em elementos étnicos, muitos dos quais terminam na morte dos
acusados, sempre negros, pela ação policial.
Em algumas situações observamos a autovitimização do opressor como
instrumento de pregação do preconceito e de perpetuação do poder
dominante, como nos discursos inflamados de brancos contra as políticas
de cotas e de ação afirmativa, ou a patética conduta de alguns
parlamentares e religiosos brasileiros defendendo o “orgulho hétero”,
num claro ato de homofobia.
Aliás, enquanto o direito civil caminhou durante milhares de anos,
desde a sua matriz romano-germânica, para reconhecer que não existe
direito “de família”, mas “de famílias”, em suas diversas formas,
observamos a lamentável tentativa de retrocesso, com a tramitação no
Congresso Nacional brasileiro, do projeto de lei do Estatuto da Família, mais um arremedo de fundamentalismo, sexismo e homofobia.
O uso de símbolos opressivos ainda é pouco enfrentado na sociedade
brasileira, mesmo que a violência simbólica seja criminalizada na “Lei
Maria da Penha”. Este tipo de violência ainda é visto por determinados
setores da sociedade como não violência, como algo que afeta apenas a
subjetividade das vítimas. Assim, a violência simbólica segue servindo
como ponte para diversos tipos de preconceitos, ou como porta de
passagem para a violência física sem nenhum tipo de controle.
Portanto, se formos buscar a fonte da disseminação inconsequente dos
crimes de ódio, não poderemos deixar de questionar o papel dos meios de
comunicação de massa, ou da ação de alguns ocupantes de assentos nos
Parlamentos. Enquanto aceitarmos de forma acrítica que valores
conservadores sejam impostos às nossas casas todos os dias pelo rádio,
televisão ou internet, ou que o presidente da Câmara vá ao púlpito do
Congresso para ofender minorias, ou negarmos a violência simbólica,
ainda continuaremos convivendo com a chaga do preconceito.
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